Edson Rubim da Silva Reis Filho[1]
Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar a compatibilidade da aplicação do regime de antecipação do ICMS, instituído por diversos Estados-membros, para empresas optantes pelo recolhimento unificado do Simples Nacional. Com esse propósito, inicialmente serão diferenciados institutos jurídicos que, não raro, se confundem com a antecipação tributária, como a substituição tributária e o diferencial de alíquota em operações interestaduais. Em momento ulterior, serão expostas as tensões da imposição desse regime para micro e pequenas empresas com diversas limitações constitucionais ao poder de tributar e as possíveis inconstitucionalidade delas advindas.
Palavras-chave: Antecipação. ICMS. Empresas. Simples Nacional. Compatibilidade. Limitações ao poder de tributar.
Introdução
A Lei Complementar no 123, de 2006, cumprindo o desiderato do constituinte manifestado em seu art. 146, III, d e parágrafo único, instituiu tratamento diferenciado e favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, por meio qual diversos tributos inseridos na competência tributária dos entes federativos são pagos por meio de um recolhimento unificado.
Com o advento do diploma em comento, as obrigações referentes a vários impostos e contribuições passaram a ser extintas por meio de um único pagamento. Além disso, promoveu-se a simplificação de obrigações trabalhistas, empresariais e tributárias acessórias.
O rol de tributos abrangidos pelo recolhimento unificado dentro do Simples Nacional está enumerado em seu artigo 13. Além de tributos federais (IRPJ, IPI, PIS/PASEP, COFINS e CPP), estão abrangidos impostos de competência dos Estados (ICMS) e Municípios (ISSQN).
Malgrado o ICMS componha a lista exaustiva de tributos abrangidos pelo Simples Nacional, o recolhimento do imposto estadual será, em determinadas situações, efetuado de forma autônoma, fora do regime unificado. Nesse sentido, o art. 13, § 1o, XIII, alíneas a a f do diploma em exame determina o pagamento avulso do ICMS devido pela empresa optante na condição de responsável tributária, seja por substituição ou transferência, daquele exigido em operações desacompanhadas de documento e por ocasião das importações de mercadorias, bem como o devido na entrada de petróleo, inclusive lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, energia elétrica, quando não destinados à comercialização ou industrialização (como consumidor final).
Nenhuma incoerência jurídica aparente decorre das ditas exceções.O que chama a atenção, no entanto, é a previsão de exclusão contida na alínea g, abaixo transcrita:
§ 1o O recolhimento na forma deste artigo não exclui a incidência dos seguintes impostos ou contribuições, devidos na qualidade de contribuinte ou responsável, em relação aos quais será observada a legislação aplicável às demais pessoas jurídicas:
(…)
III – ICMS devido:
(…)
g) nas operações com bens ou mercadorias sujeitas ao regime de antecipação do recolhimento do imposto, nas aquisições em outros Estados e Distrito Federal:
1. com encerramento da tributação, observado o disposto no inciso IV do § 4º do art. 18 desta Lei Complementar;
2. sem encerramento da tributação, hipótese em que será cobrada a diferença entre a alíquota interna e a interestadual, sendo vedada a agregação de qualquer valor;
Com efeito, o permissivo legislativo de exclusão do ICMS cobrado por antecipação do regime unificado tem dado azo à proliferação da adoção da cobrança antecipada por parte dos Estados-membros, que passaram a prevê-lo em sua legislação interna, exigindo o imposto estadual a incidir sobre a futura operação de circulação de mercadorias quando da mera entrada de mercadorias adquiridas em outro Estado, mesmo que se trate de empresas optantes do Simples Nacional .
O que se pretende, neste trabalho, é diferenciar a antecipação tributária de outros institutos com que tem sido confundida, especialmente a substituição tributária e o diferencial de alíquota em operações interestaduais e, à luz da diferenciação proposta e de diversas limitações constitucionais ao poder de tributar, debater a constitucionalidade do art. 13, § 1o, XIII, g, da Lei Complementar nº 123/06, bem como das leis dos Estados que, com amparo na lei complementar nacional, instituíram o regime de antecipação para as micro e pequenas empresas que aderiram ao regime de recolhimento unificado de tributos.
1. O ICMS
1.1 A materialidade
Nos termos do art. 155, II, da Constituição Federal, o ICMS, de competência estadual, incide sobre operações relativas à circulação de mercadorias, sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação.
Observa-se que o tributo que outrora, na vigência da Constituição anterior, incidia apenas sobre a primeira operação – ICM era a sigla que o representava, passou a aglutinar mais duas hipóteses de incidência, referentes à prestação de serviços de transporte interestadual ou intermunicipal e de comunicação.
O cerne do presente trabalho dirige-se à análise do ICMS cuja hipótese de incidência é a circulação de mercadorias (operação mercantil), visto que o regime de antecipação de que se tratará costuma ser somente a este aplicado.
A respeito da noção de operação mercantil, seguem-se as lições de Roque Carrazza[2]:
“para que um ato configure uma operação mercantil é mister que: a) seja regido pelo Direito Comercial; b) tenha sido praticado num contexto de atividades empresariais; c) tenha por finalidade, pelo menos em linha de princípio, o lucro (resultados econômicos positivos); e d) tenha por objeto uma mercadoria.”
Obviamente, a circulação a que se refere o constituinte é a jurídica, que transfere a titularidade da mercadoria, de modo que circulações meramente físicas – como a saída da mercadoria do estabelecimento e o seu posterior retorno – não dão azo à incidência tributária, sob pena de transformar-se um imposto sobre “circulação de mercadorias” em imposto sobre “mercadorias”.
1.2 Antecipação e a substituição tributária
A antecipação é substantivo que interage com a idéia de tempo, representando a prática de algo em momento mais cedo daquele para o qual havia sido previsto.
No plano jurídico, a antecipação tributária opera dentro do aspecto temporal do pagamento, adiantando-o, e não no da norma de incidência tributária, que mantém os mesmos critérios (material, temporal, quantitativo e pessoal), porém com ocorrência presumida pela legislação.
Em idêntico sentido, posicionava-se Ricardo Lobo Torres[3], para quem “a antecipação é fenômeno que ocorre no plano do tempo do pagamento e não no do tempo de ocorrência do fato gerador”.
Nesse sentido, ordinariamente (art. 12, I, da Lei Complementar nº 87/1996), tem-se que o fato gerador do ICMS ocorre no momento da saída da mercadoria do estabelecimento comercial. Isto é mantido na antecipação tributária, que não modifica o critério temporal da hipótese de incidência.
O que a antecipação tributária faz é criar, a partir de determinado fato presuntivo (geralmente, a entrada dos insumos no território do Estado-membro), a presunção de que haverá posterior circulação de mercadoria, com a saída da mercadoria do estabelecimento comercial, e consequente ocorrência de fato gerador (fato presumido). Em virtude da presunção, antecipa o momento do pagamento do tributo.
Paulo de Barros Carvalho define a presunção como o resultado lógico, mediante o qual do fato conhecido, cuja existência é certa, infere-se o fato desconhecido ou duvidoso, cuja existência é, simplesmente, provável[4].
Doravante, é preciso diferenciar a antecipação (aqui utilizada como sinônimo de antecipação em sentido estrito, conceito adiante aprofundado), de outras figuras jurídicas, como a substituição tributária e o pagamento do diferencial de alíquotas (DIFAL) em operações interestaduais.
Na substituição tributária, um terceiro, vinculado de forma indireta ao fato gerador praticado, mas que não o pratica, é, em virtude dessa vinculação e de previsão em lei, obrigado ao pagamento do tributo, que já nasce na sua pessoa, excluindo-se o contribuinte do dever de pagar o tributo. O terceiro, responsável pelo pagamento, é denominado de substituto tributário, ao passo que o contribuinte excluído é qualificado como substituído tributário.
A figura do substituto tributário não é desconhecida pelo Código Tributário Nacional, pois se amolda com perfeição ao gênero responsável tributário, bem delineado pela combinação dos arts. 121 e. 128:
Art. 121. Sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária.
Parágrafo único. O sujeito passivo da obrigação principal diz-se:
II – responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei.
Art. 128. Sem prejuízo do disposto neste capítulo, a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação.
Como não pratica o fato gerador, o substituto processual não pode ser considerado contribuinte da relação tributária, senão um terceiro conclamado a responder pelo tributo devido por outrem, de quem foi excluída a responsabilidade pelo pagamento.
