ADEL EL TASSE[1]
Novamente ganha pauta no debate nacional o tema do aborto, dessa vez por força da ideia de criminalizar toda e qualquer prática abortiva, quando realizada após 22 semanas de gestação.
O tema do aborto já integrou, desde indevida pauta do debate eleitoral à acaloradas discussões entre representantes religiosos, mas, há um detalhe importante que normalmente tem passado ao largo da discussão do tema, os aspectos efetivamente técnicos que conduzem a que uma ampla parcela de juristas defendam, até mesmo, a integral descriminalização da matéria, com a sua regulamentação.
Tratar da temática sob viés religioso, é absolutamente possível e legítimo no plano da fé individual, mas, por certo, não pode ser o fator orientador das políticas de Estado, quando diante do modelo republicano, em que as bases estruturais devem ser as racionais e científicas.
Nesse diapasão, a primeira questão a considerar é a possibilidade do abortamento a partir da solicitação da gestante, sem a indicação de qualquer motivo específico, procedimento atualmente admitido, como direito, em 67 países do mundo, sendo, regra geral, aceita essa modalidade, quando o abortamento é realizado até 12 semanas de gestação, a partir dos dados científicos que apontam ser este o momento a partir do qual os órgãos do feto, efetivamente começam a se formar.
Com isso, a partir das 12 semanas de gestação, seria possível visualizar, em tese, na prática do aborto, ofensa a um bem jurídico penal, no caso, a vida humana em formação, o que não estaria presente na etapa gestacional anterior, ante a não formação dos órgãos que permitem a vida humana.
O projeto de lei atualmente em discussão no Brasil, traz aspecto diverso, ao estabelecer o limite de 22 semanas, o qual se baseia em uma recomendação da gestão anterior do Ministério da Saúde, a qual orientava para que todas as modalidades de abortamento fossem evitadas após esse lapso temporal, isso porque a partir deste momento já haveria viabilidade fetal, conseguindo o feto viver fora do útero.
Ocorre que, conforme alerta do Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas, a idade gestacional é apenas um dos fatores que irá influenciar na viabilidade fetal, razão porque, o sistema baseado na definição das autorizações para a realização do procedimento abortivo, somente com lastro nesse elemento, tende a ser falho e estruturado ilusóriamente, o que explica a opção de várias nações, pela fixação do direito geral à realização do aborto até a 12 semana de gestação, pois, então, não haveria ofensa a bem jurídico penal, por ainda não se poder falar de vida humana em formação.
A questão do bem jurídico, vida humana em formação, é muito significativa, pois, atua diretamente na não tipificação criminal do aborto quando o feto é anencefalo, justamente, porque, embora haja a geração de estrutura orgânica no útero, a anencefalia faz seguro não se poder falar da efetiva existência do desenvolvimento de uma vida humana.
A nuance está nas hipóteses de aborto autorizados pela legislação, no caso brasileiro para a garantia da vida da gestante (aborto necessário ou terapeutico) e quando a gravidez é resultante de violência sexual (aborto emocional ou sentimental).
No que tange ao aborto terapêutico, o Brasil está inserido entre os 39 países com posicionamento restritivo na matéria, pois, somente a situação de necessidade para salvar a vida da própria gestante autoriza a medida, sendo que os países de posição mais liberal, 56 no total, admitem o abortamento para a preservação da saúde da mulher, entendida em aspecto completo, considerando o bem estar físico e mental, não somente o risco de produção da morte, caso a gravidez tenha continuidade.
Indiscutível que, em relação à prática abortiva para salvar a vida da gestante, há bens jurídicos legítimos em choque, de um lado a vida da própria gestante e de outro a vida humana em formação em seu útero, sendo típica hipótese de estado de necessidade, não se vinculando, portanto, a qualquer prazo, pois a inviabilidade de exigir-se o sacrifício do bem jurídico representado pela vida da gestante, independente do momento da gestação, torna qualquer tentativa de fixação de prazo, desprovida de sustentação lógico-racional mínima, complementamente disforme com a estrutura dogmático-penal, ou seja, ainda que corporificada em lei, não vale.
