Stability and public interest: the impacts of the administrative reform on brazilian public service
RESUMO: A Proposta de Emenda Constitucional (PEC 32/2020), que introduz a Reforma Administrativa, que foi tratada como prioridade no governo de Jair Bolsonaro. Tem como pretensos objetivos a modernização da Administração Pública e o fim de benefícios considerados desproporcionais. Uma das formas de atingir estes fins seria a mudança do atual regime de estabilidade dos servidores públicos. O presente trabalho tem como objetivo analisar o conflito entre a interferência na estabilidade projetada pela Reforma e o princípio do interesse público. Ademais, visa-se a observar a relação entre a estabilidade do servidor público e a autonomia necessária para a execução das suas funções. Parte-se, então, da pressuposição de que a reforma em questão facilita práticas de patrimonialismo e clientelismo no serviço público, uma vez que sem estabilidade e independência, em vez de servidores livres para o efetivo exercício da vontade legal e do interesse público, como preveem os princípios administrativos, teríamos servidores pressionados e sem compromisso com as instituições. A pesquisa foi realizada por meio de revisão doutrinária sobre a importância da estabilidade e sua essencialidade para a garantia do interesse público, bem como um apanhado de toda a extensa legislação existente sobre o tema, desde sua origem no direito administrativo brasileiro até sua composição atual.
Palavras-chave: Reforma Administrativa. Serviço Público. Estabilidade. Interesse Público.
ABSTRACT: The proposed constitutional amendment nº 32/2020 (PEC 32/2020), which introduces the Administrative Reform, was treated as a priority in the government of Jair Bolsonaro. Its purported objectives are the modernization of Public Administration and the end of benefits considered disproportionate. One of the ways to achieve these ends would be to change the current stability regime for public servants. This paper aims to analyze the conflict between the interference in stability projected by the Reform and the principle of public interest. Furthermore, the aim is to observe the relationship between the stability of public servants and the autonomy necessary to carry out their functions. We depart from the assumption that the reform in question facilitates patrimonialism and clientelism practices in the public service. That is because, with no stability and independence, instead of free servants for the effective exercise of the legal will and public interest, as the administrative principles lay out, there would be public servants under pressure and without commitment to the institutions. The research was carried out through a doctrinal review on the importance of stability and its essentiality to guarantee the public interest, as well as an overview of all the extensive existing legislation on the subject, from its origins in Brazilian administrative law to its current composition.
Keywords: Administrative Reform. Public service. Stability. Public Interest.
1 INTRODUÇÃO
A Proposta de Emenda Constitucional (PEC nº 32/2020) elaborada pelo Ministério da Economia, surge em meio a pandemia de Covid-19 e visa a alterar dispositivos sobre servidores e empregados públicos, além de modificar a organização da administração pública. Trata-se, portanto, de ampla reforma em relação ao regime de trabalho dos servidores públicos.
A exposição de motivos expressa a suposta pretensão de conferir melhora a agilidade e eficiência dos serviços oferecidos pelo Estado. Para alcançar tal objetivo, é colocada, entre outras medidas, o fim da estabilidade, que pode abrir espaço para perseguições políticas e demissões injustas. Desse modo, intentamos, com a presente pesquisa, analisar se a reforma administrativa, ao interferir na estabilidade dos servidores públicos, implica em conflito com o interesse público.
A pesquisa sobre os princípios da estabilidade e do interesse público dos servidores se apoiará inicialmente na doutrina de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, na dissertação de mestrado de Teresa Cristina Padilha de Souza e outros artigos que abordam a temática aqui trabalhada. Posteriormente, será analisada a disciplina legal acerca da estabilidade e do interesse público. Após, será feita a análise crítica da estabilidade na reforma administrativa, a fim de inferir se a Reforma Administrativa afeta o interesse público ao interferir na estabilidade. A referida PEC segue em tramitação, de modo que nos cabe refletir criticamente acerca das mudanças que propõe.
