Judiciário

CNJ: um pretenso quarto poder

A recente declaração da corregedora do CNJ dizendo que a magistratura brasileira estava cheia de “criminosos togados” foi no mínimo infeliz. Se ela
está a par de quaisquer crimes cometidos por juízes é seu dever denunciá-los ao Ministério Público.

Mas com esse proferimento de caráter genérico, em que não apontou nem um crime e muito menos seu autor, a declaração foi mais uma injúria ou uma
difamação do que qualquer acusação munida de provas.

Ou seja: a corregedora prestou um desserviço para a ordem jurídica e perdeu uma boa oportunidade para ficar calada.

Sentindo sua instituição seriamente ferida pelo destempero da corregedora e abespinhado por algumas medidas autoritárias do CNJ, o desembargador
Benedicto Abicair do TJRJ publicou um excelente artigo na revista Consultor Jurídico em 28/10/2011 em que começou dizendo:

“O Conselho Nacional de Justiça foi uma infeliz criação, resquício da ditadura, que visava “promover a fiscalização e orientação da gestão
administrativa e financeira dos tribunais”, com a participação do Ministério Público, Ordem dos Advogados e Congresso Nacional, “apurando as
deficiências e oferecendo indicativos de solução”, além de “dar visibilidade às denúncias de mazelas”, exigindo e acompanhando os trâmites, nas
Instâncias competentes, para as correções e punições pertinentes, dentro da plena legalidade.”

“Resquício da ditadura”? Ou sintoma de um autoritarismo crescente com a chegada do PT ao poder, desejando manietar o Poder Judiciário e amordaçar a
mídia com um tal de “Conselho Nacional de Jornalismo”?!

Se já era algo esdrúxulo um órgão controlador dos atos administrativos do Poder Judiciário, considerando que este mesmo já possui suas corregedorias,
mais esdrúxulas ainda – para não dizer extremamente autoritárias – foram as tentativas feitas pelo CNJ de ditar regras indo frontalmente de encontro à
própria legislação do País, como se seus ilustres membros estivessem acima da própria.

Só para dar um exemplo: o CNJ já baixou uma resolução de acordo com a qual os juízes não podiam mais se declarar impedidos de atuar em processos sob a
alegação de possuírem parentesco, relações próximas de amizade ou negócios com os réus.

E isto sob a insinuação – algumas vezes procedente, mas nem sempre – de que os magistrados recorriam a tal expediente legal, para não ter de atuar em
processos, simplesmente por falta de vontade de trabalhar.

Tivesse entrado em vigor essa regra, o remédio do CNJ teria sido pior do que a doença. A lei que autoriza a declaração de impedimento visa justamente
dificultar possíveis parcialidades venais dos magistrados envolvidos com pessoas físicas ou jurídicas julgadas por eles. Mas o desembargador continua
dizendo…

“Daí a Emenda Constitucional 45 instituiu aquele apêndice do Supremo Tribunal Federal, com uma composição híbrida, devido ao fato de que tal conselho
não tem poder judicante, implantando, ainda, algumas outras nefastas alterações, na carreira da magistratura, denominando-as como “reformas”. Naquela
ocasião, vislumbrava-se uma preocupante interferência na independência do Poder Judiciário, com seu enfraquecimento, através de tentativa de
intimidação aos magistrados, acarretando prejuízo na adequada prestação jurisdicional.”

O desembargador tem toda razão. O CNJ não possui poder judicante. Nem muito menos poder legislante. Ambos são prerrogativas do Poder Judiciário e do
Poder Legislativo respectivamente.

Não obstante, o CNJ interfere abusivamente julgando e legislando, interferindo nos atos administrativos do Judiciário, não levando em consideração que
este possui não só corregedorias como também leis orgânicas.

Na realidade, o único poder possuído de jure pelo CNJ – e que lamentavelmente se sobrepõe ao das corregedorias do Judiciário – é um poder
fiscalizador, porém sem poder decisório, algo semelhante ao do Tribunal de Contas da União e os dos Estados – um órgão que apresenta seus relatórios à
Câmara de Deputados e às Assembléias Legislativas e essas tomam a decisão de aprovar ou não as contas.

Assim tem sido numa República que, ao menos na sua Constituição, é tida como República Federativa do Brasil, mas que frequentemente a sanha
centralizadora quer transformá-la uma República Unitária em total desrespeito à relativa autonomia dos Estados que a compõem. Novamente tem toda a
razão o desembargador Abicair quando diz…

“O CNJ, é fato inconteste, se arvorou de poder legiferante e judicante, interferindo, abusiva e inconstitucionalmente, na esfera da competência dos
Tribunais e execrando magistrados antes de serem regularmente apuradas eventuais irregularidades”.

Como é lamentavelmente prática corriqueira neste país, a presunção de inocência raramente é acatada. Nem mesmo o CNJ costuma observar esse princípio
constitucional em relação aos magistrados.

A referida corregedora que vomitou imprecações contra os “bandidos togados”, em sua ânsia compreensível e justificável de ver punidos os supostos
transgressores da lei  – parece desconhecer os dados fornecidos pelo próprio CNJ:

“Após a criação do mencionado Conselho, no universo de mais de 15 mil magistrados, foram “punidos” 49, o que não consiste, em seis anos, quantidade
relevante de supostos “transgressores”.

