Direitos Humanos

Apátridas: uma ofensa aos direitos humanos?

Karen Bianca Batalha Carvalho[1]

RESUMO

Este artigo vem tratar se a condição de apátrida, decorrente da adoção de critérios variados para a obtenção da nacionalidade, é uma ofensa aos direitos humanos. Para isso, serão abordadas quais as origens e funções da D.U.D.H e a sua relação com o ordenamento pátrio, além de verificar o que seria nacionalidade, quais os critérios para a sua obtenção e os seus princípios norteadores. Ademais, irá se verificar como a jurisprudência e os organismos internacionais buscaram solucionar o conflito de dois princípios presentes no que se concerne como direito à nacionalidade.

Palavras-chave: Soberania Estatal; Nacionalidade; Apátridas.

RESUMEN

Este artículo trata de si la condición de apatridia, resultante de la adopción de critérios variados para la obtención de la nacionalidad, constituye una ofensa a los derechos humanos. Para ello se abordarán los orígenes y funciones de la DUDH y su relación con el ordenamiento nacional, además de verificar qué nacionalidad sería, cuáles son los criterios para obtenerla y sus principios rectores. Además, se verificará cómo la jurisprudencia y los organismos internacionales buscaron resolver el conflicto de dos principios actuales en torno al derecho a la nacionalidad.

Palabras clave: Soberanía del Estado; Nacionalidad; Apátridas.

ABSTRACT

This article deals with whether being stateless, resulting from the adoption of diferente criteria for obtaining nationality, is an offense to human rights. For this, the origins and functions of the D.U.D.H and its relationship with the national order will be addressed, in addition to verifying what nationality would be, what are the criteria for obtaining it and its guiding principles. In addition, it will be verified how the jurisprudence and international organizations sought to resolve the conflict of two present principles with regard to the right to nationality.

Keywords: State Sovereignty; Nationality; Stateless.

1 INTRODUÇÃO

Um dos elementos que pressupõe a existência de um Estado é a presença de um povo que esteja a ele vinculado, este possui todas as prerrogativas e garantias de pertencer aquela localidade, de ter uma nacionalidade. No entanto, existem aqueles que, por diversas questões que estão além dos indivíduos, não possuem um vínculo com nenhum Estado, são os chamados apátridas. Esse artigo irá abordar um pouco sobre a questão, sob o ponto de vista do conflito existente entre as medidas impostas na tentativa de erradicar a apatridia e a soberania estatal, que muitos Estados preferem tratar como absoluta.

Ao longo do artigo será apresentada uma visão geral sobre a origem da Declaração Universal dos Direitos Humanos, as suas funções, a sua natureza jurídica e como ela se relaciona com o ordenamento brasileiro, analisando o artigo 15, I da D.U.D.H em conjunto com artigo 12 da Constituição Federal e se suscitando a seguinte dúvida: o caso dos apátridas seria uma ofensa à Declaração Universal dos Direitos Humanos ou apenas consequência do exercício da soberania dos Estados?

Além disso, dentro das nuances dos artigos citados, serão observados o conceito de nacionalidade, os fundamentos ou critérios para a sua obtenção e os seus princípios a fim de que isso ajude no esclarecimento do questionamento levantado. Por fim, serão apresentados alguns dados sobre apatridia e quais foram, até o momento, os progressos obtidos no combate a essa condição.

2 SURGIMENTO DO PROBLEMA DA APATRIDIA

Conforme aponta Roberto Dantas Rêgo:

A Primeira Guerra Mundial não apenas legou ao mundo somente a manutenção das tensões que culminariam na eclosão do segundo grande conflito que se seguiu, institucionalizadas pelo Tratado de Versalhes. O rearranjo do mapa político mundial ocasionado pela queda dos impérios Russo, Austro-Húngaro e Otomano provocou o surgimento das minorias e o absurdo incremento do número de pessoas apátridas, antes condição rara e internacionalmente irrelevante. (RÊGO, 2013, p. 17)

O destaca que, se Primeira Guerra Mundial causou o surgimento em massa da apatridia, a Segunda Guerra Mundial, com as desnacionalizações maciças operadas pelo Terceiro Reich, principalmente do povo judeu, por exemplo, trouxe uma ampliação desse fenômeno, gerando consequências devastadoras. (RÊGO, 2013). Diante dessa problemática e da ruptura com o direito internacional provocada pelas duas grandes guerras, bem como o horror provocado pelas práticas genocidas, houve a criação das Nações Unidas e a elaboração de um documento – a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) – para positivar de maneira universal os direitos humanos, que outrora tinham sua proteção sob a responsabilidade de cada Estado.