A etimologia não é irrelevante. O substituto só é assim adjetivado, pois, literalmente, substitui quem teria o dever de pagar o tributo (contribuinte). Se a obrigação permanecesse na figura do próprio contribuinte do imposto, desnecessária seria nova previsão legal de sua responsabilidade, tampouco nomenclatura diversa para designá-lo, afinal não se pode ser substituto de si mesmo.
A substituição pode operar-se de modo diferido, progressivo ou concomitante. O raciocínio foi bem desenvolvido por José Eduardo Soares de Melo[5], para quem existem três espécies de substituição tributária: a para trás (regressiva), a concomitante e a para frente (progressiva). Esta última foi expressamente incluída na Constituição Federal (art. 150, § 7º) pela Emenda Constitucional nº 3/1993.
Quanto à primeira, verdadeiro diferimento no qual se atribui a terceiro, vinculado ao fato gerador, a responsabilidade pelo pagamento do tributo devido por outros agentes em operações anteriores, a doutrina, de modo geral, acena com sua constitucionalidade, pois não há, verdadeiramente, nenhuma presunção. A realização do fato gerador é real e concreta. O mesmo em relação à substituição concomitante, nem sempre aprofundada pelos autores, na qual o dever do substituto nasce de forma simultânea à ocorrência do fato gerador.
Na substituição progressiva – também chamada de substituição para trás -, o fato gerador sequer ocorreu, mas é, pela lei, presumido, para possibilitar o nascimento da obrigação e a cobrança do imposto. Quanto a esta, há inúmeras críticas. De modo geral, trata-se da cobrança antecipada, concentrada em um determinado sujeito, do tributo que incidirá em operações subsequentes de um ciclo operacional que ainda não ocorreram e sequer se sabe se, de fato, existirão.
Em função do surgimento da exação antes mesmo da realização do fato imponível, acusa-se de inconstitucionalidade os ditames que instituem a substituição para frente, inclusive o dispositivo constitucional que, expressamente, a autoriza, eis que fruto do Poder Constituinte Derivado, de natureza sabidamente ilimitada, condicionada e subordinada.
Na ótica desses autores – por todos, Hugo de Brito Machado[6] -, tampouco a previsão de imediata e preferencial restituição da quantia paga atenuaria a nulidade da cobrança, que continuaria originária de fato inexistente.
Por sua vez, as lições de Marco Aurélio Greco[7], conduzem, a princípio, à legitimidade da substituição tributária. Ao tratar da natureza jurídica do tributo, o autor destacou tratar-se de norma jurídica, e não puramente de obrigação (relação jurídica) ou de prestação (conteúdo da obrigação). Nessa linha de raciocínio, consignou ser legítima a alteração da ordem do esquema normativo tradicional, com a cobrança do tributo antes mesmo da ocorrência do fato gerador em concreto.
Certo é que a substituição encerra, atualmente, presunção jurídica com amparo constitucional (art. 150, § 7º), que se notabiliza pelo prestígio à praticidade tributária.
Ultrapassa os limites desse trabalho a análise da legitimidade das presunções1 de ocorrência do fato gerador. A exposição serve apenas para fincar as premissas que balizarão as conclusões ao final reveladas.
As noções encimadas são essenciais para distinguir a substituição da antecipação tributária em sentido estrito[8]. Nesta, o legislador também presume o nascimento da obrigação tributária, porém não atribui a terceiro a responsabilidade pelo pagamento do tributo devido.
Deveras, laboram em equívoco aqueles que enxergam na antecipação modalidade de substituição tributária. Cumpre divisar os institutos.
Com efeito, na antecipação, o contribuinte, e, pelo menos em tese[9], somente ele, permanece obrigado ao imposto. O grande diferencial para o regime normal de tributação é que, nela, o contribuinte deverá pagar o tributo em momento anterior ao próprio surgimento da obrigação. Dessa forma, o sujeito passivo direto “antecipa” o que seria por si devido apenas quando da efetiva operação mercantil.
Portanto, a substituição e antecipação em sentido estrito, embora calcadas em presunções legais da ocorrência do fato gerador e demandem o pagamento antecipado do tributo, são inconfundíveis. Se a substituição tributária representa espécie do gênero responsabilidade tributária, em que o dever de pagamento incumbe ao sujeito passivo indireto, e, na antecipação em sentido estrito, sequer se cogita da participação de responsável tributário, pois só existe a figura do contribuinte, não há considerá-las idênticos.
O Superior Tribunal de Justiça, quando se debruçou sobre a diferenciação entre os institutos, soube, de modo particularizado, distingui-los, tratando a antecipação um gênero, extraído do art. 150, parágrafo 7o, da Lei Maior, que pode ocorrer com ou sem substituição tributária. Assim, destacou que a antecipação sem substituição tributária (aqui alcunhada de antecipação em sentido estrito) independe de lei complementar, podendo ser regulamentada pela lei interna dos Estados-membros.
Em adição, o precedente judicial[10] teve a virtude de, ao tratar a antecipação como espécie de substituição, igualar as consequências da não ocorrência do fato gerador presumido. Ora, se a substituição, nos termos do art. 150, parágrafo 7o, da Lei Maior eLei Complementar no 87/96, assegura o direito à repetição, seja via compensação do crédito ou restituição em espécie, o mesmo regime jurídico deve ser assegurado à antecipação em sentido estrito.
Vale lembrar que, acertadamente, o Supremo Tribunal Federal, no RE 593849/MG[11], reviu seu entendimento quanto à impossibilidade de repetição nos casos de ocorrência do fato gerador, mas com base de cálculo inferior à presumida. Em consequência, idêntica possibilidade deve ser assegurada aos casos de antecipação.
1.3 A antecipação e o diferencial de alíquotas
O regime de antecipação do ICMS costuma ser exigido pelos Estados-membros nos casos em que a mercadoria a ser comercializada advém de ente federativo diverso, ou seja, nas operações interestaduais. Em caráter norteador, transcreve-se a previsão contida no Código Tributário do Estado do Amazonas, que não difere do modelo utilizado pelos demais Estados:
Art. 25-B. O imposto incidente sobre a primeira operação de saída será exigido por antecipação do contribuinte localizado neste Estado que adquirir mercadorias procedentes de outra unidade da Federação, destinadas à comercialização ou industrialização, exceto nas hipóteses previstas na legislação.
Trata-se de questionável opção legislativa, e não de elemento essencial do regime. Parece ser mais fácil instituir a antecipação para o momento da entrada de mercadorias fabricadas em outro Estado – nas quais há controle da entrada e emissão de notas – que por ocasião sua produção interna, antes de sua circulação.
Ademais, a cobrança antecipada tem a nítida finalidade, por meio da tributação, de desestimular a aquisição de insumos de outros Estados, fomentando a sua produção interna. É inegável que o a exigência do pagamento antecipado em tais operações representa medida de indução da atividade econômica.
A instituição do regime para as operações interestaduais ocasiona certa complexidade na compreensão do fenômeno, gerando confusão com o chamado diferencial de alíquotas previsto pela Constituição Federal, em seu art. 155, § 2º, VII.
A dificuldade não deriva de falta de percepção aguçada dos juristas, mas, geralmente, de ausência de primor técnico da legislação que, por vezes, denomina antecipação aquilo que, em substância, é mera cobrança do diferencial de alíquota das operações interestaduais3.
No regime de antecipação do ICMS, mantêm-se todos os elementos essenciais da regra matriz de incidência tributária, com a diferença de que estes são presumidos. Nele, exige-se do contribuinte o pagamento antecipado referente a fato gerador a ocorrer no futuro.
Dessa forma, a base de cálculo (valor da operação) adotada na cobrança antecipada deve ser, rigorosamente, a mesma aplicável por ocasião da real ocorrência do fato gerador, qual seja, o valor da operação futura. Diante do não conhecimento do valor da operação antes de sua materialização, a base de cálculo do tributo deve ser obtida mediante o acréscimo de uma margem de valor agregado (MVA) sobre o valor da operação interestadual ou com a adoção de preços médios, comprovadamente praticados no mercado, para situações equivalentes.
A alíquota também, em tese, deveria ser a mesma incidente sobre a operação de saída futura, isto é, a alíquota interna, que flutua entre 17% e 18% para a maior parte das mercadorias.
