O Estado tem o dever de assegurar (e fomentar) a livre iniciativa, mas frequentemente ”esquece” esse dever, dificultando a vida do empresário. Diversos
são os motivos para tanto, mas um é bastante recorrente: o apetite arrecadatório.
Pois bem. Há pelo menos mais de 12 anos (vide REsp 156.181), o STJ pacificou entendimento de que “os bens úteis e/ou necessários às
atividades desenvolvidas pelas pequenas empresas, onde os sócios atuam pessoalmente, são impenhoráveis”, com fundamento no art. 649, V, CPC.
Entretanto, a Fazenda insiste em buscar a expropriação de tais bens.
Essa atitude, contudo, contém ao menos três equívocos: a) a exegese descompassada com a finalidade do art. 649, V, CPC; b) pode complicar
ainda mais a situação financeira da microempresa e criar um problema para o próprio Estado; e c) movimenta inutilmente o judiciário. Vejamos uma a uma.
Preconiza o art. 649, V, do CPC:
Art. 649. São absolutamente impenhoráveis:
[…]
V – os livros, as máquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício de qualquer
profissão;
Com efeito, são impenhoráveis os bens do devedor que sejam utilizados no exercício da profissão. O referido dispositivo, contudo, não pode ser aplicado
de forma literal, sob pena de frustrar o fim social da norma.
É que se deve equiparar a microempresa à pessoa física nesse aspecto, pois em geral nesse tipo de pessoa jurídica predomina a participação pessoal dos
sócios, que usam a microempresa para prestar seu serviço, trabalhando de forma a um profissional liberal.
Nesses casos, como acentuou o ministro Ruy Rosado Aguiar no REsp 87.456, “descabe aplicar conceitos próprios da pessoa jurídica. Ainda que o fosse,
seria necessário elaborar o mesmo raciocínio da disregard doctrine para o fim inverso de fazer prevalecer o benefício concedido ao profissional
que atua através da microempresa”.
Seria o caso, por exemplo, de uma pequena oficina mecânica em que o serviço é prestado diretamente por seus sócios, ambos mecânicos. Não seria lógico
que se prestassem o serviço pessoalmente (ou mediante sociedade em comum), determinada máquina não seria penhorável, mas que como o fazem por meio de
sociedade empresária, não gozam de tal benesse.
No mesmo sentido, apontam vários julgados do STJ, dentre eles o REsp 864.962, relatado pelo Ministro Mauro Campbell Marques: “Pacífica a jurisprudência
desta Corte no sentido de que os bens úteis e/ou necessários às atividades desenvolvidas por pequenas empresas, onde os sócios atuam pessoalmente, são
impenhoráveis, na forma do disposto no art. 649, VI, do CPC”[1].
Além disso, diferentemente do credor privado, que visa apenas a satisfação de seu crédito (e na maioria das vezes não está preocupado com as
consequências disso), a Fazenda tem (ou deveria ter) o dever de sopesar o seu direito de crédito com a manutenção das atividades da parte executada. De
nada adianta expropriar as máquinas e levar o devedor à falência, que criaria um novo problema ao Estado.
Por fim, nota-se que a atitude da Fazenda de insistir com a penhora desse tipo de bem (o necessário ou útil ao exercício da microempresa) apenas
movimenta inutilmente o judiciário, na medida em que há jurisprudência pacífica justamente no sentido contrário. Mais gastos pra todos: para a justiça,
para o próprio exequente [2] e para o devedor, que é obrigado a gastar ainda mais com advogado para se defender dessas arbitrariedades.
Fica evidente, dessarte, que o desejo arrecadatório do Fisco não se pode sobrepor ao direito e, sobretudo, a uma análise econômico-social das
situações, como no caso da penhora dos bem indispensáveis ao funcionamento de microempresas.
* Ricardo de Holanda Janesch
ricardo@investidura.com.br
Nota de rodapé:
[1] Até a edição da Lei nº 11.382, de 2006, o dispositivo em questão era o inciso VI do art. 649 do CPC.
[2] Não é raro ouvir dos procuradores da Fazenda que estão sobrecarregados de trabalho. Mais um motivo para não insistir nesse tipo de erro.