Ao discriminar os impostos cabentes aos Municípios a Constituição Federal prescreveu em seu art. 156, I:
“Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
I – propriedade predial e territorial urbana;”
Duas correntes se formaram acerca da palavra “propriedade” a que se refere o texto constitucional para definir a competência impositiva municipal: a) a
palavra “propriedade” foi empregada no sentido estritamente jurídico; b) a palavra “propriedade” foi empregada em seu sentido vulgar para abranger
prédios, terras, lotes etc.
A propriedade em seu sentido técnico-jurídico exige uma relação jurídica que se aperfeiçoa de conformidade com as regras previstas no Código Civil. Não
basta, pois, a mera existência de determinada coisa.
Em sentido estritamente jurídico a propriedade pressupõe uma relação jurídica pela qual uma pessoa, física ou jurídica, tem a faculdade de usar, gozar
e dispor de bem corpóreo ou incorpóreo, nos limites da ordem jurídica, reivindicando-o de quem injustamente o detenha. Corresponde ao jus utendi, ao
jus fruendi e ao jus abutendi do Direito Romano.
Efetivamente, dispõe o art. 1228 do Código Civil:
“Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua
ou detenha.”
O direito de propriedade pode recair sobre coisas corpóreas e incorpóreas. Quando ele recai sobre as coisas corpóreas recebe a denominação de domínio.
Para os defensores da tese de que a Carta Política referiu-se à propriedade em seu sentido rigorosamente jurídico, tal como definido no Código Civil,
há uma redução do âmbito de definição do fato gerador do IPTU (elemento nuclear ou material) pelo legislador infraconstitucional (legislador
complementar ou legislador ordinário).
A lei não poderia incluir na definição do fato gerador do IPTU o domínio útil ou a posse a qualquer título como faz o art. 32 do CTN, nem considerar
como contribuintes desse imposto o titular de domínio útil e o possuidor a qualquer título, conforme prescreve o art. 34 do CTN.
No caso, haveria vinculação da definição de propriedade, constante do Código Civil, no âmbito do Direito Tributário segundo a prescrição do art. 110 do
CTN:
“Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados,
expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios,
para definir ou limitar competências tributárias.”
É o posicionamento, dentre outros, de Jayr Viégas Gavaldão Jr que, com apoio em renomados juristas, sustenta que a hipótese de incidência do
IPTU “está confinada ao conceito jurídico de propriedade, cuja definição exclui outras relações jurídicas que, em que pese assemelhadas, não reservam
aos sujeitos ativos nela contemplados todos os direitos imanentes ao domínio pleno.” [1] Por isso, esse autor exclui a posse e o domínio útil da
composição da norma de incidência tributária, sendo inconstitucional o art. 32 do CTN que promove essa inclusão.
Dessa forma, o compromissário comprador com preço quitado, enquanto não adquirir a propriedade nos termos da lei civil, não poderia ser
contribuinte do IPTU, contrariando regra expressa na parte final do § 3º, do art. 150 da CF:
“§ 3º – As vedações do inciso VI, “a”, e do parágrafo anterior não se aplicam ao patrimônio, à renda e aos serviços, relacionados com exploração de
atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo
usuário, nem exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel.”
E também o comprador por escritura pública de compra e venda com preço quitado, enquanto não registrada a escritura no Registro Imobiliário
competente não poderá ser eleito como sujeito passivo do IPTU, tendo em vista o que prescreve o 1.245 do CC: “Transfere-se entre vivos a propriedade
mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.”
Se o adquirente do imóvel urbano não levar a registro seu título aquisitivo por décadas, mesmo após o falecimento do anterior titular, o IPTU
deixará de existir, pois não pode existir imposto sem sujeito passivo. Por outro lado, não seria razoável tributar, no caso, os herdeiros do antigo
proprietário, a pretexto de que o adquirente do imóvel não levou a registro o seu título de transferência. Sabemos que, na prática, deparamos com
imóveis urbanos sem titular de domínio.
Por tais razões, entendo que o legislador constituinte empregou a palavra “propriedade” em sua acepção comum abarcando prédios, fazendas,
terras, lotes etc. com abstração de seu aspecto estritamente jurídico.