Com efeito, não se pode utilizar como base de cálculo o valor da operação anterior (operação interestadual) constante da nota fiscal de entrada do produto, nem como alíquota o diferencial entre a alíquota interna e a interestadual, pois tais critérios correspondem à operação anterior (operação interestadual), já tributada, e são evidentemente inconciliáveis com a base de cálculo e alíquota do presumido fato gerador futuro.
Ocorre que diversos Estados, sob a nomenclatura de “antecipação do ICMS”, têm instituído cobrança, quando do ingresso da mercadoria, considerando como base de cálculo o valor da operação interestadual – sem qualquer margem de valor agregado ou consideração do valor médio da operação futura – e como alíquota a diferença entre a alíquota interestadual e a interna.
A bizarrice tem o amparo do art. 13, XIII, g, f.2, da Lei Complementar nº 123/06, que, usurpando a competência tributária[12] dos Estados-membros para definir a alíquota do ICMS, determinou que,nas operações com bens ou mercadorias sujeitas ao regime de antecipação do recolhimento do imposto, nas aquisições em outros Estados e Distrito Federal. sem encerramento da tributação, será cobrada a diferença entre a alíquota interna e a interestadual, sendo vedada a agregação de qualquer valor.
Nessa situação, inobstante o nomen juris utilizado, é notório que se trata de disfarçada cobrança do diferencial de alíquota (DIFAL) devido pelo adquirente na condição de responsável tributário, e não de antecipação do ICMS que incidiria na operação interna subsequente por ele promovida, na condição de contribuinte.
O artigo 4o, I, do Código Tributário é lapidar quanto à irrelevância da denominação conferida aos institutos que interagem com o tributo, ao indicar que “a natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-la a denominação e demais características formais adotadas pela lei”.
A estratégia não é aleatória. Como o constituinte apenas autorizou a cobrança de diferença do imposto de adquirentes que figurem na condição de consumidor final, contribuinte do imposto ou não, os entes federativos, sob a pecha de antecipação do imposto, instituem cobrança não autorizada do DIFAL de adquirentes que, não sendo consumidores finais das mercadorias adquiridas de outros Estados, as comercializarão ou industrializarão no mercado interno. Trata-se de articulada burla à Constituição Federal.
Alguns Estados o fazem de maneira escancarada, outros de modo mais sofisticado. O último modus operandi é utilizado pelo Estado do Amazonas que, como visto no dispositivo alhures reproduzido, num primeiro momento, no art. 25-B de seu Código Tributário, flerta com a real utilização do regime de antecipação (para operações futuras), mas, ao especificar o critério quantitativo da exação (base de cálculo e alíquota), em seus §1º (corresponderá à aplicação sobre o valor da operação de entrada da diferença entre a alíquota interna adotada neste Estado e a interestadual estabelecida por Resolução do Senado Federal), revela a real substância da exação[13].
Observa-se que, conquanto o Código contenha, em outros dispositivos, a previsão da possibilidade de inclusão de percentual margem de lucro para a apuração da futura base de cálculo da operação cujo pagamento é antecipado, o §1o reproduzido é peremptório ao adotar a base de cálculo da operação interestadual (valor da operação de entrada), bem como a diferença entre a alíquota interna e a interestadual, como critério quantitativo do tributo[14].
Adiante, convém enunciar a base normativa do diferencial de alíquotas do ICMS, a fim de melhor compreendê-lo. Segundo o art. 155, § 2º, VII da Lei Maior, nas operações interestaduais que destinem bens e serviços a consumidor final, contribuinte ou não do imposto, localizado em outro Estado, adotar-se-á a alíquota interestadual e caberá ao Estado de localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual.
Oportuno grifar que a Emenda Constitucional nº 87/2015 modificou a redação do art. 155, § 2º, VII, passando a prever a obrigatoriedade de repasse do ICMS incidente nas operações estaduais aos Estados em que localizado o consumidor final, seja ou não contribuinte do imposto, o que não ocorria antes da alteração caso o consumidor final não fosse contribuinte do ICMS. Ao fazê-lo, atendeu ao apelo político dos Estados conhecidos por apenas alocar os destinatários de mercadorias, e não os fornecedores (contribuintes).
Antes da atuação do poder constituinte derivado, a Constituição previa que, em relação às operações e prestações que destinassem bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado, adotar-se-ia a alíquota interestadual, quando o destinatário fosse contribuinte do imposto, e a alíquota interna, quando o destinatário não fosse contribuinte dele.
No último caso, o tributo revertia, integralmente, ao Estado em que ocorresse a saída da mercadoria, ficando o Estado de destino sem nenhuma parcela do imposto incidente na operação interestadual. Era o que, de forma comum, ocorria na aquisição de produtos em lojas virtuais (e-commerce).
Todavia, o constituinte derivado não se limitou a repartir o produto da arrecadação da operação entre o Estado de origem e de destino, também passando a prever, no art. 155, § 2º, VIII, a, que a responsabilidade pelo recolhimento do imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual será atribuída ao destinatário da mercadoria, caso se trate de contribuinte do ICMS.
No ponto, o que o dispositivo fez foi consignar hipótese de responsabilidade tributária constitucionalmente qualificada, diretamente extraída da Constituição Federal, sem exigência de intermediação do legislador complementar, no cumprimento do papel previsto pelo art. 146, III, “a” e “b”[15], ou do próprio legislador ordinário.
Trata-se de inédita possibilidade, haja vista que, embora o art. 150, § 7º, já versasse sobre forma de responsabilidade tributária (responsabilidade por substituição), apenas conferia autorização aos entes com competência tributária para que instituíssem a substituição. O texto normativo era claro ao referir-se à possibilidade de “a lei” atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável.
Já no art. 155, § 2º, VIII, a, não há margem aos Estados-membros para que optem ou não pela instituição da responsabilidade, pois o constituinte já prevê que a responsabilidade pelo recolhimento do imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual será atribuída ao destinatário.
Esse dever de pagamento da diferença entre a alíquota interna e a alíquota interestadual é que se denomina de diferencial de alíquota e competirá ao contribuinte (remetente), quando o destinatário não for contribuinte do imposto, e ao destinatário, quando este for contribuinte do imposto (praticar, com habitualidade e onerosidade, a circulação de mercadoria).
À evidência, o adquirente da mercadoria oriunda de outro ente federativo não pode ser enquadrado no conceito de contribuinte, pois quem realiza a operação de circulação de mercadoria é o remetente, este sim a exteriorizar signo presuntivo de riqueza e ajustar-se ao conceito incorporado pela Constituição de 1988.
Não se trata de responsabilidade na modalidade substituição tributária, pois o contribuinte não é substituído da obrigação tributária, mantendo o dever de efetuar o pagamento do crédito tributário referente ao valor resultante da aplicação alíquota interestadual sobre a base de cálculo.
Igualmente, o DIFAL não se enquadra nas hipóteses de responsabilidade por transferência previstas pelo Código Tributário Nacional, em seus arts. 130 a 135, pois o dever de pagar o diferencial já nasce na pessoa do adquirente, sem que se cogite de transferência da prestação em virtude de um fato posterior. À primeira vista, a previsão estabelecida pelo constituinte não parece amoldar-se a nenhum desses casos, encerrando modalidade sui generis de responsabilidade tributária.
Nesse aspecto, reside a substancial diferença entre a antecipação e o DIFAL. Na antecipação, o sujeito paga o ICMS devido, na condição de contribuinte, em relação à sua futura operação interna; no DIFAL, o sujeito paga o ICMS devido, na condição de responsável tributário, em relação à anterior operação interestadual de remessa das mercadorias.
Expostas as particularidades do diferencial de alíquotas (DIFAL), não há dúvidas de que a antecipação tributária é com ele também inconfundível. Enquanto, o DIFAL é pago pelo adquirente, na condição de responsável tributário, em virtude da já ocorrida operação interestadual de circulação de mercadorias promovida pelo remetente (contribuinte), o segundo é pago como contribuinte, pela, ainda não ocorrida, operação de revenda com as mercadorias adquiridas do outro Estado.
2. As microempresas, empresas de pequeno porte e o Simples Nacional
O conceito de microempresas e empresas de pequeno porte é jurídico-positivo. A Constituição, quando a elas se referiu no art. 179, remeteu a sua à legislação infraconstitucional. Executando tal tarefa, a Lei Complementar nº 123/06 utilizou como critério de enquadramento a receita obtida anualmente pelos empresários.
