Direito Penal

Aborto de fetos anencéfalos

ABORTO DE FETOS ANENCÉFALOS[1]

ABORTION OF FETAL ANENCEPHALIC

Dayanne Ferreira Santos[2]

Mauro Magno Quadros Ruas[3]

RESUMO –  O artigo aborda os aspectos do aborto de feto anencéfalo, que foi descriminalizado pela Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, do Supremo Tribunal Federal, sendo considerada pelos ministros do STF, como a decisão mais importante da corte. A anencefalia gestacional ocorre quando é diagnosticado a malformação, total ou parcial do cérebro, sendo um quadro irreversível. Todavia, o aborto é considerado crime pela lei brasileira, visando proteger o direito fundamental à vida, sendo necessário, antes da ADPF 54, autorização judicial para interrupção da gravidez de feto anencéfalo. Após a ADPF 54, para que seja feito o aborto, basta a constatação da anencefalia do feto através de laudo de dois médicos, baseado em exames atuais e seguros, além da autorização da gestante. A justificativa da descriminalização, é que se trata de uma causa de excludente de ilicitude, já que a gestação de feto anencéfalo traz riscos comprovados para a saúde da gestante e baixa perspectiva de vida do feto.

Palavras-chave:Aborto. Anencefalia. Descriminalização. Direito à vida. Liberdade da mulher. Direito à interrupção gestacional.

ABSTRACT – The article discusses aspects of abortion anencephalic fetus, which was decriminalized by the accusation of breach of fundamental precept (ADPF) 54, the Supreme Court, being considered by the ministers of the Supreme Court, as the most important decision of the court. Gestational Anencephaly occurs when it is diagnosed the malformation of all or part of the brain, being an irreversible frame. However, abortion is considered a crime under Brazilian law, to protect the fundamental right to life, if necessary, before the ADPF 54, judicial authorization for termination of anencephalic fetus pregnancy. After ADPF 54, to have done abortion, just the realization of anencephaly of the fetus through two medical report, based on current tests and insurance, in addition to the pregnant woman’s authorization. The justification of decriminalization is that it is a cause of legal excuse, since the anencephalic fetus pregnancy brings demonstrable risk to the health of pregnant women and low prospect of life of the fetus.

Keywords: Abortion. Anencephaly. Decriminalization. Right to life. Freedom of women. Right to pregnancy interruption.

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal do Brasil de 1988 assegura em seu artigo 5º que: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade à vida”.

Nota-se que apesar de todos os direitos serem invioláveis, o legislador conferiu especial atenção ao direito à vida, tornando-o um direito fundamental. A Constituição é a carta magna do país, portanto está acima de qualquer lei. O artigo 5º trata-se de cláusula pétrea, não podendo ser retirado da Constituição, demonstrando assim a preocupação do Estado em garantir este Direito.

 Diante de grande divergência na doutrina sobre o momento em que a vida se inicia, (JESUS, 2008, p. 01), informa que:

O problema básico é saber se um embrião é ou não um ser vivo. Se houvesse consenso, da unanimidade moral dos cientistas, sobre a matéria, pela afirmativa ou pela negativa, a decisão seria clara e imperiosa. Se é certo que há vida no embrião, ela não pode ser violada sem ferir o Direito Natural e sem lesar nossa Carta Magna. Se está correto que não há, nada impede que utilizem os embriões, tanto mais que serão usados para preservar outras vidas humanas.

Sobre a divergência, certo é que há várias tentativas para que se chegue a um consenso, porém, até o momento a doutrina se encontra dividida.

Por se tratar de um direito fundamental, a interrupção à vida se tornou um tema polêmico, já que a conduta do aborto está tipificada em lei. Conforme previsto no ordenamento jurídico brasileiro é conduta tipificada pelos artigos 124, 126, e 128, incisos I e II, do Código Penal – Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

Para Capez, (2006, p. 109), o aborto é:

Aborto a interrupção da gravidez, com a consequente destruição do produto da concepção, consiste na eliminação da vida intrauterina. Não faz parte do conceito de aborto a posterior expulsão do feto, pois pode ocorrer que o embrião seja dissolvido e depois reabsorvido pelo organismo materno em virtude de um processo de autólise: ou então pode suceder que ele sofra processo de mumificação ou maceração, de modo que continue no útero materno. A lei não faz distinção entre o ovulo fecundado (três primeiras semanas de gestação), embrião (três primeiros meses) ou feto (a partir de três meses), pois em qualquer fase da gravidez estará configurando o delito de aborto, quer dizer, entre a concepção e o inicio do parto (conceitos estes já estudados no crime de infanticídio), pois após o inicio do parto poderemos estar diante do delito do infanticídio ou homicídio. Problema interessante é o do embrião conservado fora do útero materno, em laboratório.

O aborto se tornou uma prática presente desde o inicio da humanidade, já que, desde os primórdios, as mulheres já cometiam esse ato, para se livrar de filho indesejado. Apesar de ser crime no Brasil, o aborto é interpretado de maneiras diferentes, pois em alguns países não é considerado ato criminoso, sendo que a decisão cabe apenas à família.

Apesar de ser uma conduta tipificada pelo Código Penal Brasileiro, a lei, autoriza o aborto quando há riscos para a vida da gestante, gestação advinda de estupro e gestação de fetos anencéfalos.

O Supremo Tribunal Federal descriminalizou a conduta do aborto, em se tratando de fetos anencéfalos, com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54. Há muitas as discussões quanto ao tema, devido a interferência no direito à vida, direito fundamental previsto na Constituição Federal de 1988.

Antes da aprovação da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, ao ser constatada a gestação de feto anencéfalo, era necessário que a gestante, acionasse a justiça para possível autorização do aborto, visto que, a gestação de feto anencéfalo representa risco para a gestante, aumentando cada vez mais, na medida em que a gestação é levada adiante.

