Por muito tempo a possibilidade de a Administração Pública solucionar seus conflitos por meio da Arbitragem foi palco de questionamentos. Todavia, essa questão foi superada a partir da edição da Lei nº 13.129/2015. Marco fundamental, referida normativa alterou a Lei de Arbitragem, passando a permitir, expressamente, o uso do procedimento arbitral pela Administração direta e indireta.[1] Na mesma linha evoluiu a jurisprudência nacional. Atualmente, o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal de Contas da União, passaram a consolidar o entendimento de que é possível se utilizar o procedimento arbitral em âmbito de Administração Pública.
No entanto, se a questão acima parece superada, tantas outras apareceram. Tratam-se de questões mais práticas, que abordam, justamente, como deve se comportar a Administração Pública em um Procedimento Arbitral e quais são as peculiaridades e questões que precisam ser observadas.
Uma dessas questões ganhou destaque após ser publicado, no dia 23 de setembro de 2019, o Decreto Federal nº 10.025. Mais precisamente, o referido decreto, que regulamenta o uso da Arbitragem como meio de solução de conflitos nos setores portuário, de transporte rodoviário, ferroviário e aeroportuário, em litígios que envolvem a Administração Pública Federal e concessionárias em geral, trouxe algumas previsões específicas sobre a forma como deve ser desenhada a Convenção de Arbitragem em Procedimentos Arbitrais com o poder público. Retira-se dos seu artigo 5º e 6º, respectivamente:
DA CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM
[…]
Da cláusula compromissória
Art. 5º. Os contratos de parceria abrangidos por este Decreto poderão conter cláusula compromissória ou cláusula que discipline a adoção alternativa de outros mecanismos adequados à solução de controvérsias.
§ 1º. A cláusula compromissória, quando estipulada:
I – constará de forma destacada no contrato;
II – estabelecerá critérios para submissão de litígios à arbitragem, observado o disposto nos art. 2º e art. 3º;
III – definirá se a arbitragem será institucional ou ad hoc; e
IV – remeterá à obrigatoriedade de cumprimento das disposições deste Decreto.
§ 2º. Na hipótese de arbitragem institucional, se a câmara arbitral não for definida previamente, a cláusula compromissória deverá estabelecer o momento, o critério e o procedimento de escolha da câmara arbitral dentre aquelas credenciadas na forma prevista no art. 8º.
§3º. Os contratos que não contiverem cláusula compromissória ou possibilidade de adoção alternativa de outros mecanismos adequados à solução de controvérsias poderão ser aditados, desde que seja estabelecido acordo entre as partes.
[…]
Do compromisso arbitral
Art. 6º. Na hipótese de ausência de cláusula compromissória, a administração pública federal, para decidir sobre a celebração do compromisso arbitral, avaliará previamente as vantagens e as desvantagens da arbitragem no caso concreto. […]
Art. 7º. São cláusulas obrigatórias do compromisso arbitral, além daquelas indicadas no art. 10 da Lei nº 9.307, de 1996:
I – a determinação do local onde se desenvolverá a arbitragem; e
II – a obrigatoriedade de cumprimento das disposições deste Decreto.
Como se pode perceber das previsões acima, o Decreto Federal nº 10.025/2019 seguiu a lógica do ordenamento jurídico brasileiro e classificou as Convenções de Arbitragem entre “cláusula compromissória” e “compromisso arbitral”. Ambos, compromisso arbitral e cláusula compromissória, têm como objetivo precípuo o afastamento da jurisdição estatal em relação aos litígios que se pretende resolver por meio de Arbitragem. Entretanto, entre eles há também diferenças marcantes que merecem ser pontuadas para que a compreensão das disposições do Decreto Federal nº 10.025/2019 seja facilitada.