Torna-se oportuno a reprodução do dispositivo que traz as definições:
Art. 3º Para os efeitos desta Lei Complementar, consideram-se microempresas ou empresas de pequeno porte, a sociedade empresária, a sociedade simples, a empresa individual de responsabilidade limitada e o empresário a que se refere o art. 966 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), devidamente registrados no Registro de Empresas Mercantis ou no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, conforme o caso, desde que:
I – no caso da microempresa, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta igual ou inferior a R$ 360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais); e
II – no caso de empresa de pequeno porte, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta superior a R$ 360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais) e igual ou inferior a R$ 4.800.000,00 (quatro milhões e oitocentos mil reais). (Redação dada pela Lei Complementar nº 155, de 2016)
Desta feita, o empresário[16] que obtiver receita bruta anual igual ou inferior a R$ 360.000.00, será considerado microempresa, ao passo que aquele que auferir receita bruta superior a R$ 360.000,00 e igual ou inferior a R$ 4.800.000,00 será reputado empresa de pequeno porte.
Após a definição dos conceitos, o legislador instituiu, nos arts. 12 e 13 da LC nº 123/06, um regime privilegiado, denominado Simples Nacional, no qual, por meio de um recolhimento mensal, com um documento único de arrecadação, diversos tributos federais (IRPJ, IPI, PIS/PASEP, COFINS e CPP), o ICMS, de competência estadual, e o ISSQN, de competência municipal são extintos.
O regime contém exceções quanto ao integral recolhimento, dentro do Simples Nacional, dos tributos por si abrangidos, como se verá no exemplo específico do ICMS em regime de antecipação.
De todo modo, o tratamento diferenciado atende à vontade constitucional manifestada em seus arts. 146, III, d; 170, IX e 179, e representa mecanismo de intervenção no domínio econômico, com o escopo de fomentar a manutenção e desenvolvimento das micro e pequenas empresas, bem como o crescimento econômico.
Rompe-se, assim, o mito da neutralidade tributária há muito objetado por Geraldo Ataliba[17], por meio das denominadas normas indutoras de que trata Luís Eduardo Schoueri[18].
De arremate, faz-se mister registrar que o enquadramento como ME ou EPP não implica o necessário recolhimento de tributos por meio do regime unificado (Simples Nacional) de que tratam os arts. 12 e 13 da LC nº 123/06, mas apenas oportuniza ao empresário assim qualificado optar ou não pelo regime tributário especial.
3. A antecipação do ICMS para empresas optantes do Simples Nacional
3.1 Considerações iniciais
Conforme introduzido, a art. 13, § 1o, XIII, g da LC nº 123/06 excluiu o ICMS devido no regime de antecipação do recolhimento unificado do Simples Nacional.
Com subsídio da legislação complementar, os Estados têm, diuturnamente, aplicado o regime de antecipação do tributo para as empresas optantes do Simples Nacional, inclusive consignando regras expressas quanto à submissão das MEs e EPPs.
A situação tem gerado uma combinação de recolhimentos de ICMS dentro e fora do regime especial. Analisa-se, adiante, a compatibilidade das previsões com a Constituição Federal, em especial, com os princípios gerais de que trata o art. 145 e seguintes da Constituição e com limitações do poder de tributar dispostas nos arts. 150 a 152.
3.2 O bis in idem, o não confisco e as normas de divisão de competência
Do exame do art. 13, § 1o, XIII, “g” da Lei Complementar no 123/06, particularizam-se duas situações: a de antecipação do ICMS com e sem encerramento da tributação. Na primeira, ultimada a cobrança antecipada, não há imposto a ser exigido em momento posterior, dando-se por encerrada a arrecadação na cadeia econômica; na segunda, inobstante haja recolhimento antecipado, permanece imposto a ser recolhido após a ocorrência do fato gerador presumido, geralmente porque a base de cálculo ou alíquota do imposto antecipado foram apuradas a menor.
A consequência de a antecipação operar-se com ou sem encerramento da tributação não se limita à necessidade de posterior complementação do tributo, mas, especialmente, impacta no volume da receita considerado para fins de cálculo do pagamento unificado do Simples Nacional. Explica-se.
Nos termos do inciso IV do § 4o-A do art. 18 da LC no 123/06, o contribuinte deverá segregar as receitas decorrentes de operações ou prestações sujeitas à tributação concentrada em uma única etapa (monofásica), bem como, em relação ao ICMS, que o imposto já tenha sido recolhido por substituto tributário ou por antecipação tributária com encerramento de tributação. Em termos práticos, a receita obtida com as operações de circulação de mercadorias que já sofreram antecipadamente a incidência integral de ICMS é desconsiderada para fins da apuração do valor unificado do Simples. Nesse caso, embora a microempresa ou empresa de pequeno porte não possa creditar-se, dentro do Simples, do valor pago a título do ICMS, ao menos pode excluir a receita obtida com a operação tributada antecipadamente pelo Estado, diminuindo assim a base de cálculo utilizada para apuração do recolhimento no regime unificado.
Já no regime de antecipação sem encerramento da tributação[19], a Lei Complementar não autoriza a segregação do valor obtido com as operações de circulação de mercadoria que serviram de base de cálculo do imposto antecipado. Tem-se, então, o seguinte panorama: o contribuinte paga o ICMS antecipado sobre a circulação de mercadorias a ocorrer futuramente e, posteriormente, a receita obtida com essas mesmas operações também comporá a base de cálculo do recolhimento unificado do Simples Nacional, gerando novo valor de ICMS a ser revertido ao Estado-membro.
Dito de outro modo, o contribuinte verá o numerário obtido com a operação de circulação de mercadorias compor tanto a base de cálculo do ICMS pago antecipadamente, como do ICMS pago dentro do recolhimento unificado do SIMPLES Nacional. O Estado-membro ganha duas vezes: uma com a antecipação; outra com o recebimento do ICMS calculado sobre a receita do contribuinte.
O bis in idem é manifesto.
Com a devida vênia a eventual posicionamento contrário, não é possível anuir com a tese de que não há incidência dupla vedada, pois a tributação não se daria sobre os mesmos fatos geradores, visto que o ICMS pago no regime de antecipação incidiria sobre a circulação de mercadorias, ao passo que aquele recolhido pelo Simples possuiria como hipótese de incidência a obtenção de receita.
Nesse contexto, é imperioso firmar que a Lei Complementar no 123/06, diploma de caráter nacional, não modificou as hipóteses de incidência previstas para os tributos por ela abrangidos, especialmente as do ICMS, que continua a incidir sobre as operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação.
Nem poderia ser diferente, pois, caso se distanciasse da previsão do art. 155, II, adotando hipótese de incidência distinta daquela prevista pelo constituinte, de três, uma: i) o dispositivo seria inconstitucional por violar o princípio da capacidade contributiva, caso incidisse sobre fato sem conteúdo econômico; ii) o dispositivo seria inconstitucional por invadir a competência privativa da União ou Municípios, caso incidisse sobre uma das situações previstas nos artigos 153 e 156; ou iii) o dispositivo seria inconstitucional por invadir a competência residual da União, disposta no art. 154, I, da Carta Magna, ao instituir imposto sobre fato econômico ainda não tributado.
A tese de que inexiste bis in idem, pois o ICMS, repartido dentro do Simples, teria como hipótese de incidência “auferir receita” incorre nesta última inconstitucionalidade, não evitando a declaração de nulidade da aplicação do regime de antecipação para as empresas optantes, desta vez com arrimo na violação das regras de divisão de competência tributária.
Em verdade, as hipóteses de incidência dos tributos abrangidos pelo Simples permanecem as mesmas. A particularidade reside no modo de apuração do quantum devido, obtendo-se o valor do tributo não a partir da base de cálculo ordinariamente prevista, mas por meio da aplicação um percentual sobre receita auferida pela empresa optante.
A sistemática não é de todo desconhecida, à semelhança do já que ocorre com o IRPJ no regime de lucro presumido, que mantém a sua hipótese de incidência constitucional (art. 195, I, “c”), com a peculiaridade de o lucro ser calculado a partir da aplicação de um percentual sobre a receita obtida.
A diferença é que, no regime do Simples, a receita servirá de base de cálculo de todos os tributos por ela abrangidos, efetuando-se apenas um pagamento, com posterior segregação do percentual competente a cada ente, a depender da atividade exercida, nos termos dos Anexos da Lei Complementar no 123/06.