Além do mais, discute-se ainda a vida extra-uterina do feto, que tem a morte considerada certa, havendo controvérsias, já que existem bebês anencéfalos que não morrem após o parto.

Atualmente, o processo para realização do aborto de feto anencéfalo foi simplificado, já que basta apenas o laudo de dois médicos constatando a anencefalia e exames específicos também exigidos por lei.

Para ser descriminalizada esta conduta, o STF justificou que há riscos comprovados para a vida da gestante e o aborto seria a única medida cabível para acabar com o risco.

Acerca desta discussão, vários são os posicionamentos contrários e favoráveis.

Em defesa do aborto de feto anencéfalo, (2011, p.128 apud RODRIGUES, 2011, p. 39), diz que:

Fundamenta-se o estado de necessidade porque a conduta do médico visa afastar de perigo atual – ou mesmo iminente – bem jurídico alheio (vida da gestante), cujo sacrifício, nas circunstancias, não é razoável exigir-se. O mal causado (morte do produto da concepção é menor do que aquele que se pretende evitar (morte da mãe).

Observa-se que Prado defende que não há razoabilidade para prosseguir com a gestação, já que entende que a morte do feto é considerado um mal menor do que a possível morte da gestante.

Nesse mesmo sentido, Jesus, (1999, p. 481 apud QUEIROZ, 2006, p. 05):

[…] não há culpabilidade todas as vezes que, tendo em vista as circunstâncias do caso concreto, não se possa exigir do sujeito uma conduta diversa daquela por ele cometida. Assim, a exigibilidade de comportamento diverso constitui um dos elementos da culpabilidade, enquanto a não-exigibilidade constitui a razão de algumas causas de exclusão da culpabilidade.

No que tange aos posicionamentos contrários, Martins (2008, p. 14), defende que apesar de ainda estar no ventre materno, o feto tem direito à vida, não cabendo a gestante decidir sobre a interrupção da gravidez, ressaltando ainda que há uma tentativa por parte da mídia, de ocultação da realidade sobre o tema, já que esta cria outros termos para lidar com o assunto:

O delito de matar um inocente no ventre materno torna-se “direito da mulher sobre o próprio corpo”, “direito reprodutivo”, “direito de interromper uma gravidez indesejada”, “direito a antecipar terapeuticamente o parto” e tantas outras expressões que pululam nos artigos de jornais e no mundo televisivo, tentando encobrir a realidade do aborto, com vocábulos que escondem a verdade de que o aborto é um crime covarde de suprimir a vida do ser humano que não tem nenhuma chance de defesa.

Discute-se ainda o fato de que o aborto trás sofrimento ao feto, tanto que em alguns países como os Estados Unidos, para realizar o aborto, é aplicada anestesia no feto, para que a dor seja amenizada. Isto representa ofensa às leis brasileiras e à Constituição Federal vigente, que veda o tratamento desumano.

É rebatido ainda por Martins, (2008, p. 22), o argumento de que o aborto é necessário, quando não há outro meio para salvar a vida da gestante, já que, a medicina evoluiu juntamente com a sociedade:

A lei penal brasileira não pune o aborto quando praticado “se não há outro meio de salvar a vida da gestante”. A expressão “risco de vida” é muito mentos restritiva. Muitos abortos podem ser feitos em nome do “risco de vida”. No entanto, na realidade, a situação em que “não há outro meio de salvar a vida da gestante” já não existe mais. A medicina evoluiu a tal ponto que consegue salvar as duas vidas. […]. O que acontece é que muitos médicos favoráveis ao aborto encontram em qualquer patologia dentro de uma gravidez, um motivo 58 para dizer que a mulher corre “risco de vida” e, portanto, está autorizada a abortar.

Para os posicionamentos contrários ao aborto, independente do motivo, excetuando aqueles já previstos em lei, a autorização do aborto, ainda que de feto anencéfalo, descriminalizado recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, o aborto representa desrespeito às leis brasileiras, que defende o direito à vida acima de tudo.

O ABORTO E SEU CONTEXTO HISTÓRICO

O aborto representa a interrupção, voluntária ou não da gestação, com a consequente expulsão do feto.

No Brasil, o aborto é considerado crime desde o Código do Império. Como o código era de 1830, os legisladores decidiram por incriminar somente o aborto provocado por terceiro, ou seja, o auto aborto, que é aquele provocado pela genitora, não punido.

Ao decorrer dos anos, a partir de 1890, o Código Penal Brasileiro incriminou também o auto aborto. Tem-se uma evolução jurídica, que se atentou para a importância do direito à vida.

Juntamente com o Código Penal Brasileiro de 1940, vieram alterações acerca do aborto. Percebe-se uma atenção maior do legislador, que além de incriminar novas modalidades do crime, elencou exceções necessárias, que descriminalizam a conduta.

Para Diniz, (2008, p.35):

O aborto criminoso constitui um delito contra a vida, consistente na intencional interrupção da gestação, proibida legalmente, pouco importando o período da evolução fetal em que se efetiva e a pessoa que o pratica, desde que haja morte do produto da concepção, seguida ou não da sua expulsão do ventre materno.

De acordo com o Código Civil Brasileiro de 2002, em seu artigo 2º “a personalidade jurídica civil da pessoa começa com o nascimento com a vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.

Para Silvio, (2007, p. 36), nascituro pode ser entendido como:

o ser já concebido, mas que ainda se encontra no ventre materno. A lei não lhe concede personalidade, a qual só lhe será conferida se nascer com á vida. Mas, como provavelmente nascera com vida, o ordenamento jurídico desde logo seus interesses futuros, tomando medidas para salvaguardar os direitos que, com muita probabilidade, em breve serão seus.