2 SERVIÇO PÚBLICO, CONCURSO PÚBLICO E ESTABILIDADE
O serviço público é definido por DI PIETRO (2018) como toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que este exerça diretamente, ou por intermédio de delegados, a fim de satisfazer as necessidades coletivas. Nesse sentido, o princípio da continuidade do serviço público, segundo o qual o mesmo não pode parar, guarda relação com os contratos administrativos e com o exercício da função pública.
A estabilidade prevista no art. 41 da Constituição Federal (1988) diz respeito aos servidores públicos estatutários investidos em cargo de caráter efetivo, que, após 3 (três) anos de sua nomeação, em virtude de concurso público, obtiverem boa avaliação por seu desempenho e tenham também o desempenho como parâmetro para a progressão de carreira.
O ingresso ao serviço público, previsto no inciso II do art. 37 da Constituição Federal (1988) dispõe que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação em concurso público de provas ou provas e títulos, que guardem relação com a natureza e complexidade do cargo ou emprego. Ademais, o ingresso no serviço público por meio de concurso decorre dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, uma vez que os concursos são amplamente divulgados e seguem critérios objetivos, sendo uma forma democrática de selecionar pessoas capacitadas para o exercício das mais variadas funções, impedindo o favorecimento e protegendo a administração pública contra práticas tais como: nepotismo e troca de favores.
A estabilidade é também uma garantia à sociedade, e justifica-se pela indispensável neutralidade e imparcialidade no exercício das funções públicas. De modo que a estabilidade e o ingresso no serviço público por meio de concurso são importantes aliados no combate à corrupção e ao nepotismo. Ademais, há que se pensar na importância da estabilidade na manutenção do Estado Democrático de Direito, uma vez que o exercício do serviço público efetivo deve se dar a despeito de interesses políticos ou pessoais, priorizando sua continuidade e a segurança jurídica dos cidadãos (SILVA, 2017).
No mesmo sentido, Ferreira e Vailate (2020) defendem que a estabilidade no serviço público é instrumento para sua qualidade, continuidade e efetividade, constatando que a estabilidade, além de ser uma garantia ao servidor, é uma garantia à coletividade, e fundamenta-se na continuidade administrativa e na independência funcional do servidor, de modo que este tenha segurança jurídica para realizar seu trabalho sem sucumbir às pressões externas e garantir o atendimento do interesse público.
Teresa Cristina Souza (2002), no quinto capítulo de sua tese de doutorado, ressalta a visão negativa que os cidadãos têm de estabilidade, que é muitas das vezes induzida por nossos dirigentes, que se esforçam para apontar os servidores públicos estáveis como os grandes responsáveis pelo déficit econômico do Estado, apontando a folha de pagamento dos servidores como um entrave ao equilíbrio das contas Públicas. É possível observar essa narrativa neoliberal se repetindo, a fim de aprovar a PEC 32/2020.
2.1 Estabilidade e eficiência
O governo atual comemora o atual enxugamento do quadro de servidores (Ministério da Economia, 2021), ignorando que isso gera sobrecarga aos que ficam, perda de qualidade do serviço público, aumento da demora na resolução das demandas, além da contratação de trabalhadores terceirizados submetidos a péssimas condições de trabalho e com grande dificuldade de acesso a direitos trabalhistas básicos[1] ou mesmo funcionários comissionados. Com isso, o governo se apoia numa concepção neoliberal de eficiência, que se distancia da concepção trazida por Hely Lopes Meirelles (MEIRELLES, p. 102, 2003 apud PIETRO, p. 151, 2018), segundo a qual a eficiência como dever da administração pública se impõe a todo agente público que deve realizar com presteza, perfeição e rendimento suas atribuições, de modo que o serviço público seja satisfatório às necessidades da comunidade.