Nessa linha expositiva, afirma-se que, com a manutenção do regime de antecipação, sem encerramento da tributação, para empresas optantes pelo Simples Nacional, há dupla tributação sobre a mesma operação de circulação de mercadorias: primeiramente, no regime antecipado; posteriormente, no regime unificado do Simples Nacional.
Tal situação não está autorizada pela Constituição, que apenas chancelou o bis in idem – e também a bitributação – na excepcional hipótese do art. 154, II, em que, diante da iminência ou caso de guerra externa, a União poderia instituir impostos extraordinários, compreendidos ou não em sua competência tributária. Note-se, ainda assim, que a faculdade é atribuída ao ente federal, jamais aos Estados-membros.
O bis in idem vedado ganha ares de confisco, noção aqui tomada em sentido lato, de tributação sem amparo constitucional, atraindo, igualmente, a declaração de inconstitucionalidade do regime de antecipação por violação ao art. 150, IV[20], da Lei Maior.
3.3 O princípio da capacidade contributiva nos tributos indiretos e a não cumulatividade
De forma geral, entende-se que o princípio da capacidade contributiva orienta o legislador a eleger como hipóteses de incidência dos impostos fatos que exteriorizem aptidão econômica, bem como a graduá-los de acordo com as condições econômicas objetivamente reveladas pelo contribuinte.
A primeira tarefa é simplificada pelo constituinte que, ao enumerar como hipóteses de incidência dos impostos fatos que, em alguma medida, traduzem parcela de riqueza, não conferiu margem para que o legislador infraconstitucional fugisse de tais balizas.
O princípio em comento é assim extraído, de forma implícita, das hipóteses de incidência indigitadas e, de forma expressa, do art. 145, parágrafo 1o, da Constituição Federal, cujo teor segue transcrito:
Art. 145, § 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
A respeito da compreensão da cláusula “sempre que possível”, fundamental transcrever as lições de Elizabeth Carrazza[21] que, após pontuar que não se trata de expressão que atribui caráter programático à norma constitucional, mas de alerta às condições de sua exequibilidade, alertou que “essa cláusula abarca três sentidos distintos, e todos coerentes com o ordenamento tributário pátrio: um sentido estrutural, um sentido finalístico e um sentido prático”.
A capacidade contributiva é atendida objetivamente, a partir dos fatos-signos presuntivos de riqueza delineados pelo constituinte e explicitados pelo legislador, sem que se exija a consideração de circunstâncias particularizadas do contribuinte, acerca da capacidade em concreto de contribuir. Não se exige, portanto, a capacidade subjetiva de contribuir, tal como defende Regina Helena Costa[22].
Portanto, a norma tem caráter vinculante, de modo que sempre que for constitucionalmente possível, todos os impostos devem atender ao princípio da capacidade contributiva. Em linha de princípio, o mecanismo mais utilizado para atingir tal finalidade é a progressividade, embora não seja o único[23].
É cediço que o sistema jurídico cria a sua própria realidade, podendo conferir noção própria a institutos que possuem definição distinta em outra área da ciência. Pode também simplesmente importar para o mundo jurídico a conceituação heterogênea. Exemplo do último fenômeno é o art. 166 do Código Tributário Nacional, que albergou a classificação econômica dos tributos em diretos e indiretos ao prever que:
“a restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la”.
Nesse prisma, para a Ciência das Finanças, os tributos cuja natureza faz repercutir o seu ônus financeiro em pessoa distinta do sujeito passivo legalmente responsável pela exação são denominados de indiretos, contrapondo-se à noção dos diretos, em que o sujeito passivo e o sujeito onerado se concentram na mesma figura.Apesar de sofrer críticas, fato é que a definição foi recepcionada pelo Código Tributário Nacional.
Como nos ditos tributos indiretos, supõe-se a repercussão do ônus financeiro a terceiro – o consumidor final – que não compõe a relação jurídica e que, verdadeiramente, sofrerá o impacto da tributação, a técnica da progressividade não se mostra consentânea a atingir o estado ideal objetivado pelo princípio da capacidade contributiva, haja vista que a maior incidência tributária não será sofrida pelo agente revelador da aptidão para contribuir (contribuinte), mas repassada ao consumidor final do produto ou mercadoria, impulsionando a regressividade.
O ICMS é um dos tributos que faz parte deste grupo.
Em consequência, para essas espécies tributárias, demanda-se a utilização de outros expedientes a fim de concretizar o comando do art. 145, parágrafo 1o, da Lei Maior. Atenta à necessidade, a próprio Constituição já tratou de fornecer os subsídios, ao determinar que o ICMS fosse não cumulativo e que possa[24] ser seletivo.
Pela seletividade, graduam-se as alíquotas do ICMS conforme a essencialidade da mercadoria objeto de circulação. Itens essenciais, como os da cesta básica (arroz, feijão, farinha, etc), devem sofrer menor tributação, ao passo que mercadorias cuja aquisição é supérflua são mais oneradas.
Já pela regra[25] da não-cumulatividade, assegura-se aos contribuintes a compensação do ICMS devido em cada operação anterior de circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas operações anteriores, seja pelo mesmo ou outro Estado.
A Constituição estabelece, no inciso II do § 2º do art. 155, cláusula de exceção à regra (que pode ceder, diante de previsão expressa de crédito pela legislação), ao afastar a obtenção de crédito para compensação nos casos de isenção ou não-incidência do ICMS na etapa anterior e anular o crédito de ICMS devido em operação anterior quando a isenção ou não-incidência abranger a operação posterior.
Em suma, com a não cumulatividade, assegura-se que o valor cobrado na operação final não seja superior ao conjunto exigido nas diversas operações da cadeia econômica, evitando-se que o Estado se locuplete indevidamente.Em suma, a não cumulatividade assegura que, ao final, o valor do ICMS cobrado seja o mesmo, independentemente do número de operações praticadas.
A teor do texto constitucional, não existe autorização para, além das hipóteses de isenção ou não incidência tributária, estornar-se o crédito de ICMS obtido em operações anteriores. Nem mesmo o art. 155, §2o, XII, “b” defere ao legislador complementar a possibilidade de criar novas hipóteses de exclusão do direito de crédito, pois apenas lhe remete a disciplina formal sobre o regime de compensação do imposto.
A valer, a lei pode apenas inovar na previsão de hipóteses em que restará assegurado o direito de crédito inobstante haja isenção ou não incidência na espécie, tal como ressalvado pelo inciso II do § 2º do art. 155. Nunca para excluir o creditamento em situações não previstas pelo constituinte.
Nessa linha argumentativa, surge aparente inconstitucionalidade do artigo 23 da Lei Complementar no 123/06, ao vedar a apropriação e transferência de créditos pelas optantes do Simples.
Entretanto, conclusão distinta – pela constitucionalidade do dispositivo – pode ser extraída a partir da finalidade a que se destina a norma da não cumulatividade, qual seja, a de assegurar que, ao fim da cadeia econômica, não haja sobreposiçõesde valores pagos a título de ICMS.
Partindo do fim encimado e da consideração de que a regra, constando da Constituição desde a sua origem, quando ainda não instituído o SIMPLES Nacional, foi criada para o regime normal de tributação – e não para regimes privilegiados, chega-se à conclusão pela constitucionalidade da norma contida no art. 23 da Lei Complementar no 123/06, que impede, sobretudo, situações de sobreinclusão não visadas pela regra da não cumulatividade.
Em rigor, caso assegurada a dedução do ICMS devido em operações anteriores dos valores a serem pagos dentro do Simples Nacional, dois inconvenientes jurídicos surgiriam.
Inicialmente, haveria abalo à divisão de competências tributárias e à autonomia política e financeira da União e dos Municípios, pois, como o recolhimento unificado não abrange apenas o ICMS, mas também o ISSQN devido aos Municípios e, predominantemente, tributos federais, permitir-se-ia a compensação débitos tributários municipal e federais com crédito tributário estadual (ICMS).
De todo modo, como a Lei Complementar no 123/06 discrimina, em seus Anexos, a parcela da arrecadação unificada que compete aos Estados (entre 32% e 34% do total, o equivalente a, no máximo 4,79% da receita do contribuinte), seria factível autorizar o estabelecimento da sistemática de compensação de forma exclusiva com a parte a ser revertida aos entes estaduais.
Mas aqui, outra contradição jurídica apareceria.