Já Bitencourtt (2008, p.134) defende que:

O produto da concepção – feto ou embrião – não é pessoa, embora tampouco seja mera esperança de vida ou simples parte do organismo materno, como alguns doutrinadores sustentam, pois tem vida própria e recebe tratamento autônomo da ordem jurídica. Quando o aborto é provocado por terceiro, o tipo penal protege também a incolumidade da gestante.

Nota-se que o jurista informa que apesar da gestação o feto não pode ser considerado pessoa, pois está em formação, o que gera apenas expectativa de vida, mas sua convicção.

Em defesa desta tese, Sarmento e Piovesan (2007, p.30) discorrem que:

A tese que aqui se defenderá é a de que a vida humana intra-uterina também é protegida pela Constituição, mas com intensidade substancialmente menor do que a vida de alguém já nascido. Sustentar-se- á, por outro lado, que a proteção conferida à vida do nascituro não é uniforme durante toda a gestação. Pelo contrário, esta tutela vai aumentando progressivamente na medida em que o embrião se desenvolve, tornando-se um feto e depois adquirindo viabilidade extrauterina. O tempo de gestação é, portanto, um fator de extrema relevância na mensuração do nível de proteção constitucional atribuído à vida pré-natal.

Apesar dos juristas defenderem que o quesito tempo da gestação, é quesito obrigatório para proteção de direitos, depreende-se que o nascituro tem seus direitos defesos pela lei desde a concepção, não cabendo à mãe o direito de optar pelo prosseguimento da gestação, já que, a própria lei prevê, especificamente, casos em que poderá ocorrer o aborto.

Desde os primórdios, a prática do aborto está presente na humanidade. Em algumas épocas foi tratada como uma prática comum, em que não havia punição. Com a evolução dos tempos, e a preocupação dos cristãos, o aborto começou a ser considerado uma prática arbitrária e desumana. Os cristãos defendiam que o feto, apesar de estar no útero da gestante, não é parte de seu corpo, não cabendo a esta, decidir, arbitrariamente sobre o seu nascimento, considerando o aborto homicídio. No Brasil é considerado crime, salvo as exceções previstas em lei.

De acordo com o Código Penal Brasileiro, o aborto não é considerado crime quando a gestação é advinda de estupro, quando representa risco para a vida da gestante e quando o feto é anencéfalo. A gravidez portanto é obrigatória, não importando se a gestante possui ou não a vontade de prosseguir com a gestação. Apesar de haverem danos físicos e psicológicos para a mulher que não deseja aquela gestação, não existe amparo legal para interrupção nesses casos.

Neste sentido, Mirabete (2005, p. 223) discorre que:

Tem-se entendido que, no caso, há, também, estado de necessidade ou causa de não-exigibilidade de outra conduta. Justifica-se a norma permissiva porque a mulher não deve ficar obrigada a cuidar de um filho resultante de coito violento, não desejado. Além disso, freqüentemente o autor do estupro é uma pessoa degenerada, anormal, podendo ocorrer problemas ligados à hereditariedade.

Quanto ao fato que nenhum direito é absoluto, Nucci, (2008, pg. 619), diz: “Nenhum direito é absoluto, nem mesmo o direito à vida. Por isso, é perfeitamente admissível o aborto em circunstâncias excepcionais, para preservar a vida digna da mãe”.

A respeito da relatividade dos direitos, inclusive do direito à vida, o Supremo Tribunal Federal se pronunciou, defendendo que não há caráter absoluto em se tratando de direitos ou garantias:

“Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela Constituição Federal”

Percebe-se que apesar do tratamento especial que às leis brasileiras conferem ao direito a vida, conclui-se que ele não é absoluto, já que, não se justifica o prosseguimento da gestação, em detrimento de risco comprovado para a vida da gestante.

A partir da proibição do aborto, tem-se que a gestação é obrigatória, tendo o crime de aborto, que possui diversas modalidades. Dentre elas, destaca-se o auto aborto, que aquele provocado pela própria gestante. Na tentativa de se livrar da gestação, a mulher se utiliza de meios para interromper e expulsar o feto do útero. Esta ação é tipificada pelo Código Penal Brasileiro, podendo, caso comprovado, a gestante responder pelo crime da prática de aborto.

Vale ressaltar ainda outras modalidades de aborto, como o consentido, que é aquele que a gestante apenas permite que seja feito o aborto, mas o ato é praticado por terceiro. Já a terceira forma, é considerada pela lei penal, como a mais grave, que é o aborto provocado por terceiro sem consentimento da gestante. A quarta modalidade é aquela em que o aborto é provocado por terceiro, porém, com consentimento da gestante.

Apesar de haver no ordenamento as causas excludente de ilicitude relacionadas ao aborto, quando não se tratar de aborto necessário, que é aquele em que, caso não seja praticado, há risco de vida para a gestante, é necessário o consentimento da mulher e quando se tratar de incapaz, de seu representante legal.

Diante da desigualdade social do país, discute-se ainda os fatos em que levam mulheres de todas as faixas etárias, correrem risco de vida ao praticar este crime.

O aborto que lidera todas as estatísticas é aquele em que a gestação é advinda de estupro. Justifica-se a ação pelo fato que, prosseguir com a gravidez seria prolongar o sofrimento da mulher, que lembraria a todo momento do ato de violência em que foi submetida. Nesse caso, apesar de sofrer fisicamente e psicologicamente, não praticando conduta típica.

Com falta de informação, muitas genitoras praticam o crime de aborto, por diversos motivos. Há vários casos de interrupção que são justificadas devido ao fato da gestante possuir HIV ou outras doenças que são transmitidas pelo sangue, malformações do feto, razões econômicas, idade avançada, etc. Verifica-se que se trata de um problema social em que o Estado deve intervir, para que não aumente os casos de aborto por motivos considerados banais.

