Bruno de Oliveira Carreirão*
Em novembro do ano passado, vi uma notícia que me incomodou bastante: o Conselho Federal da OAB propôs uma ação visando proibir o Ministério da Educação de credenciar cursos de graduação em direito na modalidade de educação à distância[1]. Além do argumento já batido de que a expansão de oferta de cursos de direito precariza o ensino jurídico no país (o que não e necessariamente verdade), a OAB argumenta que há incompatibilidade entre o ensino à distância e as diretrizes curriculares da graduação em Direito.
Se esses argumentos já me pareciam frágeis no final do ano passado, eles foram reduzidos à pó com a quarentena a que fomos submetidos por conta da pandemia do coronavírus e a transformação forçada da maioria dos cursos de Direito no país em cursos à distância[2] (com exceção de algumas instituições de ensino públicas, que alegam que o ensino à distância é inviável porque nem todos os alunos poderiam acompanhar as aulas pela internet – sem apresentar dados concretos que justifiquem essa afirmativa, contudo[3]).
O Conselho Federal da OAB alega que o curso de Direito é incompatível com o ensino à distância por ser indispensável o eixo de formação da prática jurídica. Assim, a OAB parte do pressuposto de que a prática jurídica só pode ser aprendida com atividades presenciais, ignorando que atividades simuladas de prática jurídica (audiências, sessões de julgamento, juris, etc.) podem ser realizadas por meio de videoconferência, que o estudante da modalidade EaD pode realizar um estágio na sua localidade, a possibilidade de debates em fóruns online, e etc.
Esse argumento da OAB, por si só, demonstra um profundo desconhecimento das potencialidades da tecnologia para o aprimoramento do processo de ensino-aprendizagem e revelam, mais uma vez, a já notória resistência dos profissionais do Direito à adoção de novas tecnologias – é só pensar que ainda tratamos o processo eletrônico e a própria internet como novidade[4].
O mais irônico é que, no momento atual, a própria prática jurídica tem sido realizada à distância: estamos todos atendendo clientes de forma remota e fazendo audiências e sustentações orais por videoconferência direto de nossas casas. Precisava realmente esse choque de realidade para termos essas possibilidades? Se pudermos tirar algo de positivo da pandemia do coronavírus, será a aceleração da obsolescência de certas resistências ao uso da internet – porque é um caminho sem volta.
A ideia de que os cursos à distância conduziriam a uma precarização do ensino jurídico também é falaciosa. Se o problema são o grande número de faculdades de qualidade duvidosa espalhados pelo país, o ensino à distância poderia ser justamente uma solução! O EaD poderia permitir que o estudante morador do pequeno e isolado município de Xirimbitomba[5], ao invés de estudar na faculdade de baixa qualidade de sua região, possa ter aulas com os melhores professores dos principais centros do país, sem necessidade de se deslocar. Os aspirantes a professores é que talvez não fiquem muito felizes com isso…
A verdade é que mais uma vez o objetivo da OAB, sob o pretexto de defender a qualidade do ensino jurídico, é garantir reserva de mercado, a exemplo do que já faz com o Exame de Ordem (tema que, por sinal, ainda quero abordar aqui na coluna em algum momento). A criação de cursos de Direito à distância ampliaria as possibilidades de formação de mais profissionais do Direito e, consequentemente, a entrada de mais players no mercado da advocacia (sim, conformem-se, é um mercado), o que não interessa aos advogados já bem estabelecidos – que costuma ser o caso dos conselheiros federais da OAB.
Para encerrar, não posso deixar de comentar a maior ironia de todas: o Conselho Federal da OAB possui a Escola Superior da Advocacia (ESA), que oferece diversos cursos de pós-graduação em Direito[6]. Adivinhem? Todas à distância…
* Bruno de Oliveira Carreirão é advogado, mestre em Direito e sente que a adaptação do Direito à tecnologia está atrasada em pelo menos 15 anos.
[1] “OAB vai à justiça contra graduações a distância em Direito”: https://www.oab.org.br/noticia/57702/oab-vai-a-justica-contra-graduacoes-a-distancia-em-direito
[2] Tecnicamente, existe uma diferença entre “ensino à distância” e “atividades não presenciais”, uma vez que o ensino à distância pressupõe que este tenha sido planejado desde o início para essa modalidade (o que não é o caso do que está acontecendo agora, por razões evidentes), mas estou tratando aqui como sinônimos para facilitar o entendimento.
[3] Segundo reportagem da Folha do final de março, 60% das universidades federais rejeitaram adotar o ensino à distância durante a quarentena: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/03/60-universidades-federais-rejeitam-ensino-a-distancia-durante-quarentena.shtml – mas ora, se 40% conseguiram viabilizar o ensino à distância, por que as outros 60% não conseguem?
[4] Já abordei aqui na coluna a oportunidade perdida de o CPC de 2015 ter abraçado de vez o processo eletrônico: http://www.investidura.com.br/biblioteca-juridica/colunas/pitacos-de-um-advogado-rabugento/337747-o-novo-cpc-ficou-velho
[5] Município fictício, para evitar que alguém fique ofendidinho.
[6] Site da ESA Nacional: https://esa.oab.org.br/