A primeira imagem – o comportamento humano
De acordo com a primeira imagem das relações internacionais, o local das causas importantes da guerra reside na natureza e no comportamento
do homem. As guerras resultam do egoísmo, de impulsos agressivos mal canalizados, da estupidez. A eliminação desta tem de vir da elevação e do
esclarecimento dos homens ou de medidas que assegurem seu reajustamento psicossocial.
As prescrições associadas às análises da primeira imagem não têm de exibir um conteúdo idêntico, como uns poucos vão indicar. Henry
Wadsworth Longfellow, movido à expressão poética por uma visita ao arsenal de Springfield, registrou os seguintes pensamentos: “Se metade do poder que
enche o mundo de terror, se metade das despesas da caserna e das cortes, servisse para livrar a mente humana do erro, não seriam necessários arsenais e
fortes”. Está implícita nesses versos a ideia de que as pessoas insistiriam na adoção de políticas corretas caso soubessem quais são. Para outros, o
argumento das chances da paz exige não tanto mudança dos “instintos” quanto uma canalização de energias que no momento são despendidas na loucura
destrutiva da guerra.
As prescrições variam, mas todas têm em comum a ideia de que, para se conquistarem um mundo mais pacífico, os homens têm de ser
transformados em sua perspectiva moral e intelectual ou em seu comportamento psicossocial. No entanto, há otimistas como pessimistas. Aqueles são os
que pensam que as possibilidades de progresso são tão grandes que as guerras vão acabar antes do desaparecimento da próxima geração; estes, pois, acham
que as guerras vão continuar ainda que levem todos nós à morte. “Otimista” e “pessimista” são palavras enganosas, mas é difícil encontrar melhores.
No âmbito de cada imagem, há otimistas e pessimistas concordando com as definições das causas e divergindo sobre o que se pode fazer em
relação a elas, se é que se pode fazer algo. Otimistas e pessimistas concordam em sua análise da causa, mas, divergindo quanto à possibilidade de
alterar essa causa, vêm a serem os mais amargos críticos uns dos outros.
Santo Agostinho observou a importância da autopreservação na hierarquia das motivações humanas. O desejo de autopreservação é fato
observado. Para Espinosa, no entanto, o fim de todo ato é a autopreservação do ator. As leis da natureza são simplesmente afirmações do que esse
fim único requer; o direito natural.
Em vez do fim do pensamento político de Espinosa, este é apenas seu começo. Todo homem busca de fato promover seus próprios interesses,
mas, por infelicidade, não de acordo com os ditames da razão. Santo Agostinho explicou isso por meio do pecado original já, a explicação dada por
Espinosa para os males políticos e sociais se baseia no conflito que ele detecta entre razão e paixão. Santo Agostinho, Niebuhr e Morgenthau rejeitam o
dualismo explícito no pensamento de Espinosa: o homem inteiro, mente e corpo, é, de acordo com eles, falho. Apesar dessa diferença, permanece o
substrato de acordo; porque cada um deles deduz os males políticos dos defeitos humanos. Para Niebuhr, “a paz de uma comunidade é sempre parte
coercitiva e a paz externa entre as comunidades é prejudicada pelo conflito competitivo”.
Os eventos da história do mundo não podem ser isolados dos homens que os fizeram. Mas a importância da natureza humana tem de explicar uma
infinita variedade de eventos sociais. Como assinalou Émile Durkheim, o “fator psicológico é demasiadamente geral para predeterminar o curso dos
fenômenos sociais. Como não requer uma determinada forma social em vez de outra, não pode explicar nenhuma delas”. A natureza humana é, portanto, uma
causa apenas no sentido de que, se fossem de algum modo inteiramente diferentes, os homens não precisariam de nenhum controle político.
O que explica então a alternância de períodos de paz e de guerra? A natureza humana pode não explicar por que, num Estado, o homem é
escravizado e, em outro, é relativamente livre, por que num dado ano há guerra e em outro, paz relativa. Pode, porém, explicar as necessárias
imperfeições de todas as formais sociais e políticas. Os pressupostos básicos de Santo Agostinho e Niebuhr, de Espinosa e Morgenthau, são úteis para
vislumbrar ou limites da realização política possível.
