O Superior Tribunal de Justiça publicou dois novos Enunciados em matéria penal: houve-se, mais uma vez, muito mal. Segundo o Enunciado nº. 588 da súmula do Tribunal Superior, “a prática de crime ou contravenção penal contra a mulher com violência ou grave ameaça no ambiente doméstico impossibilita a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.” Já o Verbete nº. 589 estabelece ser “inaplicável o princípio da insignificância nos crimes ou contravenções penais praticados contra a mulher no âmbito das relações domésticas.” Se a primeira “súmula” é contra legem, a segunda afronta a dogmática penal.
Como se sabe, o art. 44 do Código Penal impõe! que as penas restritivas de direitos substituem as penas privativas de liberdade quando for aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo. Ademais, exige-se que o réu não seja reincidente em crime doloso e aculpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente. (aquele velho blá, blá, blá do Direito Penal do Autor que já conhecemos).
Outrossim, se a condenação for igual ou inferior a um ano, a substituição pode ser feita por multa ou por uma pena restritiva de direitos. Caso tenha sido superior a um ano, a pena privativa de liberdade pode ser substituída por uma pena restritiva de direitos e multa ou por duas restritivas de direitos.
Aliás, ainda que reincidente o condenado, o Juiz poderá aplicar a substituição, desde que, em face de condenação anterior, a medida seja socialmente recomendável e a reincidência não se tenha operado em virtude da prática do mesmo crime.
Está na lei, consta do Código Penal com uma clareza solar, como diria o velho (e bom) Tourinho Filho. Portanto, cara pálida! onde está na lei a proibição da substituição da pena privativa de liberdade por uma pena alternativa? Se não está na lei, não pode estar em uma “súmula”. O Superior Tribunal de Justiça não é Congresso Nacional. Nem legitimidade popular a possui os seus Ministros.
Uma “súmula” pode até ser considerada uma norma jurídica – admito -, mas nunca um dispositivo legal, ainda mais para agravar a situação de um condenado. O absurdo é manifesto! A impropriedade é indiscutível.
E quanto à inaplicabilidade do Princípio da Insignificância em delitos que tais? Roxin, a essa altura, remove-se do seu leito e se arrepende do que pensou e escreveu, pois certamente não supunha que fariam de sua tese um monstrengo para todos os gostos, a depender do freguês. O Princípio da Insignificância não tem nada que ver, muitíssimo pelo contrário, com a circunstância na qual foi praticado o delito (se em situação de violência doméstica ou familiar). Nada que ver!
Aliás, recentemente, a 2ª. Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus nº. 138.697, reformou decisão do Superior Tribunal de Justiça e concedeu a ordem, determinando o trancamento do processo em que o réu era acusado de furto de um telefone celular, avaliado em R$ 90,00. Neste caso, a 5ª. Turma do Superior Tribunal de Justiça havia determinado a execução imediata da pena sob a alegação de que o celular tinha um valor superior a 10% do salário mínimo, além de ser reincidente o acusado. O voto do relator do caso no Supremo Tribunal Federal, Ministro Ricardo Lewandowski, foi em sentido contrário, tendo sido acompanhado pelos demais integrantes da Turma. Ou seja, na Corte Suprema já prevalece tese de que a reincidência, por si só, não impede a aplicação do princípio da insignificância. Em seu voto, o Ministro Ricardo Lewandowski afirmou:
“Destarte, ao perceber que não se reconheceu a aplicação do princípio da insignificância, tendo por fundamento uma única condenação anterior, na qual o ora paciente foi identificado como mero usuário, entendo que ao caso em espécie, ante inexpressiva ofensa ao bem jurídico protegido, a ausência de prejuízo ao ofendido e a desproporcionalidade da aplicação da lei penal, deve ser reconhecida a atipicidade da conduta.”
Aliás, este entendimento já havia sido exposto pela mesma 2ª. Turma no Habeas Corpus nº. 137.290, julgado em fevereiro deste ano. Na ocasião, por maioria de votos, concedeu-se a ordem para reconhecer a atipicidade da conduta da paciente que havia tentado subtrair de um supermercado dois frascos de desodorante e cinco frascos de goma de mascar, avaliados em R$ 42,00, mesmo o paciente possuindo registros criminais.
Com efeito, o Princípio da Insignificância foi pensado por Claus Roxin, na década de 60, a partir do Princípio da Adequação Social, anteriormente criado por Welzel. Segundo Roxin, era necessário introduzir no sistema penal um outro princípio que permitisse, em alguns tipos penais, excluir os danos de pouca importância, pois, como diz, Ferrajoli, “la necesaria lesividad del resultado, cualquiera que sea la concepción que de ella tengamos, condiciona toda justificación utilitarista del derecho penal como instrumento de tutela y constituye su principal límite axiológico externo. Palabras como ‘lesión’, ‘daño’ y ‘bien jurídico’ son claramente valorativas.”[1]
Logo, se a conduta do agente não lesa (ou ofende) o bem jurídico tutelado, não causando nenhum dano, ou, no máximo, um dano absolutamente insignificante, não há fato a punir por absoluta inexistência de tipicidade, pois “la conducta que se incrimine ha de ser inequivocamente lesiva para aquellos valores e intereses expresivos de genuínos ‘bienes juridicos’.”[2] “El origen del estudio de la insignificancia se remonta al año 1964, cuando Claus Roxin formuló una primigenia enunciación, la que fuera reforzada – desde que se contemplaba idéntico objeto – por Claus Tiedemann, con el apelativo de delitos de bagatela.”[3]
Por óbvio, como explica Cezar Roberto Bitencourt, “a tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico.”[4] Na verdade, trata-se da aplicação no Direito Penal do velho adágio latino minima non curat praetor.
O saudoso penalista e Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Francisco de Assis Toledo, já ensinava que, nada obstante Welzel considerar que “o princípio da adequação social bastaria para excluir certas lesões insignificantes“, Claus Roxin “propôs a introdução, no sistema penal, de outro princípio geral para a determinação do injusto, o qual atuaria igualmente como regra auxiliar de interpretação. Trata-se do denominado princípio da insignificância, que permite, na maioria dos tipos, excluir os danos de pouca importância. Não vemos incompatibilidade na aceitação de ambos os princípios que, evidentemente, se completam e se ajustam à concepção material do tipo que estamos defendendo. Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas.”[5]
Não precisaria, para encerrar, afirmar a minha repulsa pela violência de gênero. Aliás, repudio a violência contra a mulher, contra os afrodescendentes, contra os pobres, contra as crianças, contra os que optam por amar e gozar com alguém, etc., etc. Repudio! Mas, neste aspecto, sou positivista. Tem que obedecer a lei, senão, os próximos seremos nós.
Autor: Rômulo de Andrade Moreira, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS.
[1] Derecho y Razón, Madrid: Editorial Trotta, 1995, p. 467.
[2] Antonio Garcia-Pablos, Derecho Penal – Introducción, Madrid: Servicio Publicaciones Facultad Derecho Universidad Complutense Madrid, 1995, 265.
[3] Enrique Ulises García Vitor, La Insignificancia en el Derecho Penal, Buenos Aires: Hammurabi, 2000, p. 20.
[4] Manual de Direito Penal – Parte Geral – Ed. Revistas dos Tribunais – 4a ed., p. 45.
[5] Princípios Básicos de Direito Penal – Ed. Saraiva – 4a ed. – 1991 – p. 132.