Ao assegurar a não cumulatividade e o consequente abatimento de crédito obtido em operações anteriores, a microempresa não teria ICMS a recolher dentro do Simples Nacional, haja vista que o valor a ser repassado ao Estado seria integralmente absorvido no encontro de contas com crédito obtido na operação interestadual anterior.
O exemplo abaixo ilustra a afirmação:
1ª Operação |
2ª Operação |
Fabricante de móveis, situado em São Paulo, vende as mercadorias para comerciante do Pará optante pelo Simples – Valor da operação: 600.000,00 |
Comerciante, optante pelo Simples, revende internamente os móveis para consumidor final. – Valor anual das operações: 900.000,00 |
Alíquota interestadual do ICMS (7%) |
Recolhimento anual do Simples (Alíquota de 10,70% sobre a receita, com desconto de R$ 22.500,00) = 73.800,00 |
ICMS devido: R$ 42.000,00 |
Parcela do ICMS (Faixa 4 = 33,50% do total) = 24.723,00 (com desconto do ICMS da operação anterior, não haveria nada a recolher) |
A participação das empresas no SIMPLES, portanto, resultaria, indiretamente, na inexistência de pagamento do ICMS sobre as suas operações. Não seria um simples tratamento diferenciado, mas desoneração total do tributo.
No particular, o abalo ao pacto federativo e à divisão de competências tributárias permaneceria, desta vez com vulneração da autonomia financeira dos Estados-membros, e não da União e Municípios.
Logo, a impossibilidade de compensação dos créditos de ICMS devidos por outros contribuintes, em operações anteriores, não aparenta excepcionar, sem amparo constitucional, a regra da não cumulatividade, tampouco, em consequência, violar o princípio da capacidade contributiva.
Ao contrário, visa impedir o abalo do pacto federal caso a regra da não cumulatividade alcançasse situações para as quais não foi idealizada.
O panorama retratado se modifica nos casos em que há a exigência da antecipação do ICMS por parte das microempresas e empresas de pequeno porte optantes pelo Simples. Nessa hipótese, também não pode haver autorização para a dedução do ICMS devido em operações anteriores, por outros contribuintes, mas deve ser assegurado o direito ao abatimento do crédito antecipadamente pago pelo próprio contribuinte, sobre as mesmas operações que compõem a receita do Simples.
Nesse caso, a dedução, em vez de vulnerar a não cumulatividade, vai ao seu encontro, evitando que o Estado faça a sobreposição da carga tributária sobre a operação econômica praticada pelas MEs e EPPs. Embora a parcela do recolhimento do Simples de competência revertida aos Estados (ICMS) reste zerada ao fim da compensação, não há, na hipótese vertente, violação ao pacto federativo.
Isso porque a garantia de abatimento do crédito do ICMS antecipadamente pago com a parcela do recolhimento unificado do Simples revertido ao Estado não esvaziará a competência tributária, uma vez que os Estados-membros já a terão exercido ao recolher o imposto antecipadamente.
Nessa ótima, caso mantida a exigência do regime de antecipação para as empresas optantes pelo regime unificado, a garantia de compensação, dentro do Simples, do crédito de ICMS antecipadamente é obrigatória, sob pena de negar-se juridicidade à não cumulatividade, regra que densifica, ao lado da seletividade, a capacidade contributiva nos tributos indiretos, possibilitando a indevida tributação em cascata sobre a mesma operação.
Portanto, o artigo 23 da LC nº 123/06 deve ser interpretado conforme a Constituição, de forma a não impedir a apropriação, dentro do Simples Nacional, de créditos oriundos da antecipação do ICMS, caso mantida esta exigência. O encontro de contas ocorrerá, exclusivamente, com a parcela da arrecadação unificada a ser revertida ao Estado, a título de ICMS, devendo ser criados meios para operacionalizar a medida.
3.4 A desconsideração do tratamento diferenciado das micro e pequenas empresas e a violação ao pacto federativo
O constituinte, em diversas passagens do texto constitucional, demonstrou particular preocupação com as microempresas e empresas de pequeno porte, seja na parte destinada especificamente à matéria tributária, seja no título que trata da Ordem Econômica e Financeira.
Com efeito, no art. 170, IX, elencou o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País à condição de princípio da ordem econômica.
Mais adiante, no art. 179, firmou que:
“a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei”.
Não se trata de meras diretrizes programáticas, mas de comando constitucional que deve ser atendido por todos os entes federativos e, uma vez observado, auxiliará, em última análise, no desenvolvimento nacional, objetivo fundamental constante do art. 3o, I, da Lei Maior.
Conquanto o tratamento diferenciado exigido não se limite ao âmbito tributário, foi neste que o constituinte trouxe regulamentação mais bem desenhada.
Neste sentido, a Constituição prevê, no art. 146, III, d, que competirá à lei complementar:
a definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificadosno caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.
Ao fazê-lo, compeliu o legislador complementar a, quando do estabelecimento dos regimes especiais ou simplificados, incluir o ICMS no tratamento diferenciado e favorecido.
Note-se que o dispositivo sequer menciona os impostos federais ou o ISSQN, de competência municipal, o que denota a intenção de que o ICMS, bem como as contribuições sociais gerais do art. 239 e sociais-previdenciárias do art. 195 compusessem, primordialmente, o rol de tributos objeto de tratamento mais benéfico.
Estando o ICMS alçado à condição de imposto que, obrigatoriamente, deve compor o regime especial das microempresas e empresas de pequeno porte, não há dúvidas de que, uma vez instituído o regime simplificado, a não concessão do tratamento mais benéfico quanto ao imposto estadual viola a norma constitucional.
Inobstante, é este o quadro desenhado com a cobrança antecipada do ICMS das empresas optantes pelo Simples Nacional. A combinação da chancela do art. 13, § 1o, XIII, “g” da Lei Complementar no 126/03 com a prática reiterada das leis estaduais em aplicar o regime de antecipação às MEs e EPPs do Simples tem ocasionado a ilusória impressão de que as empresas desfrutam de tratamento diferenciado quanto ao imposto estadual.
O exame mais aprofundado revela que, nos Estados que aplicam o regime de antecipação às MEs e EPPs optantes, o ICMS compõe apenas formal e fictamente o conjunto de benefícios do regime especial, violando-se as normas constitucionais (art. 146, III, d; 170, XI, e 179) que determinaram a instituição do tratamento tributário especial e privilegiado para tal tributo.
Adiante, pode-se concluir que a exigência do ICMS-antecipado combinado com o pagamento unificado no Simples Nacional torna letra morta o dispositivo constitucional. Considerando a parcela do ICMS na alíquota incidente sobre a receita da optante pelo SIMPLES e o ICMS pago no regime de antecipação – não compensável -, não há substancial diferenciação em cotejo com o ICMS que eventualmente seria devido caso as empresas não optassem pelo regime diferenciado.
Uma empresa que adquira mensalmente 200 mil reais de mercadorias e as revenda por 300.000,00, pagará, caso optante pelo Simples (considerando o ICMS antecipado), aproximadamente 10,72% de sua receita a título de ICMS; noutro giro, a mesma empresa, com o mesmo volume de operações e receita, pagará, caso submetida ao regime de tributação normal (com anterior antecipação compensável no ato da saída), 13,13% a título do tributo estadual.
Nem se diga que os benefícios devam ser analisados no contexto global, de forma que não haveria inconstitucionalidade ainda que o total revertido aos Estados, a título de ICMS, não destoe substancialmente do montante que seria devido fora do regime diferenciado, já que as MEs e EPPs obteriam redução significativa dos tributos federais e municipal.
O argumento desconsidera a vigência de um pacto federal no país, com a existência de um sistema rígido de competências, no qual União, Estados, Distrito Federal e Municípios não apenas têm assegurada a sua autonomia e a obtenção de recursos próprios, mas possuem, em razão da personalidade jurídica própria e ausência de hierarquia com outros entes, deveres autônomos, de que se espera o cumprimento dentro de um Estado pautado pelo federalismo cooperativo.
Ao admitir que um dos entes não confira o tratamento diferenciado às micro e pequenas empresas, violam-se não os dispositivos invocados, mas o próprio princípio federal, prestigiado pelo constituinte em seu artigo inaugural.
Os Estados não podem invocar o pacto federativo para os bônus e ignorá-lo quanto aos ônus que a Constituição exige dos entes políticos. Em suma, a União e os Municípios cumprem a sua parte, assegurando o regime tributário diferenciado quanto à parcela de seus tributos, porém os entes políticos estaduais, valendo-se da inconstitucionalidade art. 13, § 1o, XIII, “g” da Lei Complementar no 126/03, que apartou o regime de antecipação do ICMS do regime unificado, continuam a aplicá-lo às empresas optantes pelo Simples Nacional.