Em Morgenthau temos duas ideias: em primeiro lugar, a de que as lutas pela preferência surgem em situações competitivas e, na ausência de
uma autoridade capaz de militar os meios usados pelos competidores, é introduzida a força; em segundo, a de que as lutas pelo poder surgem porque os
homens nascem com a ânsia pelo poder. Num caso o poder é um fim; no outro, um instrumento.
A questão não é saber se o poder deve ou não ser “o valor supremo dos Estados”. Tem-se, em vez disso, de perguntar quando ele será o valor
supremo, se em algum momento for, e quando é mero meio.
A maldade do homem, ou seu comportamento impróprio, leva a guerra; a bondade individual, se pudesse ser universalizada, significaria paz:
eis o enunciado conciso da primeira imagem.
A segunda imagem – estrutura interna dos Estados
A primeira imagem não exclui a influência do Estado, mas o papel deste foi introduzido como uma consideração menos importante do que o
comportamento humano, e a ser explicada em seus termos. De acordo com a primeira imagem, dizer que o Estado age é falar metonimicamente. Dizemos que o
Estado age quando queremos dizer que as pessoas que estão nele agem. As guerras não existiriam se a natureza humana não fosse como é, mas os eventos a
serem explicados são tantos, e tão variados, que a natureza humana possivelmente não pode ser o único determinante.
A conclusão é óbvia: para compreender a guerra e a paz, tem-se de usar a análise política para complementar e organizar as descobertas da
psicologia e da sociologia (entenda-se primeira e segunda imagens, respectivamente).
Parte da segunda imagem a ideia de que os defeitos nos Estados provocam guerras entre eles. É, no entanto, possível pensar que as guerras
podem ser explicadas por defeitos de alguns ou em todos os Estados sem acreditar que a mera eliminação dos defeitos estabeleça a base da paz perpétua.
Se, e somente se, todos os Estados fossem substancialmente reformados, haveria paz mundial. Partindo da tese que as condições internas determinam
efetivamente o comportamento externo, é necessário considerar em primeiro lugar suas concepções de política interna. Considerando-as, será igualmente
possível traçar alguns paralelos entre suas estratégias de ação política interna e externamente.
As duas perguntas que se pode fazer acerca de qualquer sistema socioeconômico são: o que o faz funcionar de um modo geral? O que o faz
funcionar sem dificuldades? Os autores políticos liberais da Inglaterra do século XIX davam a essas perguntas, quase unanimemente, a resposta de que a
iniciativa individual é a força motriz do sistema e a competição no mercado livre, seu regulador. O importante aqui não é o velho princípio da divisão
do trabalho, mas o novo argumento de que os resultados do trabalho dividido na produção e distribuição de bens possam ser reunidos outra vez e
distribuídos equitativamente sem a supervisão do governo.
É a justiça a primeira preocupação do governo, mas é a justiça, definida em termos legais estritos, também sua preocupação última? É
possível apontar inúmeras asserções de liberais e utilitaristas que indicam que em suas mentes é essa preocupação última. Sua crença num Estado
estritamente limitado pode, no entanto, ser demonstrada de maneira mais convincente destacando-se suas próprias reações a fatos sociais que consideram
aflitivos.
Em John Stuart Mill, o utilitarismo-liberalismo passou de proscrição da ação do Estado à prescrição do tipo estatal desejável. O que
preocupa mais a cada ano é a falta de justiça com a qual o regulador do mercado livre distribui recompensas entre os participantes dos processos de
produção. O laissez-faire pode aumentar a produção. Mas ele distribui os frutos de maneira justa? Mill acha que não.
Os liberais e utilitaristas descreveram as condições necessárias ao funcionamento justo e eficiente de uma sociedade do laissez-faire. Havia então latente na própria lógica do liberalismo a possibilidade de ser exigida a ação do governo para concretizar e manter
essas condições. Como é um meio necessário, uma sociedade autorreguladora torna-se, com efeito, parte de uma meta ideal dos liberais. Se só é possível
uma política de laissez-faire com base nas condições descritas como necessárias, o próprio ideal do laissez-faire pode exigir a ação do
Estado.