A cláusula compromissória, definida no artigo 4º da Lei de Arbitragem, é a convenção por meio da qual as partes de um contrato se comprometem a submeter à Arbitragem os eventuais litígios relativos ao negócio jurídico.[2] O compromisso arbitral, por seu turno, é definido no artigo 9º da Lei de Arbitragem como a convenção em que os litigantes submetem um litígio já existente à Arbitragem.[3] Nota-se, pois, que a diferença marcante entre as duas espécies do gênero Convenção de Arbitragem é justamente o momento do afastamento da jurisdição estatal. Por meio das cláusulas compromissórias as partes de um contrato já preveem que qualquer litígio referente ao negócio jurídico será levado à Arbitragem, ao passo que por meio de um compromisso arbitral as partes levam à Arbitragem um litígio já existente.
No caso específico das cláusulas compromissórias, vale ressaltar que as partes, sobretudo quando se tratar de Arbitragem envolvendo a Administração Pública, devem praticar seus melhores esforços para evitar a redação de cláusulas patológicas, que são aquelas que não disciplinam o modo de indicação de árbitro (vazias); não indicam órgão arbitral ou indicam órgão arbitral inexistente; ou que apontam mecanismo inoperante para a indicação de árbitro. Nestas hipóteses, embora a cláusula patológica ainda afaste a jurisdição estatal, a sua redação não permite que o litígio seja diretamente levado à Arbitragem, de modo que se as partes não chegarem a um acordo sobre a forma de instituição do procedimento arbitral, será necessária a atuação do Poder Judiciário.[4]
Sendo assim, para o efetivo e célere afastamento da jurisdição estatal é importante que as partes tenham zelo no momento da redação da cláusula compromissória, seja no sentido de indicar precisamente qual a Câmara responsável para a administração do litígio, submetendo o procedimento ao regulamento desta, seja instituindo um procedimento claro para a instauração de um procedimento arbitral ad hoc.
No caso das Arbitragens envolvendo a administração pública, a preocupação deve ser redobrada. Por essa razão, o Decreto Federal nº 10.025/2019 tratou de especificar alguns pontos que devem ser respeitados pelas Convenções Arbitrais a serem celebradas com os entes públicos.
Gustavo Justino de Oliveira e Felipe Fainwichow Estefan, na obra “Curso Prático de Arbitragem e Administração Pública”, e tendo por base o Decreto Federal nº 10.025/2019, destacam alguns desses pontos que devem ser observados pela Convenção de Arbitragem[5]. São eles:
(i) Esclarecer a forma de instituição do processo arbitral, isso é, se ele vai se dar de maneira ad hoc ou institucional;
(ii) O critério de julgamento ser o de direito e que seja aplicado o ordenamento jurídico nacional;
(iii) A sede da Arbitragem ser a sede da Administração;
(iv) O idioma oficial do processo arbitral ser o Português;
(v) Observância do princípio da publicidade;
(vi) Observância dos prazos fixados no artigo 8º do Decreto Federal nº 10.025/2019.
De forma sucinta, analisa-se cada um desses preceitos e suas implicações.
Quanto ao primeiro, isso é, a forma de instituição da Arbitragem, importante destacar que o artigo 5º, §1º, inciso III do Decreto Federal nº 10.025 dispõe que, quando o contrato de parceria pública estipular cláusula compromissória para a resolução de conflitos, há a necessidade de se definir se os conflitos serão resolvidos por Arbitragem institucional ou ad hoc. Neste ponto, cabe uma breve e simples distinção entre as duas possibilidades.
Nas Arbitragens institucionais, as partes submetem o procedimento às regras estipuladas no regulamento da Câmara de Arbitragem que administrará o litígio. Por sua vez, nas Arbitragens ad hoc, são as próprias partes que estabelecem quais as regras procedimentais da avença ou, na ausência de estipulações prévias, submetem-se às determinações dos árbitros escolhidos.[6] Apesar da escolha entre Arbitragem institucional ou Arbitragem ad hoc estar intimamente ligada à autonomia da vontade das partes, é de se ressaltar que, via de regra, a escolha pelas Arbitragens institucionais é mais interessante à segurança procedimental, sobretudo pelo fato de vincular o litígio às regras de procedimento previamente estipuladas por Câmaras Arbitrais especializadas.
