“Quem veio de Portugal para o Brasil foram degredados, criminosos. Quem foi para os Estados Unidos foram pessoas religiosas, cristãs, que buscavam realizar seus sonhos, era um outro perfil de colono.”
Essa frase, imbecil, preconceituosa, desinformada, estúpida e ignorante (a frase, não quem lha disse, por óbvio), foi dita em uma palestra em uma Igreja Batista, em fevereiro do ano passado, pelo Procurador da República, Deltan Dallagnol, esse “sub-herói” brasileiro, considerando que o super-herói nacional é o Moro, como gozo (Lacan explica).
A questão é que o pastor Deltan não é dado muito à leitura. Se, realmente, conhecesse a história dos Estados Unidos, país que ele, estupidamente, venera e idolatra, saberia que “a ideia de que para a América do Norte dirigiu-se um grupo seleto de colonos altamente instruídos e com capitais abundantes é uma generalização incorreta.“[1]
Não sabe ele, porque nunca leu nada a respeito, que “o processo de êxodo rural na Inglaterra acentuava-se no decorrer do século XVII e inundava as cidades inglesas de homens sem recursos. A ideia de uma terra fértil e abundante, um mundo imenso e a possibilidade de enriquecer a todos era um poderoso imã sobre essas massas.”
Ora, Deltan, “meu pastor”, como “as autoridades inglesas viam com simpatia a ida desses elementos para lugares distantes“, as treze colônias americanas (gênese dos Estados Unidos da América) serviram, meu pop-star, “como receptáculo de tudo o que a metrópole não desejasse.” Aprendeu?
Então, vejamos: “Ao contrário de Portugal, nação de pequena população, a Inglaterra já vivia problemas com seu crescimento demográfico no momento do início da colonização dos Estados Unidos“, razão pela qual, meu caro pastor, o objetivo era “a remoção da sobrecarga de pessoas necessitadas, material ou combustível para perigosas insurreições e assim deixar ficar maior fartura para sustentar os que ficam no país.”
Por isso, a Inglaterra fez, ao contrário do que Deltan, “o puro”, sabe, “da colonização um meio de descarregar no Novo Mundo tudo o que não fosse mais desejável no Velho.” Você não sabe, Deltan, mas a Inglaterra mandou cem órfãos para a Virgínia (isso em 1620): “Da mesma maneira, mulheres eram transportadas para serem leiloadas no Novo Mundo.”
Ora, meu querido ignorante (da história americana, óbvio), estas pobres mulheres, evidentemente, “dispostas a atravessar o oceano e vendidas na América como esposas, não eram integrantes da aristocracia intelectual ou financeira da Inglaterra.”
E os puritanos chegados à América que você, meu lindo mancebo, tanto idolatra, tinham uma moral de oração e trabalho tão forte “que os jovens não podiam, por exemplo, praticar esportes de inverno como patinar, pois isso era considerado imoral.”
O seus puritanos, ó menino!, “tinham em altíssima conta a ideia de que constituíam um grupo escolhido por Deus para criar uma sociedade de eleitos.” Saiba, portanto, que essa “ideia de povo eleito e especial diante do mundo é uma das marcas mais fortes na constituição da cultura dos Estados Unidos.”
Saiba (nem um pouco) caríssimo colega de Ministério Público, para não falar mais bobagens, que “nesse grande contingente, embrião do que seria os Estados Unidos, misturam-se inúmeros tipos de colonos: aventureiros, órfãos, membros de seitas religiosas, mulheres sem posses, crianças raptadas, negros e africanos, degredados, comerciantes e nobres.”
Portanto, é de uma tremenda estupidez, “tomar, assim, os peregrinos protestantes como padrão.” Reforça “uma parte do processo e ignora outras.” Imperdoável! E o que dizer da opinião do seus “exemplos” americanos em relação aos povos indígenas?
Veja, e se envergonhe deles, o relato de Jonas Michaëlius, em 1628:
“Quanto aos nativos deste país, encontro-os totalmente selvagens e primitivos, alheios a toda decência; mais ainda, incivilizados e estúpidos, como estacas de jardim, espertos em todas as perversidades e ímpios, homens endemoniados que não servem a ninguém senão ao diabo. É difícil dizer como se pode guiar a esta gente o verdadeiro conhecimento de Deus e de seu mediador Jesus Cristo.” O que diriam os seus colegas que lutam pelos direitos indígenas, hein Deltan?
Aliás, meu (nem um pouco) caro colega, “embora o fato seja bem pouco conhecido da História norte-americana, os índios também foram escravizados“, sabia? Certamente não! Os puritanos não fariam algo assim.
Então saiba que “em 1708 a Carolina do Sul contava com 1.400 escravos índios“, prática que permaneceria até a independência. Eis a razão pela qual, “mais de uma vez, historiadores empregaram a expressão genocídio para caracterizar o massacre de populações indígenas na América do Norte.” Esse fato você também, certamente, ignora. Você sabia que “muitos autores costumam considerar a escravidão norte-americana como a mais cruel que a América registrou?, fazendo “do escravo mais um objeto do que um ser humano“?
No fundo, no fundo, Deltan, eu gosto de você. Só lhe advirto que “se persistir nesse caminho, arrisca-se a ser (mais) um idiota útil da mercadoria.“[2]
Autor: Rômulo de Andrade Moreira, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS.
[1] História dos Estados Unidos – Das Origens ao Século XXI, Karnal, Leandro (e outros), São Paulo: Editora Contexto, 3ª. edição, 4ª. reimpressão, 2016. As outras citações são da mesma obra.
[2] MARTINS, Rui Cunha, A Hora dos Cadávares Adiados, Atlas, 2013, p. 77.