A exigência faz com que inexista, em substância, tratamento especial do ICMS, solenemente ignorando a exigência constitucional prevista pelo art. 146, III, d e as normas insculpidas nos arts. 170, XI, e 179 da Constituição Federal.
3.5 A proibição de diferenciação tributária de mercadorias adquiridas de outros Estados e o princípio da igualdade tributária
Nos termos do art. 152 da Constituição Federal, é vedado aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer diferença tributária entre bens e serviços, de qualquer natureza, em razão de sua procedência ou destino.
A previsão é salutar dentro de um Estado que adota o federalismo, no qual o poder, dividido entre o ente central e periféricos, assegura autonomia política – legislativa – aos Estados, Distrito Federal e Municípios.
Nesse diapasão, a norma constitucional, no intuito de impedir guerras fiscais entre os entes políticos, veda expressamente que os entes com competência tributária instituam tributação privilegiada ou prejudicial de bens e serviços em função de sua origem ou destino.
Logo, assim como os Municípios estão impedidos de fixar alíquota majorada de ISSQN para serviços iniciados em outro Estado, os Estados-membros também encontram restrições para tributar a maior operações com mercadorias obtidas de outros entes federativos e, posteriormente, internalizadas.
Com isso, os adquirentes são livres – pelo menos sob a ótica da tributação – para escolher de onde comprarão as suas mercadorias, no âmbito interno ou fora do Estado.
A instituição do regime de antecipação do ICMS para as microempresas e empresas de pequeno porte optantes pelo SIMPLES Nacional incorre, sem maior desafio interpretativo, na vedação constitucional.
Primeiramente, em função de o regime de antecipação tradicionalmente vigorar, de forma exclusiva, para os casos em que a mercadoria é adquirida em operações interestaduais. Neste sentido, costuma a ser a previsão dos Estados em que houve o estabelecimento da sistemática.
Com efeito, não se tem notícias da instituição da antecipação do ICMS para futuras operações com mercadorias produzidas no espaço interno do Estado tributante. A exação costuma destinar-se apenas às operações com mercadorias adquiridas fora da área geográfica do ente.
Poder-se-ia objetar que inexiste distinção de tratamento vedada, visto que o ICMS exigido antecipadamente não configura nova modalidade tributária ou majoração do imposto estadual. Desse modo, o tratamento para as mercadorias adquiridas fora ou dentro do Estado permaneceria o mesmo, com a diferença de que, para as importadas, o ICMS seria cobrado de forma antecipada.
Em instante inicial, a afirmação tende a seduzir. Analisado de forma isolada, o regime de antecipação, per si, não traduz majoração da tributação. O STJ, como visto, inclusive já chancelou o regime quando convocado a examiná-lo.
Com efeito, a inconstitucionalidade deflui da aplicação do regime de antecipação a determinados sujeitos, no partiular, às MEs e EPPs optantes pelo Simples Nacional. Em razão disso mesmo, a técnica de declaração de inconstitucionalidade da legislação interna deve ser adaptada, utilizando-se, em vez da declaração de inconstitucionalidade com redução do texto, a declaração de nulidade sem redução do texto[26], para que sejam excluídas do âmbito de aplicação da norma as empresas optantes do Simples Nacional, permanecendo válido o regime para os demais contribuintes.
No ponto, exsurge cristalina a diferenciação tributária em operações com mercadorias de outros Estados quando o regime de antecipação é obrigatoriamente aplicado para as microempresas e empresas de pequeno porte optantes pelo SIMPLES Nacional. O quadro fático que se põe é que empresas optantes e que comercializem mercadorias obtidas de outros Estados pagarão, além do recolhimento mensal unificado, calculado sobre a sua receita, parte do ICMS relativo ao regime normal, que fora cobrado antecipadamente pelo Estado e que não gerará crédito, por força da vedação do art. 23 da Lei Complementar no 123/06.
Lado outro, as empresas optantes pelo regime benéfico e que se destinem à comercialização, exclusivamente, de mercadorias fabricadas dentro do próprio Estado recolherão os tributos de forma unificada, dentro do SIMPLES, mas nada pagarão a título do ICMS, pois inexiste regime de antecipação para tais mercadorias. Mesmo que as empresas possuam o mesmo percentual de receita, a optante pelo Simples Nacional será mais onerada, simplesmente por adquirir as suas mercadorias de fora do Estado em que sediada.
Há cristalina desconsideração do art. 152 da Constituição. Outrossim, emerge obliteração do princípio da igualdade, haja vista que duas empresas que se encontram em idêntica situação jurídica – microempresas ou empresas de pequeno porte optantes pelo regime Simples Nacional – receberão tratamento diferenciado, com base em um critério de diferenciação vedado pelo ordenamento.
Faz-se oportuno invocar os critérios extraídos das lições de Celso Antônio Bandeira de Mello, para atestar, cientificamente, o desrespeito noticiado. Nesse passo, a averiguação da legitimidade da diferenciação depende do exame do fator ou critério de desigualação, do tratamento discriminador e da correlação lógica entre ambas.
Não basta, portanto, que o fator de discriminação seja legítimo (não vedado), exige-se que seja também compatível com o tratamento discriminador e com os fins traçados pelo legislador ao instituir a diferenciação.
Ocorre que o exame do primeiro pilar já é suficiente para tornar flagrante a ilegitimidade da distinção. Isso porque o critério de diferenciação utilizado é expressamente vedado pelo ordenamento. A Constituição coibiu a utilização da origem da mercadoria como fator de discriminação tributária, assim como tornou defesos outros critérios em dispositivos diversos (arts. 6º, XXX e XXXI, e 150, II).
Nem o argumento da praticidade pode ser invocado, diante da maior facilidade de fiscalização – e consequente exigência do tributo – no ato de entrada das mercadorias oriundas de outro Estado, visto que a não é norma absoluta no regime jurídico-tributário e encontra limites, como qualquer outra espécie normativa, na Constituição Federal.
Dessarte, a adoção da praticidade não pode operar-se ao arrepio da regra contida no art. 152 da Lei Maior, norma constitucional originária, com presunção absoluta de constitucionalidade, e que, portanto, não pode objetada.
Conclusões
A Lei Complementar no 123, de 2006, cumprindo o desiderato do constituinte manifestado em seu art. 146, III, d e parágrafo único, instituiu tratamento diferenciado e favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, por meio qual diversos tributos inseridos na competência tributária dos entes federativos são pagos por meio de um recolhimento unificado.
Conquanto o ICMS componha a lista exaustiva de tributos abrangidos pelo Simples Nacional, o recolhimento do imposto estadual é, em determinadas situações, efetuado de forma autônoma, fora do regime unificado.
Neste sentido, o art. 13, § 1o, XIII, g, da LC no 123/06 legitima, concomitantemente ao recolhimento do Simples, a instituição e cobrança do regime de antecipação do ICMS, por parte dos Estados-membros, em face de empresas optantes pelo regime diferenciado, sem assegurar-lhe direito de crédito, por força da vedação genérica do art. 23 do mesmo diploma.
Com o permissivo legislativo, os Estados-membros, de forma proliferada, passaram a prever, em sua legislação interna, a cobrança antecipada, exigindo das MEs e EPPs optantes o imposto estadual a incidir sobre a futura operação de circulação de mercadorias.
A substituição progressiva e antecipação em sentido estrito, embora calcadas em presunções legais da ocorrência do fato gerador e demandem o pagamento antecipado do tributo, são inconfundíveis. Na antecipação, o contribuinte, e, pelo menos em tese, somente ele, deverá pagar o tributo por si devido no futuro, em momento anterior ao próprio surgimento da obrigação. Na substituição tributária, um terceiro, na condição de responsável tributário, é, em virtude de vinculação com o fato gerador e de previsão em lei, obrigado ao pagamento do tributo, que já nasce na sua pessoa, excluindo-se o contribuinte do dever de pagar o tributo.
A antecipação também não se confunde com o diferencial de alíquotas (DIFAL), previsto no art. 155, § 2º, VIII, da Constituição Federal. Na antecipação, o sujeito paga o ICMS devido, na condição de contribuinte, em relação à sua futura operação interna; no DIFAL, o sujeito paga o ICMS devido, na condição de responsável tributário, em relação à anterior operação interestadual de remessa das mercadorias.