Na mesma linha de entendimento, Gustavo da Rosa Schmidt destaca que apesar das partes possuírem a liberdade de decidir por qualquer um dos dois modelos, quando se trata de Procedimentos Arbitrais com os entes públicos, é de bom tom que se dê preferência ao modelo institucional, já que esse tende a minimizar as chances do Procedimento Arbitral acabar judicializado. Afinal, na Arbitragem institucional é a Câmara quem vai ser responsável por uma série de decisões atinentes ao procedimento, como nomeação/impugnação dos árbitros, honorários, ou, mesmo, questões relativas a uma possível extensão da cláusula compromissória a terceiros, existência de jurisdição arbitral, entre outros pontos.[7] Mesmo entendimento é adotado por Ricardo Yamamoto, ao destacar que hoje é quase consenso que deve se dar preferência a uma Arbitragem institucionalizada, uma vez que já possui regras existentes e que já foram testadas na prática.[8] Inclusive, o autor destaca que o próprio inciso V do artigo 3º do Decreto Federal nº 10.025/2019[9] dispõe sobre essa preferência.
Quanto ao segundo, terceiro e quarto ponto, que são, respectivamente, a aplicação do direito brasileiro; a necessidade da sede do Procedimento Arbitral ser a da administração; e o idioma oficial ser o português, não são necessárias muitas digressões.
O segundo decorre do princípio constitucional da Legalidade que envolve os atos da Administração Pública, insculpido no artigo 37, caput, da Constituição Federal. Uma vez que a Administração deve atuar de acordo com o Direito que está posto, os seus conflitos precisam ser resolvidos com base nesse ordenamento.
Quanto ao terceiro ponto, e embora não seja exigido o idioma português por todas as leis que preveem Procedimentos Arbitrais com o poder público, é inegável que a preferência pela língua portuguesa, além de facilitar a fiscalização posterior por órgãos de controle e por tribunais[10], ainda vai ao encontro do princípio da publicidade qual a Administração Pública está vinculada.
Por fim, o quarto ponto tem razão de ser por causa de previsões como as do artigo 55, §2º, da Lei nº 8.666/93 (Lei das Licitações)[11], artigo 11, inciso III, da Lei nº 11.079/2004 (Lei das PPP’s)[12] e artigo 23-A da Lei 8897/95 (Lei das Concessões Comuns).[13]
Sobre o quinto ponto, a observância do princípio da publicidade, é fato que o costumeiro sigilo dos Procedimentos Arbitrais esbarra na ideia de transparência da Administração Pública. Uma das marcas do nosso regime administrativo constitucional é a ruptura com o modelo dos regimes autoritários que impedia o acesso dos cidadãos às informações atinentes aos assuntos da Administração. No Estado moderno, condena-se a cultura do sigilo, exigindo-se a publicização dos atos estatais. No Brasil, essa transparência é perfectibilizada por meio do princípio da Publicidade dos atos da Administração Pública, previsto expressamente no já citado artigo 37, caput, da Constituição Federal Brasileira. É por essa razão que a imposição de restrições à publicitação desses procedimentos vai de encontro a uma concepção de publicidade dos atos do Estado. Ora, se o sigilo não é requisito obrigatório da Arbitragem, e o princípio da publicidade precisa ser observado pela Administração Pública na prática dos seus atos, por decorrência lógica, quando participar de um Procedimento Arbitral, os entes públicos precisam garantir que a transparência seja alcançada. Não por outra razão, a publicidade foi expressamente prevista nos termos do artigo 2º, §3º da Lei nº 9.307/96 (Lei de Arbitragem), com a redação dada pela Lei nº 13.129/2015[14].
Quanto ao sexto e o último ponto, não são necessárias maiores digressões. O Decreto Federal nº 10.025/2018 prevê, em seu artigo 8º, uma série de prazos que devem ser observados pelas partes no decorrer do Procedimento Arbitral.