A questão social deve ser levada em consideração, porque o aborto deve ser analisado sobre a ideia que não se trata de uma simples decisão, é um crime grave, que merece ter atenção especial por parte do Estado. Apesar da evolução do país, em questão de tecnologia da informação, ainda falta conhecimento para a maior parte da população que não sabe dimensionar a questão do direito à vida, que é infringido com a prática do aborto.

Conforme o exposto, nota-se que o tema é polêmico, os argumentos contrários e favoráveis ao aborto dos fetos anencéfalos são bastante consistentes, provocando ainda divergência entre importantes juristas brasileiros e principalmente na sociedade.

O FETO ANENCÉFALO E O DIREITO À VIDA

Ao analisar a Constituição Federal vigente, verifica-se que o direito à vida é indisponível, não podendo, nem mesmo a mãe, dispor desse direito. De acordo com o Art. 5º, caput, do diploma:

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Paísa inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…)”. (grifo nosso)

O feto, apesar de ser carregado no ventre da mãe, é um ser independente. Partindo desse pressuposto, concluímos que a tese que a gestante pode decidir sobre o prosseguimento ou interrupção da gestação, deve ser analisada, afim de que se possa proteger e resguardar os direitos do feto.

Em 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), propôs ação perante o judiciário, buscando a descriminalização do aborto de fetos anencéfalos, já que, conforme defende a CNTS, o feto anencéfalo não possui chance de vida após o nascimento e este é um quadro irreversível, não havendo outra solução senão a interrupção da gestação.

De acordo com Barroso (2009, p. 21, apud PAIM, 2015, p. 03):

Fetos anencefálicos são aqueles que não possuem os hemisférios cerebrais, e consequentemente, sem nenhuma viabilidade de vida extra-uterina. Esse quadro é irreversível, sendo normalmente detectado nos três primeiros meses de gravidez.

Ainda neste sentido, Sarmento e Piovesan (2007, p.114) conceitua-se a anencefalia como:

Anencefalia é um defeito no tubo neural (uma desordem envolvendo um desenvolvimento incompleto do cérebro, medula, e/ou suas coberturas protetivas). O tubo neural é uma estreita camada protetora que se forma e fecha entre a 3ª e 4ª semanas de gravidez para formar o cérebro e a medula do embrião. A anencefalia ocorre quando a parte de trás da cabeça (onde se localiza o tubo neural) falha ao se formar, resultando na ausência da maior porção do cérebro, crânio e couro cabeludo. Fetos com esta disfunção nascem sem testa (a parte da frente do cérebro) e sem um cerebrum (a área do cérebro responsável pelo pensamento e pela coordenação). A parte remanescente do cérebro é sempre exposta, ou seja, não protegida ou coberta por ossos ou pele. A criança é comumente cega, surda, inconsciente, e incapaz de sentir dor. Embora alguns indivíduos com anencefalia talvez venham a nascer com um tronco rudimentar de cérebro, a falta de um cerebrum em funcionamento permanente deixa fora de alcance qualquer ganho de consciência. Ações de reflexo tais como a respiração, audição ou tato podem talvez se manifestar. A causa da anencefalia é desconhecida. Embora se acredite que a dieta da gestante e a ingestão de vitaminas possam caracterizar uma resposta, acreditam que há muitos fatores envolvidos.

A anencefalia sempre existiu, porém, somente com a evolução da tecnologia foi possível diagnosticar no inicio da gestação esta anomalia do feto. De acordo com estudos realizados recentemente pelo Conselho Federal de Medicina, a anencefalia pode estar ligada à falta de ácido fólico durante a gestação.

O diagnóstico da anencefalia é feito até o final do terceiro mês da gestação. Após o diagnóstico, o quadro é irreversível. Dados apontam que em 50% das gestações, o feto anencéfalo morre antes de nascer e os demais 50% possuem baixa expectativa de baixa, morrendo, na maioria dos casos em até 48 horas após a gestação. 

Diante disso, Sarmento e Piovesan (2007, p.114) descrevem:

O Conselho Federal de Medicina considero o feto anencéfalo um natimorto cerebral, por não possuir os hemisférios cerebrais e o córtex cerebral, mas somente o tronco. Como causas de tal problema podem ser apontadas anormalidades genéticas, fatores ambientais, entorpecentes, enfermidades metabólicas, interação de fatores genéticos e ambientais e deficiências nutricionais e vitamínicas, especialmente a baixa ingestão de ácido fólico. A incidência pode ser maior também em mulheres muito jovens ou de idade muito avançada. A exposição da gestante no início da gravidez a produtos químicos, solventes e irradiações e o consumo de tabaco e bebidas alcoólicas também são apontados como elementos capazes de influenciar na má-formação fetal.

Foi concedido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), à CNTS, em julho de 2004, uma liminar autorizando a interrupção da gestação de fetos anencéfalos, sendo determinado que o aborto não dependeria de decisão judicial específica, bastando o exame que comprove a anomalia do feto. Porém, ainda em julho do mesmo ano, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), alegando que o direito do feto à vida não estava sendo respeitado, pediu ao STF, a cassação da liminar.

Após várias discussões ocorridas no Supremo Tribunal Federal (STF), a respeito da inconstitucionalidade da liminar concedida a CNTS, em outubro de 2004, por 07 votos contra 04 a liminar foi cassada, perdendo o seu valor. Os ministros alegaram a falta de urgência para a validade da liminar.

No ano de 2012, foi julgado pelo STF a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, sendo descriminalizada a conduta do aborto de feto anencéfalo.