2.1 Origem da D.U.D.H

Inicialmente, é importante perceber que normatizar em escala global a proteção dos direitos humanos foi consequência, segundo Valério de Oliveira Mazzuoli (2014, p. 44) “de um lento e gradual processo de internacionalização e universalização.” No entanto, para que se compreenda como surgiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, atualmente, é o ápice da consubstanciação da proteção dos direitos humanos, é necessário revisitar as suas origens e ver os primeiros passos do sistema que se tem hoje.

Pode-se dizer que a proteção dos direitos humanos ganhou uma maior relevância internacional com surgimento do Direito Humanitário[2], da Liga das Nações[3] e da Organização Internacional do Trabalho[4]. Sem dúvida esses três precedentes contribuíram para “implementar a ideia de que a proteção dos direitos humanos deve ultrapassar as fronteiras estatais, transcendendo os limites da soberania territorial dos Estados para alçarem-se à categoria de matéria de ordem pública internacional.” (MAZZUOLI, 2014, p. 46).

Apesar dos precedentes citados acima representarem os primeiros contornos do “Direito Internacional dos Direitos Humanos”[5] foi o nascimento da ONU que configurou um verdadeiro marco no processo de internacionalização dos direitos humanos, pois após os incidentes da Segunda Guerra Mundial e a repercussão do Holocausto percebeu-se que faltava um sistema de normas específico para proteger os sujeitos na sua condição de seres humanos e houve, assim, uma maior preocupação em resguardar e garantir os direitos desses indivíduos para que episódios como aqueles jamais voltassem a se repetir.

Sendo assim, no anseio de salvaguardar esses direitos, foi adotada a Carta das Nações Unidas, a partir de 1945. Entretanto, mesmo tendo contribuído de forma pioneira para o processo de ‘universalização’ dos direitos humanos, a Carta da ONU, segundo Mazzuoli (2014, p. 55), “pecou em não ter ‘definido’ o conteúdo dos direitos humanos e liberdades fundamentais que apregoa”. Por não ter ficado definido com precisão o que seriam os tais direitos humanos e as tais liberdades fundamentais, criou-se na comunidade internacional um desejo de delinear e elucidar essas expressões. Dessa forma, para reparar a fragilidade da Carta das Nações Unidas, a ONU proclamou, em 10 de dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

2.2 Função da D.U.D.H

Depois de discorrer sobre o processo da universalização e internacionalização dos direitos humanos até chegar na Declaração Universal, será abordado qual a função da D.U.D.H, quais os objetivos da sua criação. Nesse sentido, de acordo com Mazzuoli (2014, p. 59), a D.U.D.H tem por função “estabelecer um padrão mínimo para a proteção dos direitos humanos em âmbito mundial, servindo como paradigma ético e suporte axiológico desses mesmos direitos.”

É preciso entender a Declaração Universal como um código de conduta mundial que declara a universalidade dos direitos humanos e que basta a condição de ser humano para reivindicar o exercício e a proteção desses direitos. Pode-se perceber que a definição da D.U.D.H traduz muito do objetivo de sua criação, qual seja: estabelecer um código de conduta mundial em relação ao respeito e a proteção dos direitos humanos para que as atrocidades ocorridas durante o Holocausto e a Segunda Guerra não voltem a se repetir.

2.3 Natureza Jurídica da D.U.D.H

Com relação a natureza jurídica, Mazzuoli apresenta em sua obra que:

“A Declaração Universal não é tecnicamente um tratado, eis que não passou pelos procedimentos tanto internacionais como internos que os tratados internacionais têm que passar desde a sua celebração até a sua entrada em vigor. Assim, a priori, seria a Declaração somente uma ‘recomendação’ das Nações Unidas, adotada sob a forma de resolução da Assembleia-Geral, a consubstanciar uma ética universal em relação à conduta dos Estados no que tange à proteção internacional dos direitos humanos.” (MAZZUOLI, 2014, p. 62)

O autor prossegue dando um caráter duplo a D.U.D.H, que, segundo ele, pode ser entendida como a melhor expressão dos ‘direitos humanos’ e ‘liberdades fundamentais’, mas também como norma jus cogens internacional.