Aliás, em outras passagens, a Constituição Federal refere-se à propriedade em seu sentido comum. Como assinala acertadamente Aires Fernandino
Barreto a Carta Política ao garantir o direito de propriedade (art. 5°, XXII); ao prescrever a função social da propriedade (art. 5° XXIII); ao
permitir o uso temporário da propriedade privada pelo agente público no caso de iminente perigo público (art. 5°, XXV); ao vedar a penhora sobre
pequena propriedade rural (art. 5° XXVI); ao vedar para fins de reforma agrária a desapropriação de pequena e média propriedade rural e a propriedade
produtiva (art. 185, I e II) certamente não deixou de dar proteção à enfiteuse, ao usufruto e à posse. E quando diz que a propriedade deve cumprir a
função social (arts. 182 e 186) não deixou infensas a esse dever a enfiteuse e a posse.[2]
Quando a Constituição garante o direito à propriedade (art. 5° XXII) e ressalva a desapropriação[3] por interesse público, mediante pagamento
prévio da justa indenização em dinheiro (art. 5° XXIV), não se está excluindo a indenização da posse ou do domínio útil.
É pacífico na jurisprudência que a desapropriação da posse envolve a indenização à base de 20% do valor da propriedade. No caso de
desapropriação do domínio útil, conforme a regra do art. 103, § 2°, do Decreto-Lei 9.760/46, com a redação dada pela Lei nº 9.636/98, a indenização
corresponde a 17% (dezessete por cento) do valor do domínio pleno. Nesse sentido é a jurisprudência do STF. [4]
Da mesma forma, quando o § 4°, do art. 182 da CF faculta ao Poder Público Municipal exigir do proprietário do solo urbano não edificado,
subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de parcelamento ou edificação compulsórios, IPTU
progressivo no tempo, e desapropriação mediante pagamento do valor real da indenização em títulos de dívida pública, com prazo de resgate de dez anos,
não se está excluindo dessas sanções o posseiro ou o titular de domínio útil.
Enfim, o legislador infraconstitucional e a jurisprudência têm interpretado com elasticidade a palavra “propriedade” empregada pelo texto
constitucional. E aqui é oportuno esclarecer que não se está pretendendo interpretar o texto constitucional de baixo para cima. Apenas estamos
apontando o possível sentido comum atribuído pelo legislador constituinte à palavra “propriedade” ao deferir aos Municípios a tributação de propriedade
predial e territorial urbana.
Embora sedutora a tese de utilização da expressão “propriedade predial e territorial urbana” em seu sentido estritamente jurídico, tal
posicionamento cria, na prática, obstáculos ao lançamento tributário pela dificuldade de identificar o proprietário do imóvel urbano que, às vezes, nem
mais existe. E mais, tributar o titular de domínio despojado da posse do imóvel, porque já a transferiu ao compromissário comprador, por exemplo,
ofenderia o princípio da capacidade contributiva.