A antecipação do ICMS para empresas optantes pelo Simples Nacional é inconstitucional, por violar diversas normas constitucionais.
Primeiramente, porque, com a manutenção do regime de antecipação, sem encerramento da tributação, há dupla tributação vedada (bis in idem) sobre a mesma operação de circulação de mercadorias: primeiramente, no regime antecipado; posteriormente, no regime unificado do Simples Nacional.
O bis in idem esbarra tanto na vedação ao confisco disposta no art. 150, IV, da Lei Maior, como na divisão federativa de competências, uma vez que a possibilidade de dupla tributação sobre o mesmo fato foi atribuída com exclusividade, e nos casos extremos do art. 154, II, à União.
Outrossim, ao impedir o creditamento, dentro do Simples, do valor de ICMS pago antecipadamente, viola-se a não cumulatividade, regra que densifica, ao lado da seletividade, a capacidade contributiva (art. 145, §1o) nos tributos indiretos. Em consequência, possibilita-se a indevida tributação em cascata sobre a mesma operação.
Em função de o ICMS ter sido alçado pelo art. 146, III, d, da Lei Maior à condição de imposto que, obrigatoriamente, deve compor o regime especial das microempresas e empresas de pequeno porte, uma vez instituído o regime simplificado, a não concessão de tratamento mais benéfico quanto ao imposto estadual viola a norma constitucional.
Nesse prisma, a exigência do ICMS-antecipado combinado com o pagamento unificado no Simples Nacional tornam letra morta o dispositivo constitucional (art. 146, III, d), pois, considerando a parcela do ICMS na alíquota incidente sobre a receita da optante pelo SIMPLES e o ICMS pago no regime de antecipação – não compensável -, não há substancial diferenciação em cotejo com o ICMS que eventualmente seria devido caso as empresas não optassem pelo regime diferenciado.
Viola-se também o princípio federal (art. 1o), pois, enquanto a União e Municípios aplicam tratamento diferenciado quanto aos tributos de sua competência, os Estados se furtam à exigência, mediante o artifício da antecipação de imposto.
Por fim, da forma como feita (exclusivamente para adquirentes de mercadorias adquiridas de outros Estados), a antecipação vulnera o princípio da igualdade e nega vigência ao disposto no art. 152 da Constituição Federal, haja vista que duas empresas que se encontrem em idêntica situação jurídica – microempresas ou empresas de pequeno porte optantes pelo regime Simples Nacional – receberão tratamento diferenciado, com base em um critério de diferenciação vedado pelo ordenamento (diferenciação tributária em razão da origem das mercadorias).
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[1] Mestrando em Direito Constitucional e Processual Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pós-graduado em Direito Constitucional. Procurador da Fazenda Nacional.
[2] CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 39.
[3] TORRES, Ricardo Lobo. Substituição tributária e cobrança antecipada do ICMS. In: ICMS –Problemas Jurídicos. São Paulo: Dialética, 1996, p. 192.
[4] CARVALHO, Paulo de Barros. A prova no procedimento administrativo tributário. Revista Dialética de Direito Tributário n. 34, p. 109.
[5] MELO, José Eduardo Soares de. ICMS: Teoria e prática. 6ª ed, São Paulo: Dialética, 2003, p. 154-156.
[6] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 297.
[7] GRECO, Marco Aurélio. Dinâmica da Tributação: uma visão funcional. 2ª edição atualizada e ampliada. Editora forense, 2008, p. 150.
[8] Para os fins deste trabalho, considera-se existente uma antecipação em sentido lato, como gênero, a abarcar as espécies substituição tributária progressiva e a antecipação em sentido estrito. Na substituição progressiva, há dois traços em comum com a antecipação tributária, que são a cobrança da exação antes da ocorrência do fato gerador e a presunção de que este ocorrerá. Todavia, as particularidades de cada uma quanto à natureza do sujeito passivo envolvido (direto e indireto) e quanto ao veículo introdutor (lei complementar ou ordinária) indicam a natureza jurídica diversa.
[9] Não pode ser descartado o eventual surgimento de responsabilidade tributária por transferência – quando a obrigação nasce na pessoa do contribuinte, mas é deslocada ou atribuída em conjunto, a terceiro, em virtude de fato jurídico posterior ao nascimento da relação jurídico-tributária.
[10] RMS 22.968/SE, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 10/08/2010, DJe 03/09/2010.
[11] RE 593849, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 19/10/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-065 DIVULG 30-03-2017 PUBLIC 31-03-2017 REPUBLICAÇÃO: DJe-068 DIVULG 04-04-2017 PUBLIC 05-04-2017
[12] A Constituição até permite, no art. 155, § 2º, V, a definição da alíquota mínima do ICMS, desde que por meio de resolução de competência do Senado Federal, a partir da iniciativa de um terço e aprovação da maioria absoluta de seus membros. Contudo, jamais autorizou a fixação da alíquota máxima ou a definição da alíquota específica do ICMS para determinado regime de cobrança.
[13] Conforme lições de Paulo de Barros Carvalho, o exame da base de cálculo, em conjunto com o da hipótese de incidência tributária, auxiliam na identificação da natureza jurídica do tributo. A lição é preciosa para descortinar, igualmente, os diferentes regimes utilizados para cada um dos tributos em espécie. No particular, o exame da base de cálculo permite identificar que não se trata de “antecipação do ICMS”, mas de cobrança do diferencial do imposto relativo à operação interestadual anterior já ocorrida (DIFAL).
[14]Em verdade, tomando-se a antecipação prevista no Amazonas como DIFAL, identifica-se dupla inconstitucionalidade, pois, além de não ser permitida a cobrança do diferencial de adquirentes que não se revestem da condição de consumidor final, sequer seria possível a incidência de ICMS na operação interestadual, por força da equiparação a exportações – e consequente extensão do tratamento benéfico previsto pela imunidade do art. 155, §2o, X, “a”, da Lei Maior – efetivada pelo art. 4o do Decreto-Lei no 288/67, constitucionalizado pelo art. 40 do ADCT. O tema foge dos limites propostos ao presente trabalho.
[15] Art. 146. Cabe à lei complementar:
(…)
III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
[16] Art. 966, Código Civil. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.
[17] Ataliba, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Editora RT, 1968, p. 150.
[18] Schoueri, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005, p. 3.
[19] Há regime de antecipação sem encerramento de tributação nos casos em que os Estados, por ocasião da entrada de mercadorias de outros entes federativos, antecipam a cobrança do ICMS, aplicando alíquota menor à que seria devida, para, quando da real ocorrência da circulação de mercadorias, cobrar a diferença.
[20]Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(..)
IV – utilizar tributo com efeito de confisco
[21]CARRAZZA, Elizabeth Nazar. IPTU e Progressividade – Igualdade e Capacidade Contributiva. São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 89.
[22] COSTA, Regina Helena. Princípio da capacidade contributiva. 4a edição – São Paulo: Malheiros, 2012, p. 109.
[23] Para Carlos Augusto Daniel Neto, progressividade não significa apenas a majoração nominal de alíquotas conforme haja o aumento da base de cálculo. Em verdade, a progressividade impõe a o aumento da alíquota real ou efetiva do tributo, conforme a capacidade econômica. Segundo o autor, esse aumento ou diminuição da alíquota real pode operar-se por diversas técnicas, a exemplo da redução da base de cálculo, a concessão de isenções até certo limite, e não apenas pela calibração da alíquota nominal do imposto.
[24] Roque Carraza enxerga um poder-dever na adoção da seletividade, inexistindo arbítrio ou conveniência do legislador estadual em adotar a técnica (CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 30a edição – São Paulo: Malheiros, 2015).
[25] A definição da natureza jurídica da não-cumulatividade, se princípio ou regra, tem sido intensamente debatida. Para fins desse trabalho, considera-se a não-cumulatividade como espécie normativa regra.
[26] Essa técnica deve ser utilizada para os casos em que a legislação de Estados contém regra genérica do regime de antecipação, aplicando-a também às MEs e EPPs optantes do Simples. Se existir regra específica de aplicação do regime de antecipação às micro e pequenas empresas do regime unificado, o Tribunal de Justiça, em caso de controle concentrado estadual, e o STF, no âmbito federal, devem utilizar a técnica padrão, com declaração total de inconstitucionalidade do dispositivo.