3 DIREITO À NACIONALIDADE: direito humano e fundamental

Agora, visto que a visão geral já foi abordada, a D.U.D.H pode ser explanada de uma maneira mais aprofundada e, em específico, o artigo a ser tratado neste tópico será o artigo 15 da D.U.D.H, que trata sobre o direito à nacionalidade.

Dessa forma, a D.U.D.H versa em seu art.15 (NAÇÕES UNIDAS, 1948):

Artigo 15

1. Todo homem tem direito a uma nacionalidade.

2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade.

Baseando-se nesse artigo, a nossa Constituição trata em seu art.12 sobre as formas de se obter a cidadania brasileira, separando os brasileiros em: natos e naturalizados, além de tratar dos cargos privativos de brasileiros natos e as formas de se perder a cidadania brasileira. Já no art. 13, trata sobre a língua oficial e os símbolos do país.

Antes de prosseguir, é preciso responder à pergunta: o que é nacionalidade? De acordo com Branco e Mendes (2015), esta é uma característica do nacional, isto é, de um indivíduo que integra um corpo social politicamente organizado. Então, nacionalidade é o vínculo que une uma pessoa a um Estado, que a identifica como membro daquela entidade, a confere a capacidade de exigir proteção e a sujeita a deveres.

Após caracterizar o direito à nacionalidade, é importante destacar os dois fundamentos ou critérios para a obtenção dela: jus sanguinis (adotado por países como a Itália) e jus soli (adotado no Brasil). Nessa questão, o jus sanguinis é o critério pela qual o indivíduo obtém a sua nacionalidade baseado apenas na sua filiação, os seus laços de sangue. Já o jus soli é o critério pelo qual o indivíduo obtém a sua nacionalidade baseado no território em que nasceu ou o direito ao solo. Isso leva a duas situações – os polipátridas e os apátridas – que serão abordadas mais para frente.

Em primeiro lugar, observa-se que dependendo do país o critério para a obtenção da nacionalidade varia. Assim, países como o Brasil, por exemplo, adotam o jus soli e países como a Itália adotam o jus sanguinis e, por essa razão, poderá haver a ocorrência de dois fenômenos os polipátridas (indivíduos com mais de uma nacionalidade) e os apátridas (indivíduos sem nacionalidade).

Um exemplo ajudará a visualizar melhor a situação. Suponha que um indivíduo é filho de pais italianos e nasce em solo brasileiro, nessa situação, ele seria italiano (critério do jus sanguinis) e seria brasileiro (critério do jus soli), sendo esse um caso de polipátrida. Suponha, agora, que o indivíduo é filho de pais brasileiros, que não estavam a serviço da República Federativa do Brasil, e nasce em solo italiano. Essa situação é inversa a primeira, pois ele não seria nem brasileiro (não se encaixar no critério do jus soli) e nem italiano (não se encaixa no critério do jus sanguinis), sendo esse um caso de apátrida.

Outro ponto de abordagem, são os princípios norteadores desse direito, que oferecem a base e a limitação para a sua aplicabilidade. São eles:

a)     Princípio da efetividade – versa que o vínculo entre o indivíduo e o Estado não deve se ater apenas ao campo formal, mas alcançar o campo real e, por isso, deve possuir um cultural com àquela nação, ou seja, uma pertença sociológica e jurídica com o país.

b)     Princípio da continuidade – o indivíduo deve ter uma relação com o Estado que se prolongue no tempo e, por isso, não é interessante conceder nacionalidade a quem não tem intenção de permanecer no território nacional ou a quem acabou de adentrá-lo.

c)     Princípio da fidelidade – a relação do sujeito com o seu Estado deve ser baseada na boa-fé e na transparência, não podendo ele praticar atos danosos ao Estado ou agir em desacordo com o interesse internacional desse.

d)     Princípio da soberania – através desse princípio pode-se afirmar que cada Estado é soberano para decidir quem são seus cidadãos pátrios bem como quais serão os critérios para se conceder a nacionalidade, não cabendo a outros Estados ou organizações internacionais intervir.

e)     Princípio do direito a nacionalidade – provém da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que versa em seu art. 15, I que todos têm direito a uma nacionalidade.

f)       Princípio da mutação ou livre escolha da nacionalidade – provém da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que versa em seu art. 15, II que nenhuma pessoa será impedida de modificar livremente a sua nacionalidade.

g)     Princípio da unicidade – segundo esse princípio cada indivíduo deve possuir apenas uma nacionalidade para que se evite conflitos no campo da proteção diplomática, no exercício do serviço militar, no gozo dos direitos políticos, entre outros. Para solucionar esses conflitos alguns Estados obrigam o indivíduo a ter que optar, após uma certa idade, por uma das nacionalidades, mas essa conduta não é adotada por todos os países. No Brasil, por exemplo, não se faz esse tipo de exigência dos cidadãos.

h)     Princípio da individualidade – consagra que o direito à nacionalidade é personalíssimo e, portanto, não se transfere à terceiros.