Treitschke definiu como dever primordial do Estado “o duplo dever de manter o poder no exterior e a lei no interior”. Julgava que a
primeira obrigação do Estado “tem de ser o cuidado de seu exército e de sua jurisprudência, a fim de proteger e controlar a comunidade de seus
cidadãos”. Adam Smith dissera a mesma coisa. O Estado se preocupa externamente com a defesa e internamente com a justiça. Mas, embora concordem numa
definição das tarefas do Estado, o liberal Smith e o não-liberal Treitschke divergem amplamente no tocante a que ações são necessárias para cumpri-las.
“Creio”, escreveu John Stuart Mill, “que não se pode obter o bem de nenhum país por meio algum senão aquele passível de promover o bem de
todos os países, nem se deve ser buscado de outra maneira, ainda que possa obtê-lo”. É essa em grande medida a essência dos argumentos liberais, e
estes têm sido formulados com tanta frequência, e tantas vezes resumidos, que só são necessárias aqui duas coisas: indicar a repetição de ideias agora
identificadas como liberalismo e enfatizar os aspectos que são pertinentes em fases ulteriores da análise.
O vencedor não obtém ganhos com a guerra; ele pode orgulhar-se tão somente de perder menos do que o vencido. Esse raciocínio acha-se na
base do argumento tradicional segundo o qual a guerra não compensa; argumento que remonta ao menos a Emeric Crucé, no começo de século XVII, tendo sido
desenvolvido de modo detalhado por Bentham e por ambos os Mill, usado por William Graham Summer para condenar a guerra americana contra a Espanha e
levado ao apogeu por Norman Angell, que resumiu a obra dos economistas liberais, em sua maioria ingleses e franceses, que o precederam.
A concepção do Estado dos liberais do século XIX baseava-se no pressuposto da harmonia entre os Estados e de sua perfectibilidade infinita,
levando a uma situação em que a probabilidade de guerra sofreria uma redução constante. Para concretizar o ideal liberal das relações internacionais,
os Estados têm de mudar. O que deveriam ser os mecanismos de mudança? No que se refere a essa questão, os liberais oscilam entre dois polos: o
não-intervencionismo otimista de Kant, Cobden e Bright, de um lado; o intervencionismo messiânico de Paine, Mazzini e Woodrow Wilson, de outro.
Nos assuntos internos, os liberais começam com a doutrina do Estado estéril. Todas as boas coisas da vida são criadas pelos esforços dos
indivíduos; o Estado existe apenas para servir de árbitro imparcial entre os concorrentes individuais. Haverá uma necessidade de ação comparável nas
relações internacionais? Alguns liberais propuseram a não-intervenção como meio de permitir que se estabeleça a harmonia natural de interesses entre os
Estados.
Enquanto Cobden e Bright usariam a força nas relações internacionais apenas quando necessário para tornar segura sua própria democracia,
Paine, Mazzini e Wilson empenham-se para tornar o mundo democrático.
Os liberais intervencionistas, contudo, não se contentam com o realismo que pode prolongar a era da guerra eterna. Seu realismo reside na
rejeição do pressuposto do progresso automático da história e na consequente asserção de que o homem tem de eliminar as causas da guerra para ter paz.
O Estado de agir a partir da teoria intervencionista tem de estabelecer a si mesmo como juiz e executor nos assuntos das nações.
Nunca as provas disso foram resumidas de modo mais sucinto do que por A. J. P. Taylor. “Bismark travou guerras ‘necessárias’ e matou
milhares; os idealistas do século XX lutam guerras ‘justas’ e matam milhões”.
Os liberais não alimentavam a expectativa de um estado de nirvana em que todos os choques cessassem porque todos os conflitos foram
eliminados. Ainda haveria disputas entre Estados, mas não a propensão a resolvê-las mediante a guerra. Assim, T. H. Green não vê razão para que os
Estados, à medida que se tornam mais representativos de seu povo, “não cheguem a uma imparcialidade desapaixonada em suas relações uns com os outros”.
Isso é mais uma vez o ideal anarquista aplicado às relações internacionais.
As soluções para o problema da guerra baseadas no padrão tanto da primeira quanto da segunda imagem têm de pressupor a possibilidade de
perfeição das unidades em conflito. Sendo a perfeição impossível para Estados tal como é para os homens, o sistema liberal pode no máximo produzir uma
situação de aproximação da paz mundial.
