Direito Constitucional

Constitucionalidade de lei estadual em tempo de pandemia

Resumo: O julgamento da constitucionalidade da Lei 5.145/2020 do Estado do Amazonas reacende o debate sobre o Estatuto de Patrimônio Mínimo e a necessidade de preservação da dignidade da pessoa humana como vetor hermenêutico para as relações jurídicas mesmo na órbita privada.

Palavras-Chave: Dignidade Humana. Proibição de Corte de Energia Elétrica. Competência Legislativa. Direito Constitucional brasileiro. Constituição Federal Brasileira de 1988. Estado de Calamidade Pública. Pandemia de Covid-19.

Há uma lei do Estado do Amazonas que proíbe o corte de energia elétrica durante a pandemia de coronavírus é constitucional e, tal decisão fora proferida pelo STF, por maioria de votos, através de sessão virtual encerrada no último dia 28 de maio de 2021.

A lei avaliada é a de número 5.145/2020 e, fora questionada pela Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee) sob a alegação de que a lei infraconstitucional teria invadido indevidamente a competência da União para legislar sobre o direito civil, explorar serviços e instalações da energia elétrica[1] e, promover a defesa contra a calamidade pública[2].

Oportunamente, o relator, o Ministro Marco Aurélio ainda destacou que o texto constitucional brasileiro vigente não cria impedimento para a elaboração de legislação estadual ou distrital que, ainda, preservando o núcleo relativo as normas gerais editadas pelo Congresso Nacional, venha complementá-las e, não as substituir.

E, aduz o Ministro Marco Aurélio que a jurisprudência do STF considera legítima e válida a complementação ocorrente no âmbito regional, da legislação editada pela União, com o fito de ampliar a proteção do consumidor (a quem se reconhecer presumidamente a vulnerabilidade), e preservar assim o fornecimento de serviço público.

Novamente, para o referido relator quando for atendida a razoabilidade, e, considerando-se a gravidade da crise sanitária, é constitucional a legislação estadual que proíba o corte de fornecimento de energia elétrica residencial, mesmo no caso de inadimplência, e ainda que determine o parcelamento do débito.

A propósito, a matéria decidida não é nova, pois o Plenário do STF já proclamou como legítima a complementação legislativa em âmbito regional, basta reler os Precedentes das ações diretas de inconstitucionalidade 5.745, relator do acórdão foi o Ministro Luiz Edson Fachin, publicado no Diário da Justiça Eletrônico em 16.09.2019 e, ainda, a ADIn 5.940, relator do acórdão, Min. Fachin[3] publicado no Diário de Justiça em 03.02.2020.

Cumpre assinalar que restaram vencidos o Ministro Dias Toffoli e, ainda, o atual Presidente do STF, o Ministro Luiz Fux. E, de acordo com a divergência, o texto constitucional vigente reservou à União, em caráter privativo, a competência para legislar sobre energia. Portanto, admitir a atuação legislativa dos Estados sobre a matéria, ainda que em função da crise sanitária, apesar de ser louvável, é permitir que interfiram em contratos não firmados por estes.

O Ministro Alexandre de Moraes seguiu o relator com ressalva de entendimento quanto à possibilidade de a AGU se pronunciar contrariamente à constitucionalidade de normas questionadas em sede de controle concentrado[4]. Acompanharam o relator e a ressalva de Moraes os ministros Nunes Marques, Edson Fachin, Gilmar Mendes, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski. (ADIn 6588).[5]

A partir desta decisão da Suprema Corte ofereceu-se maior tranquilidade jurídica aos consumidores amazonenses[6], garantindo o fornecimento contínuo de água e luz para as unidades consumidoras inadimplentes e, que estão enfrentando uma crise econômica sem precedentes, pois muitos, perderam a única fonte de renda e não possuem a menor condição de pagar as contas, daí, ressalta-se a importância da lei amazonense.

A presente decisão do STF, no meu modesto entendimento, vem na esteira do mesmo entendimento expresso pelo Plenário do STF, por unanimidade, que confirmou o entendimento de que as medidas adotadas pelo Governo Federal na Medida Provisória 926/2020 para o enfrentamento da atual pandemia não afastam a competência concorrente nem a tomada de providências normativas e administrativas pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios. E, a decisão fora tomada em 15 de abril de 2020, em sessão realizada por videoconferência, no referendo da medida cautelar deferida em março pelo Ministro Marco Aurélio na ADIn 6341.

Ratificou-se, portanto, a necessidade de se preservar o patrimônio mínimo para a preservação da dignidade humana, valor de especial importância para o direito brasileiro, notadamente, a ordem constitucional vigente[7].

Há ainda outras três Ações Diretas de Inconstitucionalidades (ADIn) ajuizadas contra as leis estaduais editadas para regulamentar situações relacionadas à pandemia.