Destacamos a observação de Villa, que sublinha não haver dúvida acerca da importância da eficácia na administração estatal, porém, “a eficácia que a Constituição exige da administração não deve se confundir com a eficiência das organizações privadas nem é, tampouco, um valor absoluto diante dos demais” (VILLA, p. 637, 1995 apud PIETRO, p. 151, 2018). Não se trata, portanto, de uma concepção ideológica e economicista, mas jurídica. A eficácia deve se somar aos demais princípios da administração, sem sobrepor-se a eles, sob pena de risco à segurança jurídica e do Estado de Direito (PIETRO, p. 152, 2018).
Souza (2002) evidencia que a estabilidade respeita a hierarquia e a impessoalidade, que são caracterizados como preceitos básicos da administração que se volta à eficiência e racionalidade. Entretanto, não se pode apontar para os servidores públicos como causa do déficit do Estado, sobretudo se considerarmos a redução do quadro de servidores nos últimos anos. Ademais:
Em primeiro lugar, como o próprio nome define, o serviço público não é uma corporação capitalista, com o objetivo de gerar lucros. Uma vez que sua missão é atender à sociedade, a administração pública precisa estar isenta de jogos políticos e trocas de favores; a própria natureza do cargo público pressupõe neutralidade e impessoalidade. (SOUZA, 2002, p. 80).
Nesse sentido, a atual proposta de reforma administrativa se propõe a deixar o Estado mais eficiente, porém, traz uma concepção economicista de eficiência, que se sobrepõe e entra em desacordo com os demais princípios da administração pública.
2.2 Importância da Estabilidade
Ademais, importa ressaltar que estabilidade não implica na completa impossibilidade de demissão. O §1º do art. 41 dispõe das possibilidades de perda do cargo, de modo que a estabilidade não é absoluta. Para isso, o servidor deve incorrer em falta grave, todo o ritual processual é seguido, com contraditório e ampla defesa. Portanto, a estabilidade também não pode ser confundida com impunidade (SOUZA, 2002, p. 77).
Souza (2002) defende que protegendo a estabilidade do servidor, protegemos a sociedade e impedimos que o setor público e seus órgãos se transformem em cabides de empregos, palco de nepotismo, clientelismo e cartorialismo:
O principal objetivo da estabilidade é garantir imunidade aos servidores em relação a perseguições políticas e demissões injustas. O servidor público precisa sentir-se seguro para poder ter como prioridade única prestar serviços à sociedade, e não a seus superiores hierárquicos, por pressão ou visando a obtenção de simpatias ou privilégios. (SOUZA, 2002, p. 79).
A situação dos celetistas na administração pública é bastante delicada, vez que, sem estabilidade, são comumente vítimas de clientelismo:
A qualquer momento, um servidor não-estável podia ser demitido, sem qualquer justificativa, como prevê o regime celetista, bastando para isso um mero capricho, perseguição ou pedidos políticos visando abertura de vagas para novas contratações. Estas situações se evidenciavam sempre que havia uma mudança ministerial ou qualquer alteração na presidência de um determinado órgão.” (SOUZA, 2002, p. 85).
2.3 O princípio do interesse público e a estabilidade
Di Pietro (2018) coloca que o direito passou a ser um meio para a consecução da justiça social, e o interesse público, que objetivam o bem-estar coletivo, ampliou as atividades assumidas pelo Estado a fim de atender necessidades coletivas:
Em nome do primado do interesse público, inúmeras transformações ocorreram: houve uma ampliação das atividades assumidas pelo Estado para atender às necessidades coletivas, com a consequente ampliação do próprio conceito de serviço público. O mesmo ocorreu com o poder de polícia do Estado, que deixou de impor obrigações apenas negativas (não fazer) visando resguardar a ordem pública, e passou a impor obrigações positivas, além de ampliar o seu campo de atuação, que passou a abranger, além da ordem pública, também a ordem econômica e social. Surgem, no plano constitucional, novos preceitos que revelam a interferência crescente do Estado na vida econômica e no direito de propriedade; assim são as normas que permitem a intervenção do Poder Público no funcionamento e na propriedade das empresas, as que condicionam o uso da propriedade ao bem estar social, as que reservam para o Estado a propriedade e a exploração de determinados bens, como as minas e demais riquezas do subsolo, as que permitem a desapropriação para a justa distribuição da propriedade; cresce a preocupação com os interesses difusos, como o meio ambiente e o patrimônio histórico e artístico nacional. Tudo isso em nome dos interesses públicos que incumbe ao Estado tutelar. É, pois, no âmbito do direito público, em especial do Direito Constitucional e Administrativo, que o princípio da supremacia do interesse público tem a sua sede principal. (PIETRO, p. 134, 2018).