Dentro dessa conceituação cabe apresentar, então, a definição de apátrida, que, nos termos do art. 1° (1) da Convenção relativa ao Estatuto dos Apátridas de 1954, é “toda pessoa que não seja considerada seu nacional por nenhum Estado, conforme sua legislação”. Então, pode-se concluir que:

(…) São pessoas que, dada a circunstância em que nasceram, não dispõem de nenhum laço que as prenda ou que as vincule a determinado Estado. A isto alguns autores denominam anacionalidade, e outros de conflito negativo de nacionalidade. Tal anomalia muitas vezes nasce de medidas políticas repressivas (…) ou mesmo a título jurídico de pena e sanção, representando um verdadeiro perigo para a sociedade internacional, na medida em que deixa seres humanos sem a devida proteção estatal, tornando-os vítimas de um sistema que, para além de imperfeito, é arbitrário e cruel (…) (MAZZUOLI, 2013, p. 709).

Outra situação que merece destaque é a do que se pode denominar de “refugiado apátrida”. Com isso em vista, tem-se que, segundo Bichara (2017), o termo “refugiado”, sob o ponto de vista do direito internacional, designa várias situações, inclusive, nos termos do art. 1º, A, (2), da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, qualquer pessoa:

Que, em conseqüência (sic) dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em conseqüência (sic) de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele. (NAÇÕES UNIDAS, 1951)

Surge a partir daí uma importante classificação que é o apátrida de facto e o apátrida de jure. Segundo Bichara (2017), o primeiro refere-se a:

[…] um outro tipo de refugiado, que seria aquele sem nacionalidade. De modo que, ainda, é considerado refugiado o migrante que, além de sofrer perseguição por uma das causas enumeradas, não tem nacionalidade comprovada e não quer (ou não pode) voltar ao país onde tinha sua residência habitual […]. Trata-se, aqui, do que poderíamos denominar de “refugiado apátrida”. (BICHARA, 2017, p. 240)

Já o segundo surge da “[…] constatação, pelo Estado acolhedor, da inexistência ou da impossibilidade de comprovar o vínculo jurídico de nacionalidade entre uma pessoa e um Estado, nos termos da legislação aplicável do Estado de origem.” (BICHARA, 2017, p. 240). Essa compreensão sobre o apátrida remete a uma série de situações que exigem “do Estado de acolhimento um trabalho de averiguação dos fatos para determinar se um indivíduo possui uma nacionalidade ou não, em aplicação da legislação relativa à nacionalidade do Estado de origem.” (BICHARA, 2017, p. 241).

Esses esforços dos Estados e organismos internacionais são importantes para identificar e oferecer máxima proteção a esses indivíduos, pois os apátridas vivem frequentemente em situações precárias à margem da sociedade e identificá-los é importante para amenizar as dificuldades que enfrentam e permitir que se previna e reduza a apatridia.

4 DADOS SOBRE A APATRIDIA

A Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) estima que existam cerca de 4,2 milhões de apátridas em 76 países, mas o número pode ser substancialmente maior, pois é difícil obter dados globais. Essa situação oferece uma condição de desproteção para os que nela se encontram e afetam diversos aspectos de suas vidas, como conta Maha Mamo, filha de mãe mulçumana e pai cristão. Visto que as leis da Síria não permitem o casamento entre as duas religiões, o matrimônio entre seus pais não foi reconhecido e os filhos ficaram sem a cidadania síria. Segundo ela, esse fato afetou sua vida desde o seu nascimento, pois enfrentava dificuldades desde as coisas mais simples da vida, como comprar um cartão de celular, dirigir um carro, ser sócio de uma biblioteca.

“Sem acesso a direitos legais e serviços essenciais, muitos apátridas são politicamente e economicamente marginalizados, discriminados e vulneráveis à exploração e abuso.” (ONU NEWS, 2020). Mas, não bastasse ser uma condição grave e desconfortável por si só, de acordo com o alto comissário da ONU para Refugiados, Filippo Grandi, a pandemia de Covid-19 está piorando a situação de milhões de apátridas em todo o mundo. Então, para ele, a pandemia só reforçou a necessidade de inclusão e a urgência para resolver este problema, devendo a comunidade internacional redobrar os esforços para resolver esta afronta à humanidade no século 21.