Em atenção a problemática do aborto de fetos anencéfalos, apesar do Supremo Tribunal Federal, ter descriminalizado a conduta, em se tratando de fetos anencéfalos, com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, são muitas as discussões quanto ao tema, devido a interferência no direito à vida, direito fundamental previsto na Constituição Federal de 1988.

Analisando a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, destaca-se o pensamento do Exmo. Min. Cezar Peluso em seu voto: “o anencéfalo morre, e ele só pode morrer porque está vivo”. Conclui-se que o feto anencéfalo não está morto.

Foi atribuído ao aborto de feto anecéfalo, o nome de “antecipação terapêutica”. Como indica o nome, o processo de morte do feto é antecipado, tirando qualquer possibilidade de vida. Importante destacar que o feto possui o direito à vida, independente das chances de sobrevivência após o parto.

Ao legalizar o aborto de anencéfalos, o Supremo Tribunal Federal, confirmou a descriminalização quanto ao feto mau formado, já que, o feto bem formado possui o direito à vida e o mau formado, por motivo alheios à sua vontade, não possui. Nesse sentido, discorre em seu voto na ADPF 54, o Exmo. Min. Lewandownski, “retrocederíamos aos tempos dos antigos romanos, em que se lançavam para a morte, do alto de uma rocha, as crianças consideradas fracas ou debilitadas”

Neste pensamento, Diniz (2008, p.51):

Para que interromper gravidez de anencéfalo ou de qualquer feto portador de moléstia grave e incurável? Ninguém é tão desprezível, inútil ou insignificante que mereça ter sua morte decretada, por meio de interrupção da gestação, uma vez que a natureza é sábia e se encarregará de seu destino se não tiver condições de vida autônoma extra-uterina. Se nascer, surgirá outra questão: a possibilidade de os pais doarem seus órgãos e tecidos para transplantes em crianças.

Discute-se então, que não somente o direito a vida da gestante deve ser respeitado, mas também do feto, que conforme relatos podem nascer com vida. A informação que o feto sempre morrerá após o parto é contestada, já que há casos verídicos em que o feto anencéfalo sobreviveu por anos após o nascimento. 

É perceptível, portanto, que os fetos têm sim vida após o nascimento, independente do tempo em que terão vida, já que estes apenas nascem sem parte do cérebro, mas possuem cerebelo e tronco. Sendo necessário a constatação da morte de maneira espontânea e não provocada.

Silveira (2004), ensina que:

Nem se invoque, no particular, em prol da conclusão contrária à vida desse ser humano doente, que a ciência está apontar-lhe existência extra uterina breve, se nascer com vida. O tempo mais ou menos longo de previsão de vida humana não autoriza, em qualquer caso, antecipar a morte. A eutanásia é, em nosso sistema, crime de homicídio, vale dizer, delito contra a vida. A interrupção da gravidez, com a morte do feto, constitui aborto (CP, arts. 124 a 126), crime também contra a vida, não se enquadrando o aborto do anencefálico no art. 128, I, do Código Penal. Não há sequer regra legal a excluir a aplicação de pena a quem provocar essa interrupção da gravidez, em qualquer de seus estágios, com a conseqüente morte do feto, pouco importando que, para isso, se use, de forma imprópria, o nome de “antecipação de parto”, pois o efeito é da mesma intensidade, ou seja, a morte provocada do ser humano, que está vivo no ventre materno e, aí, se vem desenvolvendo.

Ainda em defesa ao prosseguimento da gestação, tem-se o argumento, que não é comprovada por meio eficaz a morte do feto, sendo apenas suposições, que podem ser contrariadas por casos verídicos em que o feto sobreviveu por anos. Como ensina o Fonteles (2004, p. 14) o direito a vida é atemporal, vale dizer, não se avalia pelo tempo de duração da existência humana.”

Diniz (2008, p.51), alega no sentido da proteção dos direitos do feto:

Seria possível ainda alegar que o prosseguimento da gravidez de feto anencéfalo poderia causar dano à higidez psíquica da gestante, situação que tornaria o aborto necessário? Parece-nos que não, uma vez que a vida da mãe não está em jogo, embora, em certos casos, sua saúde física ou mental possa abalar-se. Assim sendo, seria legítimo sacrificar alguém, mediante antecipação ou interrupção terapêutica do parto ou da gestação com o escopo de beneficiar outrem, camuflando um aborto de feto portador de anencefalia ou de alguma malformação genética (interrupção seletiva da gestação)

Quanto aos posicionamentos contrários, tem-se que o direito à vida, apesar de ser fundamental, não é absoluto. Conforme entendimento do Conselho Federal de Medicina, a gestação do feto anencéfalo, traz riscos comprovados à saúde da gestante, principalmente no que tange a saúde mental, devendo esta ter o direito de poder escolher qual decisão se adequa melhor a sua situação.

Importante se faz ressaltar os danos causados pela gestação anencefálica, já que a gestante cria expectativa, que podem ser, na maioria dos casos considerada uma experiência dolorosa, devido a grande chance do feto nascer sem vida ou morrer logo após o nascimento.

Sarmento e Piovesan (2007, p.115), menciona que:

Receber a notícia de que o feto gerado em seu ventre sofre de má- formação cerebral irreversível, que não tem nenhuma chance de sobrevivência, sem dúvida é um momento de incomensurável sofrimento para a mulher. O caso da gravidez de feto anencefálico guarda peculiaridades dramáticas, inexistentes no caso de uma gestação de feto viável, pois pode representar a dor de receber a triste notícia sobre a anomalia fetal, numa fase em que a gestante poderia estar fazendo planos sobre o nascimento do feto que só então saberá: não vai viver. Difícil também é imaginar o instante em que essa mulher, após ter esperado por nove meses um bebê, tiver que voltar para casa sem seu filho. Mais triste ainda será o fato de ter que lhe dar um nome e sobrenome, apenas para constar do túmulo e do registro funerário de um ser que, paradoxalmente, chegou apenas a existir por alguns breves instantes após o parto.