Entendemos que a estabilidade dos servidores públicos é basilar para o interesse público, uma vez que garantir sua continuidade, se firma uma importante barreira ao desvio de poder ou desvio de finalidade:
Se a lei dá à Administração os poderes de desapropriar, de requisitar, de intervir, de policiar, de punir, é porque tem em vista atender ao interesse geral, que não pode ceder diante do interesse individual. Em consequência, se, ao usar de tais poderes, a autoridade administrativa objetiva prejudicar um inimigo político, beneficiar um amigo, conseguir vantagens pessoais para si ou para terceiros, estará fazendo prevalecer o interesse individual sobre o interesse público e, em consequência, estará se desviando da finalidade pública prevista na lei. Daí o vício do desvio de poder ou desvio de finalidade, que torna o ato ilegal.” (PIETRO, p. 134-135, 2018).
Importa relembrar que para Souza (2002) o principal objetivo da estabilidade é a garantia de segurança jurídica para que os servidores exerçam sua função sem que sejam vítimas de clientelismo, que sejam imunes a possíveis perseguições políticas. Ao garantir a estabilidade e os concursos públicos, é possível evitar que os órgãos públicos se tornem cabides de empregos.
Portanto, a pretensa modernização do Estado trazida pela Reforma Administrativa se traduz, na realidade, em priorização do interesse do mercado, que tem apoiado reformas que buscam a flexibilização do trabalho, seja na esfera pública ou na privada.
3 ESTABILIDADE: DISCIPLINA LEGAL
O instituto da estabilidade, debatido pela PEC 32/2020, de forma alguma é novidade no ordenamento jurídico brasileiro. Tem origens centenárias, e tem sua importância confirmada pelo fato de ter lugar cativo em todas as Constituições Federais desde 1934. De fato, ao analisarmos a legislação brasileira, vemos que a questão da estabilidade é extremamente regrada, ao contrário do que os apoiadores da já referida Reforma Administrativa tentam disseminar, o que põe em cheque seus pressupostos.
3.1 O instituto da estabilidade na história
A garantia de estabilidade no serviço público aparece na legislação brasileira pela primeira vez em 1915, na lei número 2924, que definia o orçamento anual do país. Esta versava apenas sobre os funcionários titulados da Estrada de Ferro Central e ainda sem fazer menção ao termo, a lei afirmava que depois de 10 anos de serviço, os funcionários só poderiam ser demitidos por falta grave, verificada em processo administrativo em que seria admitida plena defesa.
O conceito vem reforçado na Constituição de 1934, em seu artigo 169. Embora ainda não se explicite o termo “estabilidade”, a garantia agora se estende a todos os servidores públicos com mais de dez anos de efetivo exercício, sendo este período diminuído para dois anos no caso de servidores nomeados por meio de concurso público. Além disso, assegurava que funcionários com menos de dez anos de serviço efetivo não pudessem ser destituídos dos seus cargos, senão por “justa causa ou motivo de interesse público”. Em todas as Constituições posteriores, mesmo as outorgadas em meio aos regimes do Estado Novo e Ditadura Militar, o dispositivo foi mantido.
