Pode parecer senso comum dizer que o Brasil mudou. Digo o Brasil real, não a percepção do que dele temos. Desde 1985 os governos, em suas diversas instâncias, foram entregues a quadrilheiros irresponsável, os quais queriam, os mais brandos, apenas enriquecer rápido roubando o Estado ou fazendo negócios, intermediando tudo com o Estado. Os mais raivosos, como o a turma do PT, tinham o projeto revolucionário que passava, além do roubar puro e simples, pela perpetuação no poder. Lograram êxito até a eclosão do mensalão, que explodiu como um tumor maligno na consciência da Nação. Desde então o Brasil mudou mais. O petrolão foi o segundo tumor a explodir. É preciso investigar como isso foi possível. Muitos descreem mesmo diante dos fatos consumados.
[Amigos meus, notáveis em saber, repetiam sem cessar, por ocasião do julgamento do mensalão, que aquilo não ia dar em nada. Deu. Poderosos e ricaços foram em cana. Deu porque fatos novos eclodiram na história, conforme relaciono abaixo. Não significa dizer que todos os poderosos foram apenados, basta aqui lembrar do mais notável esquecido no mensalão, o ex-presidente Lula.]
No jornal O Estado de São Paulo de hoje tem duas matérias com o procurador Deltan Dallagnol (ver Aqui e Aqui). Definitivamente, o jornalista exagerou em atribuir ao notável procurador da República a força teórica que estaria por detrás das mudanças. Muito antes de que a consciência jurídica dos procuradores mudasse, o Brasil havia mudado substantivamente. Essa mudança criou uma armadilha gigantesca para os praticantes de crimes do colarinho branco, todos pegos com, desculpem a expressão, as calças na mão. Foi um Deus nos acuda. A elite política e empresarial inteira está em vias de se tornar ré confessa de práticas continuadas de corrupção ativa, passiva e formação de quadrilha. Fica-se com a impressão de que o preço para enriquecer no Brasil é corromper-se, sendo a corrupção o bilhete de passagem para a prosperidade pessoal, como é ilustrativo o caso escabroso do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, e do próprio Lula.
O que mudou? Nossa gente não mudou sua alma em nada e continua acreditando que o Estado pode ser o salvador da pátria e que a coisa pública é campo de caça para se dar bem, para obter emprego, aposentadorias, prebendas e contratos vantajosos. Nossa elite política tampouco mudou, continua a mesma assaltante dos cofres públicos de sempre, que faz o Estado lhe dar oportunidades de ganhos milionários e de empregar a parentela política e cabos eleitorais. As leis também não mudaram. O que mudou? A realidade mudou.
Em primeiro lugar, houve um crescimento rápido do funcionalismo público, com destaque para aqueles alocados no Poder Judiciário. Esse crescimento eliminou os controles personalísticos que antes haviam sobre os agentes públicos. Normalmente o procurador, o juiz e os advogados formavam uma trinca que decidiam antes da reunião no tribunal o destino dos réus, no caso da elite inocentando-os a despeito das provas, ou, no mínimo procrastinando condenações inevitáveis. Os sobrenomes desses agentes normalmente eram vistosos, vindos dos filhos da elite. Tudo uma grande família. Com a ampliação do número de agentes houve uma crescente despersonalização do trato dos processos, de sorte que o papel do advogado esmaeceu. O rotundo fracasso das grandes bancas de advocacia que vimos no caso do mensalão e do petrolão é sintoma dessa mudança. A mesma expansão no número de agentes viu-se em órgãos como a Polícia Federal, também contribuindo para despersonalizar a investigação e a aplicação da lei penal.
Em segundo lugar, as mudanças tecnológicas súbitas, como na telefonia celular, câmaras de vigilância e uso de computadores e internet. Os poderosos tradicionais sentiam-se seguros falando e trocando mensagem, gerando provas contra si mesmos como se nada estivesse acontecendo à sua volta. Mensagens de correio eletrônico foram rastros que não puderam ser mais apagados e que permitiram montar toda a árvore de relacionamentos e transações criminosas. Foi espantoso ver que criminosos nos EUA na década de 30 (a filmografia de filmes policiais nos dá casos sobejos, basta ver a consagrada série Os Sopranos) já sabiam do risco das gravações telefônicas em aparelhos celulares e aqui ignorou-se completamente o risco. As tenebrosas transações eram celebradas de viva voz, às vezes com jogos de palavras facilmente decifráveis. Dentro desse fator tecnológico podemos colocar o poder da internet em multiplicar a opinião pública e a própria capacidade dos julgamentos serem transmitidos em tempo real, fator impeditivo de conchavos com os julgadores para proteger descaradamente os réus.
O mundo jurídico também mudou com o instituto da delação premiada. Antes, o pacto de silêncio era líquido e certo; agora, é certo que não será cumprido, sobretudo quando as provas envolvem parentes próximos, como filhos e cônjuges. O poder destrutivo sobre a solidariedade criminosa desse instituto foi subestimado.
Um último fator muito relevante: a mudança no cenário mundial com os acontecimentos do 11 de Setembro. Desde então o sigilo em torno de transações financeiras desapareceu e os governos de países considerados paraísos fiscais foram fortemente encorajados a denunciar indícios de transações com dinheiro sujo. Antes, ter uma conta na Suíça era garantia de proteção da riqueza financeira sob anonimato; agora, é prova contra aqueles que enriqueceram à sombra do poder de Estado, de forma ilícita.
Tudo mudou, mas o povo não e menos ainda a elite. E esta mostrou-se notavelmente despreparada diante da mudança substantiva no ambiente no qual seus negócios escusos eram realizados. Foram pegos no contrapé.
Dito isso, ouso afirmar que é irrelevante essa mudança suposta no plano teórico, anteriormente comentado. Aliás, eu temo as proposituras justiceiras de gente como o procurador Deltan Dallagnol. Ele supõe que os réus se opõem à “sociedade”, quando na realidade o polo oposto é o poder de Estado. Os juristas de todos os tempos sempre souberam que a pata do Estado é do tamanho do Leviatã e que ela deveria ser movida com todo cuidado, para não ferir de forma desnecessária aqueles sentados no banco dos réus, obviamente fragilizados ante o imenso poder do Estado. Esse é o garantismo tradicional. O procurador, no livro comentado pelo jornal, parece ignorar isso e quer que o Estado se mova pela lógica justiceira da multidão, o seja, da tal “sociedade”. Esse é um perigo ainda maior do que inocentar potencialmente réus confessos. É uma mentalidade geratriz do totalitarismo judicial, a forma de totalitarismo mais feroz e impiedosa.
Em outras palavras, os jacus arrogantes e ignorantes que formam a nossa elite política aventureira caíram numa armadilha histórica e penso que dela não poderiam escapar, em face dos usos e costumes e da certeza da impunidade. As teorias fajutas dos Dallagnol são irrelevantes para explicar sua ida para as masmorras. O Código Penal brasileiro não mudou em nada, continua o mesmo de sempre, aplicado a um novo mundo cheio de provas, fatos e registros eletrônicos dos criminosos imbecis, no ato flagrante de delinquir.
www.nivaldocordeiro.net – 05/02/2017