Diante dessas informações cabe questionar se a sua existência dos apátridas fere a D.U.D.H ou apenas personifica a soberania dos Estados. Além disso, cabe questionar também se é cabível a imposição de determinadas medidas em prol da diminuição do número de apátridas ou conflitar dessa maneira com a soberania dos Estados signatários não seria sequer possível. Esses dois questionamentos serão abordados no próximo tópico.

5 DIREITOS HUMANOS X SOBERANIA ESTATAL

É importante perceber que há um conflito entre os princípios do direito à nacionalidade e o da soberania, visto que a D.U.D.H garante que todos terão direito à nacionalidade, mas os países são soberanos para escolher os critérios que garantem ao indivíduo o direito a tal.

O direito à nacionalidade garante a possibilidade de exigir direitos políticos (direitos de 1ª geração) e sociais (direitos de 2ª geração), mas no caso dos apátridas muitos desses direitos são violados, ou seja, limitados apenas aos que pertencem àquele Estado. Segundo a ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), muitos sofrem sem uma identificação, sem acesso à educação, à saúde, ao voto, ao mercado de trabalho, entre outros.

Essa situação fere a Declaração Universal dos Direitos Humanos e para amenizá-la foram criadas diversas convenções, como a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 e a Convenção para Redução dos Casos de Apatridia de 1961, sendo essa última aprovada e promulgada pelo Brasil no dia 18 de agosto de 2015. Então, é possível perceber a preocupação que se tem, no âmbito nacional e internacional, em garantir a dignidade da pessoa humana e o acesso aos seus direitos fundamentais, cuidando, assim, para que a Declaração Universal dos Direitos Humanos não seja desrespeitada e relegada.

Ademais, tendo em vista a crítica situação dos apátridas pelo mundo, o ACNUR lançou, em novembro de 2014, a campanha “I Belong” (Eu Perteço – em tradução livre), que engloba as quatro áreas de trabalho relacionadas à apatridia – identificação, prevenção, redução e proteção – e, com o apoio de organizações internacionais e ONGs, objetiva erradicar a apatridia mundial até 2024. Desde o início da campanha, houve uma série de avanços conquistados pelas articulações implementadas pela ACNUR:

[…] quase 350 mil apátridas adquiriram a nacionalidade em lugares como Quirguistão, Quênia, Tadjiquistão, Tailândia, Rússia, Suécia, Vietnã, Uzbequistão e Filipinas.

Houve 25 adesões às duas Convenções da ONU sobre Apatridia, totalizando 94 países. Além disso, 16 países estabeleceram ou melhoraram procedimentos, alguns oferecendo um caminho facilitado para a cidadania.

Outros oito Estados-membros alteraram suas leis de nacionalidade para conceder nacionalidade a crianças nascidas em seu território que, de outra forma, seriam apátridas, e dois países passaram a permitir que as mães atribuam a nacionalidade a seus filhos, em igualdade de condições com os pais. (ONU NEWS, 2020).

No âmbito nacional tem a Lei 13.445/2017 (Lei de Migração), que regulou de maneira mais humanitária e melhor alinhada aos tratados internacionais de Direitos Humanos, a entrada, estada e saída do estrangeiro no País e, juntamente com a Lei no 9.474/1997 (Lei do Refúgio), aborda e confere proteção ao direito à nacionalidade. (MANCHAK E COPI, 2022). Contudo, para Manchak e Copi (2022), a atuação para erradicar a apatridia acaba sendo obstaculizada pela dificuldade de forçar um Estado a adotar medidas e cumprir decisões derivadas dos sistemas de direitos humanos e suas Cortes. De acordo com elas:

Isso porque, alguns entendem que tais instrumentos afrontam a soberania estatal, uma vez que se retira do Estado a autonomia na determinação de quem serão seus nacionais, bem como lhe impede de destituir a nacionalidade de indivíduos que já a possuem, sob pena de incorrer em ilícito internacional. (MANCHAK E COPI, 2022, p. 140).