3.2 Pós Constituição de 1988
Na Constituição Federal de 1988 a garantia da estabilidade se encontra no artigo 41, tendo sido modificado pela Emenda Constitucional 19/1998:
Art. 41. São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).
§ 1º O servidor público estável só perderá o cargo: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).
I – em virtude de sentença judicial transitada em julgado; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).
II – mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).
III – mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).
§ 2º Invalidada por sentença judicial a demissão do servidor estável, será ele reintegrado, e o eventual ocupante da vaga, se estável, reconduzido ao cargo de origem, sem direito a indenização, aproveitado em outro cargo ou posto em disponibilidade com remuneração proporcional ao tempo de serviço. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).
§ 3º Extinto o cargo ou declarada a sua desnecessidade, o servidor estável ficará em disponibilidade, com remuneração proporcional ao tempo de serviço, até seu adequado aproveitamento em outro cargo. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).
§ 4º Como condição para a aquisição da estabilidade, é obrigatória a avaliação especial de desempenho por comissão instituída para essa finalidade. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).
Apenas o servidor que for admitido por concurso público tem direito a estabilidade na administração pública. A grande exceção no sistema jurídico brasileiro se dá em favor dos servidores públicos celetistas que no tempo da promulgação da Constituição de 1988 tivessem exercendo suas funções há pelo menos cinco anos continuados. Estes empregados foram salvaguardados pelo art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que os considerou estáveis.
Em consonância à Constituição, na lei 8.112/90, que rege o servidor público federal, a garantia da estabilidade se encontra nos arts. 20 a 22. Um instituto importante que aparece nas duas situações é o estágio probatório, conforme bem enunciado no art. 20 da lei supracitada:
Art. 20. Ao entrar em exercício, o servidor nomeado para cargo de provimento efetivo ficará sujeito a estágio probatório por período de 24 (vinte e quatro) meses, durante o qual a sua Estágio Probatório aptidão e capacidade serão objeto de avaliação para o desempenho do cargo, observados os seguinte fatores:
I – assiduidade;
II – disciplina;
III – capacidade de iniciativa;
IV – produtividade;
V – responsabilidade.
Importante não confundir estágio probatório com a própria estabilidade, pois o primeiro refere-se ao cargo, sendo que a cada cargo efetivo em sua carreira pública o servidor se encontra sujeito ao estágio, enquanto a estabilidade é adquirida uma única vez. De toda forma, estabilidade e estágio probatório servem ao mesmo objetivo, conforme explicitado no Parecer Nº AGU/ MC-01/2004 (vinculante para toda a Administração Pública Federal). A estabilidade, ainda que seja um direito do servidor, também é uma garantia aos cidadãos de que o servidor não será objeto de pressões ou influências hierárquicas, políticas, de conveniência ou interesse. Nesse sentido, a garantia da estabilidade é sobretudo relacionada ao interesse público muito mais do que ao interesse pessoal do servidor.
O estágio probatório lhe afere tanto a aptidão para o serviço público quanto – e principalmente – para a confiabilidade da permanência nele, efeito que se reflete na proteção do interesse dos cidadãos. Por isto, mesmo institutos diferentes e diversos, a finalidade institucional – e constitucional – de ambos só pode ser compreendida como garantia e segurança dos cidadãos e do próprio interesse público.
E embora confirme tratar-se de institutos diversos, o parecer supracitado instituiu que “a alteração do prazo de aquisição da estabilidade no serviço público, de dois para três anos (art. 41, Constituição Federal com redação da Emenda Constitucional nº 19, de 1998) importa na dilatação do período de prova ou confirmação também para três anos.” Depois desse período, com ou sem avaliação, a Administração é obrigada a reconhecer a estabilidade do servidor (Parecer GQ 196, DO 6.8.1999).