Assim, analisadas as principais disposições trazidas pelo Decreto Federal nº 10.025/2019 no que se refere ao desenho da Convenção de Arbitragem, pode se observar que este trouxe uma série de orientações e requisitos que devem ser observados quando o processo arbitral envolver a Administração Pública. Todavia, ainda que tenham começado a surgir previsões como as desse Decreto estudado, não são poucos os desafios que vão aparecer para que se possa realmente conceber a melhor forma dessas Convenções serem escritas. A bem da verdade, somente a prática da arbitragem, em contexto pós-reforma, será capaz de solucionar, efetivamente, todos os questionamentos que surgiram e surgirão.
Autores:
Marco Antônio Ferreira Pascoali: advogado no escritório Lamy & Faraco Lamy; membro do Grupo de Estudos em Arbitragem da Universidade Federal de Santa Catarina e da Comissão de Arbitragem da OAB/SC.
Murillo Preve Cardoso de Oliveira: advogado no escritório de Advocacia Menezes Niebuhr Advogados Associados; membro do Comitê Brasileiro de Arbitragem e da Comissão de Arbitragem da OAB/SC.
[1]Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. § 1º A administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis.
[2]Art. 4º A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato. § 1º A cláusula compromissória deve ser estipulada por escrito, podendo estar inserta no próprio contrato ou em documento apartado que a ele se refira.
[3]Art. 9º O compromisso arbitral é a convenção através da qual as partes submetem um litígio à arbitragem de uma ou mais pessoas, podendo ser judicial ou extrajudicial.
[4]CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo – Um comentário à Lei n.º 9.307/1996. 3. ed., São Paulo: Atlas, 2009, p. 112.
[5] OLIVEIRA, Gustavo Justino de; ESTEFAM, Felipe Faiwichow. Curso Prático de arbitragem e administração pública. São Paulo: Thomson Reuters, 2019, p. 93-94.
[6] Art. 21. A arbitragem obedecerá ao procedimento estabelecido pelas partes na convenção de arbitragem, que poderá reportar-se às regras de um órgão arbitral institucional ou entidade especializada, facultando-se, ainda, às partes delegar ao próprio árbitro, ou ao tribunal arbitral, regular o procedimento. § 1º Não havendo estipulação acerca do procedimento, caberá ao árbitro ou ao tribunal arbitral discipliná-lo.
[7] SCHMIDT, Gustavo da Rocha. Arbitragem na Administração Pública. Curitiba: Juruá, 2018, p. 68.
[8] YAMAMOTO, Ricardo. Arbitragem e Administração Pública: uma análise das cláusulas compromissórias em contratos administrativos. Dissertação apresentada à Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito. 2018, p. 80.
[9] Art. 3º. A arbitragem de que trata este Decreto observará as seguintes condições: […] V – a arbitragem será, preferencialmente, institucional;
[10] AMAMOTO, Ricardo. Arbitragem e Administração Pública: uma análise das cláusulas compromissórias em contratos administrativos. Dissertação apresentada à Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito. 2018, p. 65.
[11] Art. 55. São cláusulas necessárias em todo contrato as que estabeleçam: […] § 2º Nos contratos celebrados pela Administração Pública com pessoas físicas ou jurídicas, inclusive aquelas domiciliadas no estrangeiro, deverá constar necessariamente cláusula que declare competente o foro da sede da Administração para dirimir qualquer questão contratual, salvo o disposto no § 6o do art. 32 desta Lei.
[12] Art. 11. O instrumento convocatório conterá minuta do contrato, indicará expressamente a submissão da licitação às normas desta Lei e observará, no que couber, os §§ 3º e 4º do art. 15, os arts. 18, 19 e 21 da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, podendo ainda prever: […] III – o emprego dos mecanismos privados de resolução de disputas, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, para dirimir conflitos decorrentes ou relacionados ao contrato.
[13] Art. 23-A. O contrato de concessão poderá prever o emprego de mecanismos privados para resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei no 9.307, de 23 de setembro de 1996.
[14] Art. 2º […] §3º A arbitragem que envolva a administração pública será sempre de direito e respeitará o princípio da publicidade.