Pitacos de um Advogado Rabugento

Cringe mesmo são os privilégios do Judiciário

BRCAR

Bruno de Oliveira Carreirão*

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Nos últimos dias, a pauta da vez nas redes sociais foi o tal termo “cringe”, utilizado pela Geração Z[1] para caracterizar assuntos dos Millennials[2] que lhes causa constrangimento (o que nós chamávamos até outro dia de “vergonha alheia”), tais como café, boletos e Harry Potter – sabe-se lá o porquê. Mas como eu não me importo com opinião de adolescente (não me importava nem mesmo quando eu próprio era um), o tema desta coluna não é esse.

O que me fez sentir cringe nos últimos tempos foi ler um artigo na Folha de São Paulo, intitulado “É correto que juízes e procuradores tenham férias de 60 dias por ano? SIM”[3], em que a dona Renata Gil, Presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (que eu prefiro não chamar nem de doutora e nem de Vossa Excelência, por motivos já explicados anteriormente aqui na coluna[4][5]), teve a desfaçatez de argumentar que a redução das férias do magistrados deixaria o Poder Judiciário mais lento. Sim, ela literalmente disse que os processos demorariam mais se os juízes trabalhassem mais.

O raciocínio cringe da articulista é o seguinte: se os juízes tiverem “apenas” 30 dias de férias, a carreira se tornará menos atrativa e, portanto, haverá um êxodo do serviço público para a iniciativa privada e a vacância dos cargos abandonados dificilmente será suprida. Ela, inclusive, afirma que “reportagens recentes já ilustram esse movimento de diáspora”, sem citar qualquer estatística ou fonte que pudesse amparar essa narrativa.

Pois bem. Recentemente, o colunista Bruno Carazza publicou no seu Twitter[6] um levantamento com base em dados do CNJ que demonstra que 78,4% dos magistrados brasileiros ganharam acima do teto (de R$ 39,2 mil) em 2020. As tabelas abaixo escancaram como o teto, na realidade, é mera ficção:

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Ou seja, não bastasse um teto salarial de quase 40 vezes o salário mínimo, a maioria absoluta dos juízes recebe acima disso. Mas, segundo a dona Renata Gil, a redução das férias vai fazer com que os magistrados busquem condições de vida melhores na iniciativa privada. Eu conto ou vocês contam?

As razões para receberem acima do teto são as famosas verbas indenizatórias (carinhosamente apelidadas de “penduricalhos”), como auxílio-moradia, auxílio-alimentação, auxílio-saúde, auxílio-educação, auxílio-livro, indenização de transportes e o meu preferido: o auxílio-paletó. Aliás, sempre há oportunidade para criação de novos penduricalhos. O TRF1, por exemplo, aproveitou o trabalho remoto na pandemia para criar o “auxílio banda larga”[7].

Além de todos os auxílios e gratificações, aqui em Santa Catarina, o Tribunal de Justiça (assim como também o TCE, a Assembleia Legislativa e o Ministério Público) tinha uma prática bem curiosa: o “vale-peru”. No final do ano, o Tribunal distribuía a sobra do orçamento do ano entre os magistrados e servidores – sem nenhuma previsão legal – e chamava de “abono de Natal”. Era a “distribuição de lucros” do Judiciário, às custas do contribuinte. Felizmente, a prática foi encerrada em 2016[8].

Volta e meia surgem louváveis iniciativas para reduzir ou eliminar esses privilégios, como a proposta de reforma administrativa (PEC 32/2020), que visa acabar com os tais “supersalários” e as férias de 60 dias. Mas sempre que essas propostas surgem, as entidades corporativistas se articulam para denunciar o que classificam como “tentativas de desmonte do serviço público” e “ataques ao combate à corrupção” – como se se o Judiciário se resumisse ao combate à corrupção (e não fosse também parte do problema). E tem quem compre essas narrativas…

Esse assunto me deixa tão cringe, que eu sinceramente nem sei como terminar o texto. Por isso, vou me valer de um trecho de um famoso discurso de Ruy Barbosa, que define muito melhor do que eu jamais conseguiria o sentimento de constrangimento diante desses privilégios:

De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.



* Bruno de Oliveira Carreirão é advogado, mestre em Direito e acha que privilégios da elite do funcionalismo público deveriam ser cringe para qualquer brasileiro, independentemente da geração.



[1] Aparentemente, nascidos aproximadamente entre 1995 e 2010 (até ontem eu achava que esses é que eram os millenials).

[2] Nascidos aproximadamente entre 1980 e 1995, que até ontem eu pensava que formavam a Geração Y.

[3] “É correto que juízes e procuradores tenham férias de 60 dias por ano? SIM”:  https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/06/e-correto-que-juizes-e-procuradores-tenham-ferias-de-60-dias-por-ano-sim.shtml

[4] “Fim da lenda urbana: advogado NÃO é doutor”:  https://investidura.com.br/biblioteca-juridica/colunas/pitacos-de-um-advogado-rabugento/337633-fim-da-lenda-urbana-advogado-nao-e-doutor

[5] “Por que ainda os chamamos de ‘excelentíssimos’?!”:  https://investidura.com.br/biblioteca-juridica/colunas/pitacos-de-um-advogado-rabugento/338027-por-que-ainda-os-chamamos-de-excelentissimos

[6] Twitter do Bruno Carazza:  https://twitter.com/BrunoCarazza/status/1408135455703506952

[7] “Desembargadores do TRF-1 receberão ‘auxílio banda larga’”:  https://www.migalhas.com.br/quentes/339978/desembargadores-do-trf-1-receberao-auxilio-banda-larga

[8] “Bônus de Natal para servidores inativos do TJ-SC e MP-SC é inconstitucional”:  https://ndmais.com.br/politica/bonus-de-natal-para-servidores-inativos-do-tj-sc-e-mp-sc-e-inconstitucional/

Como citar e referenciar este artigo:
CARREIRÃO, Bruno de Oliveira. Cringe mesmo são os privilégios do Judiciário. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2021. Disponível em: https://investidura.com.br/colunas/pitacos-de-um-advogado-rabugento/cringe-mesmo-sao-os-privilegios-do-judiciario/ Acesso em: 22 nov. 2024