Como a ADIn 6493, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, onde se questiona a Lei 11.716/2020 do Estado da Paraíba, que proíbe que as operadoras de planos de saúde no estado se recusem a prestar serviços a pessoas suspeitas ou contaminadas pela Covid-19 em razão de prazo de carência contratual.

A ação é da União Nacional das Instituições de Autogestão em Saúde (Unidas), que representa as operadoras de planos de saúde do Brasil. O relator já apresentou voto no sentido de declarar a inconstitucionalidade da lei, com o fundamento de que a matéria é de competência privativa da União e está disciplinada por lei federal.

Na ADI 6432, de relatoria da ministra Cármen Lúcia, ajuizada pela Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee), o objeto é a Lei 1.389/2020 do Estado de Roraima, que proíbe o corte de energia elétrica em residências por inadimplência enquanto perdurar o estado de emergência no estado.

Em seu voto, já lançado no sistema, a relatora julga improcedente a ação, declarando as normas constitucionais. Para a Ministra Cármen Lúcia, os dispositivos tratam de relação de consumo, matéria de competência concorrente da União, dos estados e do Distrito Federal.

Também deverá ser analisado, na sessão virtual, o agravo regimental na ADI 6526, ajuizada pela Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal (Anape) contra os artigos 7º e 8º da Lei Complementar 173/2020, que instituiu o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus[8]. Os dispositivos alteraram a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000) para estabelecer limites de gastos das unidades da federação com pessoal.

O ministro Alexandre de Moraes, relator do processo, extinguiu a ação por falta de legitimidade ativa da Anape, por entender que a norma não tem relação direta com interesses típicos da classe profissional representada. Contra essa decisão, a associação interpôs o agravo regimental. O relator apresentou voto pelo desprovimento do recurso.

Enfim, mais uma vez a Suprema Corte brasileira atua como guardiã da Constituição Federal de 1988, onde o princípio da preservação da dignidade humana se apresenta como principal vetor hermenêutica da ordem jurídica pátria, especialmente, nas relações jurídicas privadas.

Referências

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DOS SANTOS, Eduardo; E TRESSA, Simone Valadão Costa. A Teoria do Patrimônio Mínimo e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Disponível em:  https://www.passeidireto.com/arquivo/91082661/a-teoria-do-patrimonio-minimo-e-o-principio-da-dignidade-da-pessoa-humana-eduard Acesso em 06.6.2021.

FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2017.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume 1. Parte Geral. 10ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.

QUARESMA, Heloisa Helena. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, 2010. Disponível em:  https://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=3451. Acesso em 20.05.2021.

SCHREIBER, Anderson. Manual de Direito Civil Contemporâneo. 3ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

_________________, TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; DE MELO, Marco Aurélio Bezerra; DELGADO, Mário Luis. Código Civil Comentado. Doutrina e Jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2021.

TARTUCE, Flavio. Manual de Direito Civil: volume único. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017.

SALOMÃO, Luis Felipe; TARTUCE, Flávio. Direito Civil Diálogos entre a Doutrina e a Jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2010.



[1] A energia elétrica tem a natureza jurídica de um bem imaterial de caráter difuso de uso comum do povo. Mesmo a energia elétrica gerada por meio de outros bens ambientais como madeira, gás, etc., também tem a mesma natureza jurídica pelos mesmos motivos. Por conseguinte, quando o Código Penal Brasileiro equipara a energia elétrica a coisa móvel, e quando o Código Tributário Nacional igualmente a considera como produto industrializado, na realidade estão fazendo uma comutação redutora, pois simplificam o tema ao encarar a eletricidade como simples coisa, quando, na verdade, ela antes se acomoda no quadro de uma relação jurídica

[2] Com essa medida, o governo pode aumentar gastos, liberando recursos, parcelando dívidas, atrasando a execução de gastos e até autorizando saque antecipado do FGTS para a população. O executivo fica liberado de atingir a meta fiscal prevista para o ano, como prevê a lei de responsabilidade fiscal, em vigor desde o ano 2000. O estado de calamidade pública é diferente de uma situação de emergência, que seria declarada em casos menos graves. Qual a diferença entre o estado de calamidade pública e Situação de Emergência? A principal diferença entre as duas situações é a intensidade, ou seja, o grau de gravidade da situação. O estado de emergência é uma situação anormal, provocada por desastre, como enchentes, por exemplo; os danos são menos graves, e mais simples de serem resolvidos. Já o estado de calamidade, é mais sério e compromete bastante a capacidade de resposta do ente, seja ele estadual ou Municipal, que o decretou. Por fim, o estado de calamidade pública decretado por vários estados, entre eles o nosso, e municípios, não deve gerar alarme, pois nada mais é que uma forma de destinar recursos diferentes, para combater de uma maneira mais rápida e eficiente a situação que nos encontramos.