Destaca-se ainda os princípios constitucionais, com a intenção de reforçar as ideias expostas. O princípio da autonomia defende a liberdade, no caso em tela, o princípio visa resguardar o direito de liberdade de escolha da gestante de acordo com seus valores morais, religiosos e éticos. Tem-se ainda o princípio da beneficência, que visa proteger a saúde psíquica e física da gestante, não cabendo apenas ao profissional da saúde a escolha, o direito de opção da gestante deve ser respeitado. Por fim, o princípio da justiça, que visa proporcionar a todas as gestantes tratamento igualitário no acesso à justiça e à saúde pública, pois este direito nem sempre é respeitado devido aos contrastes sociais do Brasil.

O aborto de feto anencéfalo é considerado pelos juristas como caso de inexigibilidade de conduta diversa, ao argumento que a vida extrauterina não é viável devido a má-formação do feto.

De acordo com Bitencourt (2008, p. 154):

Concluindo, não se pode falar em reprovabilidade social nem em censurabilidade da conduta de quem interrompe uma gravidez ante a inviabilidade de um feto anencéfalo, que a ciência médica assegura, com cem por cento de certeza, a absoluta impossibilidade de vida extra-uterina. É desumano exigir-se de uma gestante que suporte a gravidez até o fim, com todas as conseqüências e riscos, para que, ao invés de comemorar o nascimento de um filho, pranteie o enterro de um feto disforme, acrescido do dissabor de ser obrigada a registrar o nascimento de um natimorto.

Nesse diapasão, Franco (2002, p.89) diz:

A vida do nasciturus é um bem jurídico protegido pelo art. 5º da Magna Carta, mas isto não significa que tal bem jurídico não possa entrar em conflito com “direitos relativos a valores constitucionais, como a vida e a dignidade da mulher”. Estes conflitos não podem ser considerados a partir da perspectiva dos direitos da mulher ou da proteção da vida do nasciturus. Na medida em que nenhum desses bens pode afirmar-se com caráter absoluto, impõe-se a sua ponderação e harmonização. Bem por isso, em situações, singulares ou excepcionais, rigorosamente delimitadas, mostra-se perfeitamente adequado do ponto de vista do respeito constitucional do direito à vida, a não-punibilidade do aborto com a exclusão da proteção penal do embrião ou feto.

É levado ainda em consideração o pensamento de Marques (2011), que demonstra preocupação com o estado psíquico da gestante:

É inquestionável que a saúde psíquica da mulher passa por graves transtornos após o diagnóstico da anencefalia, que contagia a si própria e a seu núcleo familiar. A gravidez é uma fase de transição na vida de uma mulher, em que há grandes transformações físicas e vulnerabilidade emocional. A gestante portadora de um feto anencéfalo, pode experimentar sentimentos de choque, negação, tristeza, raiva e ansiedade. Assim, uma equipe multidisciplinar evidencia a importância dos aspectos emocionais da família e faz com que toda a equipe seja cuidadosa em relação a esses aspectos, respeitando o difícil momento que eles enfrentam.

O direito a vida, por ser fundamental, sempre que colocado em discussão, se torna um tema complexo, já que, conceder à gestante o direito de decisão sobre o prosseguimento ou não da gestação, somente pelo fato do feto ter uma má formação, provoca indignação em diversos ambientes sociais. No universo jurídico, as opiniões contrárias e favoráveis são pertinentes, não havendo possibilidade de esgotar as discussões a esse respeito.

Nesse diapasão, apesar da má-formação do feto, este possui direitos, mesmo estando no ventre da mãe, cabendo ao Estado zelar por estes direitos. O aborto deve ser a última medida a ser considerada, já que não há comprovação cientifica da morte do feto logo após o nascimento.

HISTÓRICO DA ADPF 54

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, apesar de ter sido interposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde em 2004, foi julgada somente em 11 de abril de 2012. Durante o julgamento, a maioria dos ministros buscaram demonstrar que a gestante deve ter autonomia na decisão de prosseguir ou não com a gestação, não cabendo ao Estado punir, já que o feto anencéfalo, é considerado pelos defensores da descriminalização, como um natimorto cerebral e a proibição do aborto pelo Estado, significaria ofensa ao princípio da dignidade humana.

O ministro relator, Marco Aurélio (2012), votou pela descriminalização do aborto de feto anencéfalo. Destacou em seu voto a procedência do pedido da CNTS, em declarar inconstitucional os artigos 124, 126 e 128, II e II, do Código Penal que criminaliza esta conduta. Rebateu em seu voto, a alegação que a gestante deve prosseguir com a gestação, pois apesar de haver baixa perspectiva de vida para o feto, pode ser feita a doação de órgãos. Segundo o ministro é inadmissível esta alegação, já que os danos físicos e psíquicos sofridos pela gestante podem ser irreversíveis e de difícil reparação e os órgãos do anencéfalos, em sua maioria possuem outras anomalias.

Marco Aurélio ressalta ainda que o direito à vida do feto não está sendo desrespeitado, pois se trata de um natimorto cerebral, com poucas chances de sobrevivência após o nascimento, não podendo ainda, o direito do natimorto prevalecer em detrimento aos direitos da gestante, que sofre danos quanto à saúde física e moral.