No entanto, se for aceita a soberania estatal como absoluta, será impossível a resolução da questão jurídica da apatridia, de modo que, assim, tal soberania deve ser encarada de forma relativizada. (RIBEIRO E SILVA, 2017). Nessa perspectiva, “[…] a adoção de medidas contra a apatridia pelos países apresenta uma perspectiva em que o Estado cede parte de sua soberania em prol da promoção da dignidade da pessoa humana por meio da concessão da nacionalidade.” (MANCHAK E COPI, 2022, p. 142)

Entende-se, portanto, que a partir do momento em que um Estado se compromete por meio de documento internacional a corroborar com o fim da apatridia, que é uma situação contraria ao que se entende como direitos basilares para sobrevivência e dignidade humana, ele tem a obrigação de assim fazer, não havendo que se falar em ofensa à soberania, pois ela não pode ser superior à garantia dos direitos humanos.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A questão dos apátridas se tornou um problema mundial e ACNUR considera a situação preocupante. No entanto, essa problemática é quase impossível de erradicar, pois os países construíram historicamente os seus critérios de obtenção de nacionalidade e não é permitido que outros Estados ou órgãos internacionais intervenham e imponham que os países adotem os dois critérios ou, ainda, optem pela escolha de um deles e uniformizem o sistema.

É pensando nisso que são criadas várias convenções e adotadas diversas medidas a fim de melhorar e tornar minimamente digna a condição de apátrida. Nesse sentido, é que o Brasil tem assegurado, por meio de sua legislação, procedimentos para determinar a apatridia, bem como mecanismos que oferecem mecanismos de naturalização facilitada para pessoas que se encontram em tal situação, como mostra o julgamento do MS 0000831-66.2017.1.00.0000 DF, que contribuiu para que o STF firmasse o entendimento de que o cancelamento indevido de naturalização criaria uma situação de apátrida o que feriria tratados internacionais ratificados no país. “Tais mecanismos de determinação de apatridia propiciam à pessoa um status legal que permite residência e garante o usufruto dos direitos humanos básicos, como acesso aos serviços públicos.” (ONU NEWS, 2020)

Contudo, mesmo que já se tenha evoluído bastante no processo de erradicação da apatridia, com campanhas como o “I Belong” e medidas tomadas pelos Estados para diminuir e melhorar a vida das pessoas apátridas, a questão ainda requer atenção. A dificuldade de forçar um Estado a adotar medidas e cumprir decisões derivadas dos sistemas de direitos humanos e suas Cortes ainda obstaculiza a erradicação desse cenário e o desrespeito ao disposto na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) contribui para a permanência do problema, que fere esse instrumento internacional e a dignidade dos milhares que se encontram nessa situação, devendo os Estados evitá-la ao máximo e melhorar as condições de vida daqueles que já se encontram em apatridia.

Dessa forma, diante da situação da apatridia, os Estados devem encarar a sua soberania não como absoluta, mas como associada. Isso não significa que eles se despojariam dela, mas, na medida em que assumissem compromissos mediante instrumentos internacionais para colaborar no combate de determinada situação contraria aos direitos humanos basilares, seria sua obrigação cumprir com tais compromisso para que, com o esforço coletivo, o objetivo maior seja alcançado.

REFERÊNCIAS

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[1] Acadêmica do curso de Direito da Universidade Estadual do Maranhão.

[2] “Conjunto de normas internacionais, de origem convencional ou consuetudinária, especificamente destinado a ser aplicado nos conflitos armados, internacionais ou não internacionais, e que limita, por razões humanitárias, o direito das Partes em conflito de escolher livremente os métodos e os meios utilizados na guerra, ou que protege as pessoas e os bens afetados, ou que possam ser afetados pelo conflito” (SWINARSKI, Christophe. Introdução ao direito internacional humanitário. Brasília: Escopo, 1988, p. 18).

[3] Criada após a Primeira Guerra Mundial com a finalidade de promover a cooperação, a paz e a segurança internacionais. Para garantir tal objetivo, a comunidade internacional condenava agressões externas contra a integridade territorial e independência política dos seus membros e impunha sanções econômicas contra os Estados que transgredissem o cumprimento das suas obrigações.

[4] Criada após o fim da Primeira Guerra Mundial com o intuito de delinear critérios básicos de proteção ao trabalhador dentro do plano internacional, visando garantir melhores padrões de dignidade e de bem-estar social.

[5] Mazzuoli, Valério de Oliveira. Curso de direitos humanos. São Paulo: MÉTODO, 2014, p. 46.

 

Como citar e referenciar este artigo:
CARVALHO, Karen Bianca Batalha. Apátridas: uma ofensa aos direitos humanos?. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2022. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitos-humanos/apatridas-uma-ofensa-aos-direitos-humanos/ Acesso em: 21 nov. 2024