Necessário frisar que a estabilidade no serviço público brasileiro não é absoluta. Mesmo em sua primeira menção histórica, ainda em 1915, se observava a possibilidade de demissão em razão de falta grave, demonstrada por meio de processo administrativo. Na legislação atual, a situação é bastante parecida. As possibilidades de um servidor público estável perder seu cargo estão elencadas no art. 41, § 1º da Constituição Federal.
Uma novidade introduzida pela Emenda Constitucional 19/98, além da possibilidade de enquadramento em algum tipo administrativo infracional que determine o início de processo administrativo, foi a possibilidade da perda do cargo em virtude de procedimento de avaliação periódica de desempenho. Embora o art. 41, § 1º, III, seja claro ao afirmar que a avaliação precisa ser regulamentada por lei complementar, esta inexiste até hoje.
4 A Reforma Administrativa
Em um breve estudo da legislação verifica-se que a estabilidade é uma instituição centenária no direito brasileiro, que sobreviveu aos mais diversos regimes, sendo mantida em todas as constituições de 1934 em diante. Ela é de interesse tanto para o servidor quanto para a sociedade, pois garante que o servidor não será objeto de pressões ou influências hierárquicas, políticas ou conveniência.
Além disso, a narrativa de que a estabilidade é absoluta, onde o servidor pode “fazer o que quer” não se passa de um mito. Desde a primeira aparição do instituto na legislação pátria há a possibilidade de exoneração do servidor estável. Atualmente o servidor é testado tanto em estágio probatório quanto em avaliações periódicas de desempenho, podendo, observando-se o contraditório e a ampla defesa, ser exonerado em razão de seu baixo rendimento.
Nesse sentido, avaliando a estabilidade em sua relação com o interesse público, vemos que este último não pode ser pensado de maneira abstrata, já que assim não ofereceria subsídios suficientes para compreendermos os impactos da reforma administrativa, ainda que ela esteja supostamente sendo feita em seu nome. Somente caracterizando o que configura este interesse público à luz dos princípios constitucionais e das reflexões doutrinárias é que podemos cotejar os verdadeiros impactos que a PEC 32/2020 realmente acarreta para o arcabouço geral do direito administrativo.
A análise coerente da Reforma Administrativa só pode ser iniciada identificando em primeiro lugar seus pressupostos, na medida que são estes que subsidiam a razão de existência da reforma, e suas características estruturais, pois só decompondo sua estrutura é possível discernir os impactos que traz para a administração pública.
O que fundamenta a necessidade da reforma é o equilíbrio das finanças públicas e a maior eficiência dos serviços prestados pelo Estado. Ambas as considerações se revelam dúbias e ideológicas, tendo em vista que os servidores públicos que mais despesas geram para os cofres públicos permaneceram fora da reforma. Para além disso, a medida de eficiência aqui considerada se baseia numa brutal subalternização dos novos servidores públicos às decisões daqueles que se encontram em postos de comando. Os mecanismos de contratação e o enfraquecimento da estabilidade dos servidores torna a adequação destes aos parâmetros estabelecidos pelos órgãos superiores uma medida de pura sobrevivência no cargo ao qual lhe foi confiado.
A reforma, por acentuar consideravelmente a deterioração já existente das relações de trabalho no serviço público, acaba por assumir um caráter patrimonialista (APUFSC, 2021). Essa determinação não é obra do acaso. As alterações defendidas no projeto introduzem dentro da esfera pública uma lógica majoritariamente privada de operacionalização das funções de Estado.
Esse mecanismo de incorporação do raciocínio de mercado dentro das instituições públicas inevitavelmente acarreta em uma diminuição da qualidade do serviço e em uma precarização das condições de vida do servidor. Tal afirmação não visa a ter caráter doutrinário, mas leva em conta a natureza distinta que as funções de Estado possuem quando comparadas com os demais órgãos da sociedade civil.