Em seu voto, o relator Marco Aurélio diz:

“Cumpre à mulher, em seu íntimo, no espaço que lhe é reservado – no exercício do direito à privacidade –, sem temor de reprimenda, voltar-se para si mesma, refletir sobre as próprias concepções e avaliar se quer, ou não, levar a gestação adiante. Ao Estado não é dado intrometer-se. Ao Estado compete apenas se desincumbir do dever de informar e prestar apoio médico e psicológico à paciente, antes e depois da decisão, seja ela qual for (…). Não se trata de impor a antecipação do parto do feto anencéfalo. De modo algum. O que a arguente pretende é que ‘se assegure a cada mulher o direito de viver as suas escolhas, os seus valores, as suas crenças’. Está em jogo o direito da mulher de autodeterminar-se, de escolher, de agir de acordo com a própria vontade num caso de absoluta inviabilidade de vida extrauterina. Estão em jogo, em última análise, a privacidade, a autonomia e a dignidade humana dessas mulheres. Hão de ser respeitadas tanto as que optem por prosseguir com a gravidez – por sentirem-se mais felizes assim ou por qualquer outro motivo que não nos cumpre perquirir – quanto as que prefiram interromper a gravidez, para pôr fim ou, ao menos, minimizar um estado de sofrimento.”

Abordou ainda que a falta de previsão do aborto de anencéfalo no Código Penal, se deve ao fato que este foi editado em 1940, e nesta época a medicina ainda não era capaz de constatar precocemente esta anomalia cerebral, não podendo o Estado propiciar ao feto natimorto o direito à vida.

Acompanhando o voto do relator, a ministra Rosa Weber (2012), defende que deve ser retirado da lei incriminadora o aborto de feto anencéfalo, atendendo o pedido da CNTS. Explicou a ministra que de acordo com a Resolução nº 1480/97 do Conselho Federal de Medicina, para que se possa confirmar a morte do individuo, basta verificar a ausência da atividade motora, que é diagnosticada pela morte cerebral. Portanto, a ministra conclui que se para o Conselho Federal de Medicina, a falta de capacidade cerebral representa a morte, deve ser aplicado analogicamente ao feto anencéfalo, pois este, não tem capacidade de desenvolver ações cerebrais típicas do ser humano, sejam elas físicas ou psíquicas.

Já o ministro Joaquim Barbosa (2012), foi o terceiro a votar, alegando estar de acordo com o voto da ministra Rosa Weber, solicitando ainda a juntada do Habeas Corpus 84.025, sobre esta matéria.

O quarto a votar foi o ministro Luiz Fux (2012), sendo favorável ao pedido de descriminalização do aborto de anencéfalo, sob o argumento que a proibição do Estado quanto a interrupção da gestação, representaria tortura à gestante. De acordo com Luiz Fux, a saúde física e psíquica da gestante deve ser respeitada, pois a gestação de feto anencéfalo representa perigo iminente a saúde da mãe. Defendendo ainda que o Código Penal vigente é omisso quanto ao aborto do anencéfalo, e isto não é motivo para incriminação da conduta.

A ministra Carmem Lúcia (2012) também votou a favor do pedido feito pela CNTS, sendo favorável ao aborto de feto anencéfalo. Sendo breve em sua exposição, informou a ministra que o Supremo Tribunal Federal não está defendendo o aborto devido a má-formação do feto, pois este não é um motivo plausível. Ressaltou que o direito à liberdade da gestante deve ser respeitado, pois somente ela e sua família sabem o sofrimento que acarreta esta gestação devido à expectativa do nascimento do bebê.

Já o ministro Ricardo Lewandowski (2012) foi o primeiro a divergir do relator, votando pela improcedência do pedido proposto pela CNTS. Lewandowski primeiro expôs que o Supremo Tribunal Federal tem o papel apenas de extrair dos diplomas legais as normas incompatíveis com a Constituição, mas não deve, como no caso, alterar a legislação. Conforme o ministro, este dever cabe ao Congresso Nacional, que é representante da vontade do povo.

Ainda de acordo com Lewandowski, a alteração da legislação a favor do aborto de anencéfalos, traria consigo a possibilidade de legalizar também o aborto de fetos que possuem outros tipos de anomalias, já que a justificativa para a legalização é a baixa perspectiva de vida. Informou ainda que conforme a Organização Mundial de Saúde, há um rol de dezenas de anomalias em que o feto possui pouca ou nenhuma chance de vida, motivo pelo qual também justificaria a legalização do aborto para estes tipos de malformações.

Ao finalizar o seu voto, o ministro ainda alegou que a legalização desencadearia a possibilidade de aborto de diversos outros casos, esclarecendo ainda que o Código Civil vigente, dispõe que os direitos são devidos desde a concepção. Para autorizar esta modalidade de aborto, este dispositivo deveria, portanto, ser considerado inconstitucional.

O ministro Ayres Britto (2012), votou a favor do pedido da CNTS, alegando que o feto anencéfalo é natimorto, devendo o aborto de anencéfalo ser um ato considerado atípico. Defende ainda que a gestação deve ter como resultado a vida e não a morte. Para o ministro, cabe à mulher a decisão, pois somente a mãe sabe o martírio de carregar um feto sem nenhuma perspectiva de vida.

Gilmar Mendes (2012), votou a favor do aborto do feto anencéfalo. Explicou o ministro que não há possibilidade de considerar o fato como atípico, porque o feto, apesar de possuir pouca perspectiva, ainda pode nascer com vida. Entende ainda que seria causa de excludente de ilicitude ou inexigibilidade de conduta diversa, pois a gestação do anencéfalo traz riscos comprovados à saúde da gestante. Além de danos físicos, a saúde mental seria fortemente abalada devido ao diagnóstico da anencefalia do feto. Explanou ainda que como o Código Penal foi editado em 1940, o legislador, devido a falta de avanços tecnológicos, não inseriu em seu texto esta previsão, devendo, portanto, ser incluída esta hipótese no rol das excludentes previstas.