No aborto emocional, a violência sexual sofrida pela mulher faz surgir o direito de escolha sobre interromper ou continuar com a gravidez resultante da violência, sendo a hipótese de causa de justificação, ou seja, é produzido o afastamento do caráter ilícito do fato, por se considerar que, embora a conduta possa de ajustar a descrição formal que a lei faz de um delito, não há reprovabilidade incidente sobre ela.
A questão é de certa obviedade, não tendo o Estado a capacidade de impedir seja a mulher vítima do ato violador de sua liberdade sexual, não dispõe de legitimidade para impor à vítima a obrigação de suportar as consequências da agressão sofrida, não havendo base republicana mínima em habilitar a estrutura do poder punitivo para punir quem é vítima de um crime, por não desejar sofrer processo de contínua revitimização.
Em todas as causas de justificação, sua ocorrência está balizada pela existência de determinada condição fática, assim é com a legítima defesa, com o estado de necessidade e com o exercício regular de um direito, sendo que o aborto praticado pela vítima de violência sexual equivale a essas jutificantes, com a simples distinção de estar na parte especial do Código Penal e não em sua parte geral.
Com isso, fica muito evidente não se poder negar o direito à prática do aborto sentimental, quando ocorrida a circunstãncia fática que o justifica, qual seja, a gravidez proviniente de violência sexual, sendo retirada qualquer possibilidade de o Estado estabelecer prazo para a realização do abortamento, assim como, no aborto terapêutico, recaindo a fixação de prazos, na total ausência de sustentação racional e lógica, em direto confronto com a estrutura dogmático-penal, portanto, caso existisse, seria uma regra inválida.
Claramente, o Brasil adota posicionamento bastante restritivo na matéria do aborto, não o admitindo para a preservação da saúde da gestante, mas, somente quando há risco para a sua vida e, ainda, havendo insegurança jurisprudencial em afirmar que não ocorre o delito, quando o abortamento se dá até 12 semanas de gestação, hipótese de evidente inexistência de bem jurídico penal.
Com efeito, caso aprovado fosse projeto de lei que tentasse limitar ainda mais o sistema já restritivo do Brasil, fixando prazo para a realização do abortamento, nas hipóteses em que ele está autorizado, careceria de racionalidade mínima, sendo inaplicável, ante seu confronto direto com a estrutura dogmático-penal influente na matéria.
O que se constata, é ser questão, em verdade, moral e religiosa, portanto, incapaz de ser imposta como legislação estatal a disciplinar a pauta comportamental de toda a sociedade, sob pena de estar se convertendo o Estado republicano em um Estado teocrático, portanto, habilitando o exercício autoritário e concentrado do poder por aqueles que professam determinado credo.
Em definitivo, não compete ao Estado disciplinar quais são os valores morais e religiosos aceitos e quais não o são, sendo sua função, apenas, atuar nas hipóteses de conflito, visando frear a ofensa aos bens jurídicos legítimos e adotar as medidas adequadas em relação aos que os ofenderam.
Assim, na temática do aborto: a) não há crime, quando realizado na gravidez de até 12 meses, embora a Jurisprudência brasileira relute em afirmar categoricamente essa realidade, decorrente na inexistência do bem jurídica vida humana em formação, com isso admitindo a punição penal, de forma irracional e descontrolada, em situações em que a pessoa não ofendeu qualquer bem jurídico; b) não há crime no abortamento de feto anencefalico, pela inexistência de ofensa ao bem jurídico, vida humana em formação; c) é justificada prática do aborto quando a gravidez resulta de violência sexual, não havendo desvalor na conduta, independente do momento gestacional em que se realize a prática abortiva; d) há estado de necessidade quando ocorre o aborto terapéutico, portanto, também não há crime e a permanência do risco para a vida da gestante, faz também com que não se possa vincular a prazos.
Em resumo, tentar estabelecer um marco temporal, considerando a fase gestacional, para permitir a prática abortiva é desprovido de base racional e lógica, sem qualquer fundamentação juridicamente válida que lhe dê suporte, estando diante de projeto de lei natimorta.
[1] é professor de Direito Penal em cursos de graduação e pós-graduação, professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná e no Curso Cers, mestre e doutor em Direito Penal, coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais e do Núcleo de Estudos Avançados em Ciências Criminais e membro do Conselho de Direitos Humanos do Município de Curitiba.