Não sei dizer se a referida corregedora tem uma tendência para a criação de exageros hiperbólicos ou um declarado viés em relação à magistratura.

49 “transgressores” num universo de mais de 15.000 magistrados só pode ser encarado, por espíritos racionais e moderados, como uma prova do grau de
lisura e probidade dos juízes, não como indício de grande corrupção.

Ou será que a corregedora é um desses espíritos ingênuos e puros desejosos de um grau zero de transgressão?

Lembro que aqueles que clamam contra a homofobia ainda não aprenderam a comparar dados estatísticos, de modo a extrair conclusões relevantes.

Mostram-se horrorizados com uma altíssima taxa de uns 500 homicídios de homossexuais por ano num país em que ocorrem anualmente cerca de 50.000
homicídios!

Após sua defesa da magistratura, o desembargador  Benedicto Abicair passa a chamar atenção para determinadas irregularidades presentes no CNJ:

“Ademais, é elevadíssimo o custo para manter tamanha infra-estrutura, sem a tão decantada “transparência” cobrada por tal Conselho, como se constata
através da coincidente contratação, para “prestar consultoria” ao CNJ, de determinada Fundação, em uma operação envolvendo elevadas cifras, após um
alto executivo seu ter integrado aquele Conselho, o que pode ser interpretado como ato de oportunismo, bem como pelas constantes ausências de
conselheiros às sessões, que ocorrem duas vezes por mês.”

E o desembargador estende suas observações críticas a outros aspectos relacionados com o CNJ:

“Está constatada a interferência dos demais poderes, do Ministério Público e da OAB no Judiciário, que conduzem para o CNJ políticos com expectativas
eleitoreiras, procuradores e promotores que deveriam estar exercendo funções para as quais se qualificaram e empresários do direito e da advocacia de
plantão, travestidos de cidadãos do povo e de advogados, alguns, inexpressivos ou meros bacharéis que sequer sabem os endereços de fóruns e tribunais,
mas que sabiamente se promovem no período de “fama” que o CNJ lhes proporciona”.

Em outras palavras: o CNJ, além de todas as irregularidades de seu desempenho dito “fiscalizador” serve também de trampolim político para carreiristas.

Mas até mesmo a eficácia da fiscalização do referido órgão criado pelo PT – e que é uma das suas marcas registradas – não é exercida tão eficazmente
quanto a que é feita pelo jornalismo investigativo, este mesmo que o PT tem tentado várias vezes amordaçar.

“A transparência é obrigação dos três poderes, aos quais compete divulgar todos os seus atos, sendo que denúncias justificadas devem ser processadas
pelos cidadãos, Ministérios Públicos e advogados e noticiadas por meio da imprensa, olhos atentos da população.

Ressalte-se que, hodiernamente, os veículos de comunicação são tantos e de tamanha eficácia que atendem muito mais apropriadamente o papel de
fiscalizador, sem ônus para o erário.”

Estamos certos que o dia em que este país for verdadeiramente um estado de direito democrático, uma das primeiras medidas que serão tomadas será a
extinção desse órgão criado pelos “companheiros” do PT que se arvora como um Quarto Poder.

Neste sentido estou novamente de pleno acordo com o desembargador do TJRJ quando ele diz:

“Deve-se repudiar qualquer modalidade de castração, tanto que despropositados e injustos ataques ao Poder Judiciário e entidades não justificam um
Conselho (seria Castração) Nacional de Imprensa, aliás, em fase de gestação na cabeça de déspotas.

Compete, sim, ao Judiciário permanecer lutando contra as incessantes e descabidas intervenções do órgão interventor, Conselho Nacional de Justiça, para
findarem-se os arranhões na plenitude da democracia.”

* Mário Antônio de Lacerda Guerreiro, Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq.
Ex-Membro do ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC [Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos]. Membro Fundador da
Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Autor de Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus,
Campinas, 1989); Ética Mínima Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL,
Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000) .
Liberdade ou Igualdade? ( EDIPUCRS, Porto Alegre, 2002). Co-autor de Significado, Verdade e Ação (EDUF, Niterói, 1985); Paradigmas Filosóficos da
Atualidade (Papirus, Campinas, 1989); O Século XX: O Nascimento da Ciência Contemporânea (Ed. CLE-UNICAMP, 1994); Saber, Verdade e Impasse (Nau, Rio de
Janeiro, 1995; A Filosofia Analítica no Brasil (Papirus, 1995); Pré-Socráticos: A Invenção da Filosofia (Papirus, 2000) Já apresentou 71 comunicações
em encontros acadêmicos e publicou 46 artigos. Atualmente tem escrito regularmente artigos para www.parlata.com.br,www.rplib.com.br ,
www.avozdocidadao.com.br e para www.cieep.org.br , do qual é membro do conselho editorial.

Como citar e referenciar este artigo:
GUERREIRO, Mário Antônio de Lacerda. CNJ: um pretenso quarto poder. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/judiciario/cnj-um-pretenso-quarto-poder/ Acesso em: 21 nov. 2024