O ministro Celso de Mello (2012), votou a favor do pedido feito pela CNTS. Segundo o ministro não se trata de legalização do aborto de feto anencéfalo, já que o termo correto é antecipação terapêutica do parto. Expôs o ministro que a liberdade da mulher em decidir se vai seguir com a gestação de anencéfalo até o fim ou não deve ser respeitada. Citou ainda que a Constituição não conceitua o que é vida, nem quando se inicia ou se finda, porém se reporta à Lei 9.434/97 e da Resolução 1.752/97 que considera a morte a partir do momento em que são cessadas as atividades cerebrais. Aplicando a analogia, o ministro demonstra que não há direito à ser respeitado, já que o feto não possui vida, pois não apresenta nenhuma atividade cerebral, não havendo ainda tipicidade no caso de aborto de anencéfalo.

O ministro Cezar Peluso (2012), foi o último a votar e acompanhou o voto do ministro Ricardo Lewandowisk, pela improcedência do pedido da CNTS. Expondo diversos motivos, Peluso iniciou fazendo uma breve consideração sobre as células-tronco, que ao contrário do feto anencéfalo, jamais foi implantada no útero. Para o ministro, o feto anencéfalo possui vida e seus direitos devem ser tutelados, devendo esta problemática ser tratada com cautela já que gera bastante divergência.  Alegou ainda que o feto anencéfalo não pode ser tratado como algo descartável que não tem nenhuma serventia, pois não se pode tratar uma vida como um negócio.

Por maioria dos votos o Supremo Tribunal Federal julgou procedente o pedido feito pela CNTS na ADPF 54, decidindo que o aborto de feto anencéfalo não é conduta tipificada pelo Código Penal Brasileiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS           

Conforme exposto, tem-se que a anencefalia é a malformação do cérebro do feto, que pode ser diagnosticada, de acordo com o Conselho Federal de Medicina, após a décima segunda semana de gestação, através de exames de ultrassonografia. O diagnóstico da anenfalia foi regulamentado pela CFM, através da Resolução 1.989/2012, e exige a assinatura de dois médicos.

A anencefalia, de acordo com a literatura e a medicina é um quadro irreversível e o feto anencéfalo possui baixa ou nenhuma perspectiva de vida e somente passou a ser discutida pela justiça brasileira, devido aos inúmeros casos de ações judiciais, tendo como objeto a autorização do aborto de feto anencéfalo, pois, até o julgamento da ADPF 54, era considerado crime.

O STF julgou procedente o pedido feito pela CNTS para descriminalizar a conduta do aborto de feto anencéfalo, por oito votos contra dois. Os ministros, em sua maioria defendem que o direito à liberdade da mulher deve ser respeitado, pois a gestação de feto anencéfalo além de colocar a saúde física da gestante em risco, ainda representa danos psicológicos, que conforme a intensidade podem ser irreversíveis. Defendem ainda que o feto é um natimorto e quando não morre durante a gestação, sobrevive poucas horas depois do parto, não podendo a gestante prosseguir com a gestação, pois a expectativa geraria mais danos psicológicos.

O julgamento feito pelo STF é considerado pelos juristas como um dos mais importantes da história brasileira, pois pacificou um tema controverso, tanto no que tange aos posicionamentos judicias e doutrinários, quanto religiosos. O STF pondera que a partir dessa decisão, os demais tribunais brasileiros estão obrigados a decidir da mesma forma, mas observa que a gestante não é obrigada a interromper a gestação, ela exercerá o direito à liberdade de escolha, que representa uma evolução para o Direito brasileiro.

Apesar da maioria dos ministros terem decidido pela descriminalização do aborto de anencéfalo, é importante ressaltar os pontos controversos. A vida foi analisada pela Suprema corte do Brasil como viável ou inviável. O feto anencéfalo possui uma má-formação do cérebro e devido a isso possui expectativa de vida reduzida, mas não lhe tira o direito de nascer, já que não comprovação cientifica da morte do anencéfalo logo após o nascimento. O que se tem são expeculações acerca do tema.

A autorização do aborto de feto anencéfalo abre uma discussão sobre a permissão do aborto de diversas anomalias, pois não é somente o feto anencéfalo que possui baixa perspectiva de vida. Limitar os direitos do feto ao tempo de vida, é atribuir valor à vida, o que é um ato impossível, pois o Estado deve assegurar o direito à vida independente de sua duração.

O Direito não deve apenas assegurar o direito à vida daqueles que são perfeitamente formados, pois a malformação do feto é um fato alheio à sua vontade. A morte é certa para todos que vivem, não há que se defender o aborto de anencéfalo, argumentando que este é um natimorto, pois todos, sem exceção irão um dia morrer e nem por isso Estado deixa de tutelar o direito à vida.

A descriminalização do aborto de anencéfalo, decidida pelo STF representa uma forma de preconceito contra o feto, pois só atribui utilidade ao feto perfeitamente formado, o que representa ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana, que defende que os direitos fundamentais, incluído o direito à vida, deve ser proporcionado e defendido pelo Estado, para todos, sem qualquer distinção.

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[1] Artigo cientifico apresentado no final do Curso de Direito, das Faculdades Integradas do Norte de Minas – Funorte, no ano de 2015.

[2] Bacharel em Direito Pelas Faculdades Integradas do Norte de Minas – Funorte.

[3] Especialista em Direito Público com ênfase em Direito Processual e Direito Penal Militar pelas Faculdades Integradas Pitágoras de Montes Claros-MG (FIP-MOC). Professor orientador e Advogado.

Como citar e referenciar este artigo:
SANTOS, Dayanne Ferreira; RUAS, Mauro Magno Quadros. Aborto de fetos anencéfalos. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2017. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/aborto-de-fetos-anencefalos/ Acesso em: 30 abr. 2024