Entrando no tema da estruturação da PEC 32/2020 podemos iniciar colocando como sua consequência inicial que:
Em termos gerais, pode-se dizer que ela extingue o RJU e institui um novo regime que possibilita cinco vínculos distintos entre os servidores e a administração pública, que são: vínculo de experiência; cargo típico de Estado; cargo por prazo indeterminado; vínculo por prazo determinado; e cargo de liderança e assessoramento. (BRAUNERT, et al, 2021).
O primeiro ponto a ser ressaltado aqui é que a criação destes regimes jurídicos é uma consequência da maneira com que a reforma encara o serviço público. Na mesma medida em que a reforma é divulgada como uma maneira de remover os privilégios do serviço público ela ainda tem que trazer em seu conteúdo uma forma de manter as garantias dos servidores de “alto escalão”. Essa contradição faz com que o projeto que surge na toada de “desburocratização” tenha que instituir novos regimes jurídicos de trabalho para que a manutenção dos gastos com os servidores mais dispendiosos possa ser disfarçada, introduzindo-a em um regime especial.
É importante mencionar que mesmo os regimes supostamente diferentes acabam acarretando numa mesma precarização. O vínculo por prazo determinado já possui uma estipulação de término previamente acordada, mas sua contraparte, o vínculo por prazo indeterminado, não é uma solução. Afinal, se o primeiro coloca o desemprego num horizonte próximo já conhecido, o segundo faz com que ele possa acontecer a qualquer momento.
Além disso, diversos novos institutos como este dos regimes dizem a que vieram sem se comprometer com os pormenores. Em outras palavras, os regimes de trabalho são discriminados e suas características são colocadas, mas os servidores atualmente existentes que irão compor tais regimes ficam a cargo de legislação posterior que irá lhes detalhar. A insegurança jurídica gerada nesse tipo de estratégia é tremenda, pois se pode especular sobre os cargos que passam a compor especificamente cada regime, mas a definição propriamente dita só virá a posteriori, quando as consequências dos regimes jurídicos já estão devidamente aprovadas. Confirmando este ponto temos, na letra do projeto, a proposta de inserção do seguinte artigo:
Art. 39. Lei complementar federal disporá sobre normas gerais de:
I – gestão de pessoas;
II – política remuneratória e de benefícios;
III – ocupação de cargos de liderança e assessoramento;
IV – organização da força de trabalho no serviço público;
V – progressão e promoção funcionais;
VI – desenvolvimento e capacitação de servidores; e
VII – duração máxima da jornada para fins de acumulação de atividades remuneradas nos termos do art. 37, caput, incisos XVI-A e XVI-B.
Retomando rapidamente os objetivos da estabilidade vemos que esta surge com a “concepção de uma burocracia no sentido típico ideal weberiano, qual seja, a formação de um corpo qualificado de funcionários permanentes, recrutados com base em critérios técnicos e impessoais” (ABRÚCIO & LOUREIRO, apud, BRAUNERT). Nesse sentido, ainda que esteja sendo atacada como um privilégio, a estabilidade não surgiu da mera vontade de determinados indivíduos, mas da necessidade concreta do período em que ela foi proposta, estando presente em todas as constituições desde 1934.
Em outras palavras, a constância é a característica das funções realizadas pelo Estado e se reflete nos servidores que gozam dela para evitar os problemas existentes no período anterior à estabilidade. Um destes empecilhos era o forte caráter pessoal das decisões que contratavam e determinavam a investidura de servidores públicos, estando diretamente vinculado àquele que o contratou.
A PEC 32/2020 visa a restituir este vínculo umbilical do servidor com seu contratante, mas por um caminho diferente. Agora, pela redação do projeto de reforma, o caráter pessoalizado e alheio ao interesse público não acontece diretamente no momento da contratação, mas na possibilidade iminente de demissão. Ainda que o ato de contratar não seja necessariamente pessoal, a ambiguidade quanto à rescisão do contrato faz com que mesmo um servidor sem qualquer relação prévia com seus superiores passe, na prática, a ter que se submeter aos parâmetros definidos por ele.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Resta agora traçar um balanço final tentando abarcar os principais impactos que a perda da estabilidade gera para o interesse público levando em conta os fatores aqui tomados como fundamentais, como a interpretação doutrinária e o aspecto legislativo, mas também a análise dos pressupostos, tanto os que fundamentam e justificam as medidas da reforma, como os que levaram a criação do instituto da estabilidade em primeiro lugar.