[3] Desenvolveu com ciosa competência, o Ministro do STF e Professor Dr. Luiz Edson Fachin, a teoria do Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, que procura garantir um mínimo de patrimônio com base no ordenamento jurídico, isto é, deve a pessoa humana ter o mínimo existencial como forma de garantir-lhe a dignidade. Ressalve-se que tal teoria não visa atacar a propriedade privada nem o direito creditício, mas afastar o caráter eminentemente patrimonial das relações jurídicas privadas. O intuito é remodelar estes institutos e adequá-las às novas premissas do Direito Civil, determinando que eles não se sobreponham à dignidade do indivíduo. os conceitos e julgados do STF, é possível concluir que, a Teoria do Patrimônio Mínimo é de extrema relevância para a garantia de direitos essenciais, emanando da Constituição Federal e ampliando seus reflexos no ordenamento jurídico positivado, sendo fundamental a atenção e cuidado com a manutenção desses direitos, sempre com o objetivo constitucional de garantir os Direitos Fundamentais do cidadão.

[4] Para Alexandre de Moraes, “controlar a constitucionalidade significa verificar a adequação (compatibilidade) de uma lei ou de um ato normativo com a Constituição, verificando seus requisitos formais e materiais.”. Em suma, no controle concentrado, não há que se observar qualquer interesse subjetivo, haja vista não haver partes envolvidas no processo, nem tampouco um caso concreto onde o controle se faria de modo incidental. Neste sentido, ao contrário do controle difuso, o controle concentrado abstrato possui natureza objetiva.

[5] Como se sabe, o direito brasileiro consagra, como regra, a teoria da nulidade do ato inconstitucional. Contudo, a doutrina constitucional majoritária, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e, tempos depois, a legislação passaram a reconhecer a necessidade de se modular os efeitos temporais da decisão que declara a inconstitucionalidade de atos normativos, relativizando a teoria da nulidade em nome de outros valores constitucionais, como boa-fé, segurança jurídica e interesse social. Ao lado dessas duas teorias, há outras ideias também associadas, como as de inconstitucionalidade e constitucionalidade supervenientes. No primeiro caso, o fenômeno se apresenta quando um ato normativo originariamente compatível com Constituição se torna com ela incompatível após a ordem constitucional sofrer alguma alteração, seja por emenda seja por mutação constitucional. Entretanto, de longa data, o STF entende que essa situação não é de inconstitucionalidade, mas de revogação. A segunda ideia reflete uma possibilidade oposta. Uma lei antes inconstitucional pode vir a se tornar compatível com a constituição após esta ser alterada. Trata-se da chamada constitucionalização superveniente, fenômeno que o STF não reconhece.

[6] A secretária-executiva da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), Alicia Bárcena, disse que as mulheres e os novos pobres serão os mais prejudicados pelos efeitos econômicos e sociais da pandemia do novo coronavírus.

[7] O longo lockdown acompanhado de sanções penais imposto na Itália provavelmente viola disposições constitucionais daquele país. A decretação de regulamentos de emergência pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, sem consulta ao Parlamento nacional, também representa uma possível violação às leis constitucionais de Israel. Na Rússia, o governo aumentou o uso da tecnologia para a vigilância da população e foram aprovadas normas severas contra notícias falsas sobre o vírus, que podem representar um aumento da perseguição aos meios independentes de comunicação e, assim, uma violação à liberdade de imprensa. Na Hungria, a concessão de poderes quase ilimitados ao Presidente Viktor Orbán talvez seja, até o momento, o exemplar mais significativo desse conjunto de decisões provavelmente inconstitucionais tomadas mundo afora como medidas de enfrentamento da pandemia.

[8] LEI COMPLEMENTAR Nº 173, DE 27 DE MAIO DE 2020 Estabelece o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19), altera a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, e dá outras providências. Disponível em:  https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-complementar-n-173-de-27-de-maio-de-2020-258915168i Acesso em 6.6.2021. De acordo com o texto da lei, a União entregará, na forma de auxílio financeiro, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios, em quatro parcelas mensais e iguais, R$ 60 bilhões para serem aplicados em ações de enfrentamento à Covid-19 e na mitigação de seus efeitos financeiros. Desse valor, R$ 10 bilhões são exclusivamente para ações de saúde e assistência social. O projeto ainda suspende as dívidas de estados e municípios com a União, inclusive os débitos previdenciários parcelados pelas prefeituras que venceriam este ano.

Como citar e referenciar este artigo:
LEITE, Gisele. Constitucionalidade de lei estadual em tempo de pandemia. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2021. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/constitucionalidade-de-lei-estadual-em-tempo-de-pandemia/ Acesso em: 26 dez. 2024