A terceira imagem – anarquia internacional
As três imagens são, por assim dizer, parte da natureza. São tão fundamentais o homem, o Estado e o sistema de Estados em toda a tentativa
de compreender as relações internacionais que é raro um analista, por mais comprometido que esteja com uma determinada imagem, desconsiderar as outras
duas.
Ao enfatizar a interdependência entre as políticas de todos os Estados, o argumento considera a terceira imagem. Espinosa explicou a
violência fazendo referência às imperfeições humanas. Logicamente, se a causa é exclusiva, o fim tem de depender da reforma dos homens. A análise de
Kant define os homens como membros tanto do mundo dos sentidos como do mundo do entendimento. Se estivessem totalmente neste último, eles sempre
agiriam de acordo com as máximas universalmente válidas, que eles mesmos imporiam a si. Eles seguiriam o imperativo categórico. Mas como os homens são
igualmente membros do primeiro, os impulsos e inclinações sobrepujam a razão, e o imperativo categórico é seguido com tão pouca frequência que, no
estado de natureza, reinam o conflito e a violência. O Estado civil surge como uma restrição necessária.
Os Estados no mundo são como indivíduos no estado de natureza. O importante é fazê-los aprender com o sofrimento e a devastação da guerra
como estabelecer entre eles um regime legal que não se sustende pelo poder, mas pelo o que seja voluntariamente observado.
Para a harmonia existir em meio à anarquia, não só é necessário ser perfeitamente racional, como supor que todas as demais pessoas o serão
igualmente. Admitir em meu cálculo os atos irracionais alheios pode não levar a nenhuma solução definitiva, como ilustrado no conto do cervo e do
coelho; porém tentar agir a partir de um cálculo racional sem admitir isso pode levar a minha ruína.
É evidente que, ao passar do estado de natureza ao Estado civil o homem se beneficia materialmente. Todavia há mais que ganhos materiais
envolvidos. É o que Rousseau descreve como abandonar o estado de idiotia e deixar de ser escravo de seus caprichos, apetites e paixões submetendo-se à
lei.
Mas o que dizer da situação entre os próprios Estados civis? Ao definir o estado de natureza como a situação na qual as unidades atuantes,
homens ou Estados, coexistem sem uma autoridade acima de si, pode-se aplicar a expressão a Estados do mundo moderno tanto quanto homens que viviam fora
de um Estado civil. Está claro que os Estados não reconhecem um superior comum; mas será possível descrevê-los como unidades atuantes?
O espírito público ou o patriotismo, dizem, é a base necessária de um bom Estado. De um ponto de vista positivo, a inculcação do sentimento
público transmite ao cidadão um espírito de devoção ao bem-estar do todo. A vontade de Estado é a vontade geral; não há problemas de desunião nem de
conflito. Temos então o fato de imensa importância que é o nacionalismo moderno. Hans Kohn assinala que o nacionalismo é impossível sem a ideia de
soberania popular. Tem-se mostrado cada vez mais verdadeiro em séculos recentes que a maioria das pessoas sente com relação ao Estado em lealdade que
sobrepuja sua lealdade a quase todos os outros grupos. A força centrípeta do nacionalismo pode ela mesma explicar por que tem condições de pensar os
Estados como unidades.
Em suma, a unidade de uma nação é alimentada não somente por fatores internos como também pelos antagonismos tão frequentes nas relações
internacionais. Essa é a posição de Rousseau, que afirma que “se a guerra só é possível entre tais ‘seres morais’ [Estados], segue-se que os
beligerantes não têm nada de pessoal contra inimigos individuais”. Um Estado guerreia contra outro Estado. Tiramos do filósofo a análise
teórica da guerra como consequência da anarquia internacional.
Em primeiro lugar, não há uma relação lógica óbvia entre a proposição de que “na anarquia não há harmonia automática” e a proposição segundo a qual
“entre Estados autônomos, a guerra é inevitável”. Do atual sistema anárquico de organização internacional pode brotar a desconfiança e a descrença
internacional, guerra, na acepção do termo, ou isso pode influenciar as nações para a cooperação.
Gisele Witte
Acadêmica de Direito da UFSC
Estagiária no Tribunal de Justiça de Santa Catarina