Por isso, concordamos com João Damasceno Borges de Miranda quando diz:
“A terminologia ‘propriedade’ utilizada na Constituição Federal é sob a forma vulgar, caricata, correntia, comum; de maneira que a regra-matriz de
incidência sujeita passivamente ao seu alcance todo aquele que detém qualquer direito de uso, gozo, fruição e de disposição relativamente ao imóvel,
seja pleno ou limitado. É nessa relação patrimonial que encontramos o substrato econômico tributável.” [5]
Mais ou menos na mesma linha de pensamento é a lição de Hugo de Brito Machado, que apesar de enfatizar que a Constituição empregou a palavra
“propriedade” em seu sentido rigorosamente jurídico, assumiu uma posição que flexibiliza o rigor do seu sentido jurídico. São as palavras:
“Falando a Constituição em “propriedade”, naturalmente abrangeu a posse, que nada mais é que um direito inerente à propriedade. A autorização
constitucional é para tributar a propriedade, e o CTN faculta a lei ordinária tomar para o fato gerador do tributo a propriedade, o domínio útil ou a
posse, vale dizer, o direito pleno, total, que a propriedade, ou um de seus elementos, o domínio útil, ou ainda a posse. Se a propriedade, com todos os
seus elementos, está reunida em poder de uma pessoa, o tributo recai sobre ela. Se a propriedade está fracionada, e em razão disto ninguém é titular da
propriedade plena, porque há enfiteuse, pode a lei definir como fato gerador do tributo o domínio útil. E se o imóvel não consta do registro no
cartório competente, não se podendo, portanto, cogitar de proprietário, pode a lei definir como fato gerador do imposto a posse.” [6]
Em outra passagem diz o mesmo autor:
“Penso que a palavra propriedade está empregada na Constituição em seu sentido rigorosamente jurídico, e mesmo assim não vejo invalidade alguma no
dispositivo do Código Tributário Nacional que se refere ao domínio útil e à posse ao descrever o âmbito constitucional do imposto em questão.” [7]
Posicionamento semelhante assume Sacha Calmon Navarro Coelho que não obstante reconhecer que o Código Civil distingue os conceitos de propriedade,
domínio útil e posse, atenua o rigor do sentido estritamente jurídico da propriedade ao ponderar:
“Temos para nós que o intuito do legislador da lei complementar tributária foi o mesmo do legislador latino: atingir proprietário do bem imóvel ou o
‘quase-proprietário’ e o enfiteuta ou ainda o que aparentava ser o proprietário (o possuidor). O legislador tributário é, deve ser sempre pragmático.”
[8]
Na verdade, autores que flexibilizam o sentido jurídico do direito de propriedade reconhecem que o texto constitucional refere-se à propriedade em seu
sentido comum. É a única posição compatível com o princípio da capacidade contributiva que outra coisa não é senão mero desdobramento do princípio da
isonomia tributária que proíbe o discrimen, entre os iguais, de um lado, e impõe o dever de distinguir os desiguais, de outro lado.
Ora, a lei tributária não pode tratar de forma idêntica o proprietário que detém a posse do imóvel percebendo seus frutos, e o proprietário que perdeu
a disponibilidade econômica do imóvel, quer porque transmitiu a posse ao compromissário comprador, quer porque alienou o imóvel por escritura
definitiva de compra e venda pendente de registro perante o registro imobiliário competente.
Afinal, o IPTU não grava o imóvel, mas a sua disponibilidade econômica.
Por isso, sustentamos que “a palavra propriedade empregada no texto constitucional não pode ser entendida em sua acepção exclusivamente jurídica, com
total abstração de seu aspecto econômico, sob pena de acarretar, não só graves distorções e injustiças, com a violação do princípio da capacidade
contributiva (§ 1º, do art. 145 da CF), como também problemas relacionados com o lançamento e notificação do contribuinte.” [9]
Positivamente, o IPTU pode ser lançado contra o proprietário, contra o titular de domínio útil e contra o possuidor (posseiro), com total abstração do
título jurídico da propriedade (art. 118 do CTN).
SP, 5-1-12.
Notas:
[1] IPTU Aspectos Jurídicos relevantes. Obra coletiva, Coord. Marcelo Magalhães Peixoto. São Paulo: Quartier Latin, 2002, p. 305.
[2] Curso de direito tributário. São Paulo: Cejup, 1997, p. 300.
[3] Instituto de direito público consistente na retirada da propriedade privada pelo Poder Público ou seu delegado por interesse público mediante
pagamento prévio da justa indenização em dinheiro ou em títulos da dívida pública, conforme o caso.
[4] RDA 55/224, 174/147.
[5] IPTU Aspectos jurídicos relevantes, obra coletiva, coord. Marcelo Magalhães Peixoto. São Paulo: Quartier Latin, 2002, p. 317.
[6] Curso de direito tributário. 32ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 349-350.
[7] Comentários ao código tributário nacional, vol. 1. São Paulo: Editora Atlas, 2003, p. 359.
[8] Do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 119.
[9] Cf. nosso Direito financeiro e tributário. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 447.
* Kiyoshi Harada. Jurista, com 23 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras
Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira
nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da
Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.