É o entendimento decorrente deste trabalho que a análise da estabilidade dos servidores públicos não pode ser analisada em um vácuo, apartada das determinações que a condicionaram historicamente. A apresentação a-histórica da estabilidade é um dos mecanismos com o qual os proponentes da reforma buscam apresentá-la como algo desnecessário e alheio à sociedade brasileira sendo que foram justamente as insuficiências geradas por servidores públicos instáveis aquelas que criaram a necessidade da estabilidade do serviço público em primeiro lugar.
Partindo desta contextualização histórica a análise da estabilidade na legislação fica mais clara e observamos que as funções dela são rigorosamente determinadas justamente para garantir o cumprimento de suas funções, mas sem acarretar em um abuso do direito assegurado. Além disso, a incorporação da estabilidade em todos os ordenamentos brasileiros desde sua primeira inserção demonstra os ganhos que este mecanismo pode proporcionar no aprimoramento da administração pública e na garantia da eficiência dos serviços prestados pelo Estado.
Estabelecidos estes parâmetros, resta agora determinar a importância que a estabilidade cumpre na garantia do interesse público. Conforme observamos ao longo do trabalho, o interesse público não é um conceito ausente de determinações, para satisfazê-lo não se pode desconsiderar o caráter geral e abstrato do direito e tampouco se pode equipará-lo com aspectos notadamente mercadológicos como a PEC 32/2020 busca fazer, amalgamando os critérios de eficiência do Estado com os do mercado e metamorfoseando o interesse público em uma espécie de “satisfação do cliente”.
Aqui, o fato determinante é que a manutenção do interesse público tal como incorporado historicamente no ordenamento brasileiro não pode ser realizado sem um corpo burocrático minimamente impessoal e selecionado por meio de critérios preestabelecidos. Este mecanismo assegura sua eficiência intrínseca, mas a estabilidade é quem garante sua eficiência de forma extrínseca, na medida em que torna o servidor que a porta imune a influências externas e pressões para o desvio de função.
Nesse sentido, a estabilidade não existe enquanto uma característica das funções de Estado descolada dos demais aspectos sociais. Pelo contrário, o reconhecimento de sua necessidade ao longo da história, a sua manutenção ao longo dos ordenamentos jurídicos do Brasil e sua reivindicação atual pelos trabalhadores que se opõem à PEC 32/2020 está intimamente ligada com a garantia do interesse público concebido no âmbito do direito administrativo e imune às movimentações neoliberais e patrimonialistas que buscam submetê-lo a uma lógica de mercado e de precarização do serviço público brasileiro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Autores:
Carlos Santos Valeriano – Graduando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Ex-bolsista do PET Direito UFSC.
Camila Martins – Advogada, graduada em direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Géssica Carolina Goulart Pinto – Advogada, graduada em direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital: retrocesso social e avanços possíveis, vinculado à UFRGS/USP/CNPQ; membro do grupo de Pesquisa em Meio Ambiente, Trabalho e Sustentabilidade vinculado à UFSC/CNPQ.
Luiz Felipe Domingos – Mestrando pelo PPGD da Universidade Federal de Santa Catarina, bacharel em direito pela UFSC, membro do Grupo de Pesquisa em Constitucionalismo Político.
[1] Valdete Souto Severo disserta sobre as problemáticas da terceirização no serviço público no texto: SOUTO SEVERO, V. A perversidade da terceirização em serviços públicos. Revista da Escola Judicial do TRT4, v. 1, n. 02, p. p. 185-220, 11 nov. 2019.