Processo Civil

O processo civil contemporâneo e o protagonismo judicial

É desafiador analisar os reflexos dos diversos perfis assumidos ao longo da evolução do Estado particularmente em face da estrutura do processo civil que visa alcançar as sólidas bases para a devida compreensão do direito no Estado Democrático de Direito.

No Estado Liberal Clássico havia a compreensão do processo dentro da ótica privatista, reconhecido como “coisa das partes” postradas diante de um juiz passivo, até que vieram as mutações ocorridas e peculiares do Estado Social que implicaram numa concepção pública do processo, o qual vem a ser visto como instrumento a serviço da ordem jurídica estatal, reforçando-se o juiz para romper com as deficiências do processo eivado da índole liberal.

Afinal, no Estado Democrático de Direito, exige-se uma releitura do processo civil, trazendo em seu bojo uma parceria de singularidades, equacionada na cooperação e no diálogo, de modo a equilibrar simultaneamente a passividade e o protagonismo judicial.

O estudo vincula-se à linha hermenêutica, conscituição e de concretização de direito, assim, o processo se assume como método de abordagem hermenêutica.

O processo civil resultado da cultura vem a refletir diversos elementos tais como os costumes religiosos, os princípios éticos, os hábitos sociais e políticas que tanto notabilizam a sociedade. É bem possível visualizar o processo civil a partir de sua função em razão do Estado, pois as ideias dominantes sobre o papel do Estado são aptas a moldar as próprias concepções de escopos de justiças, bem como delinear as possíveis escolhas para as soluções processuais.

Compreender o fenômeno processual nos permite tanto atestar as razões históricas e culturais que fizeram com que o juiz, no Estado Liberal Clássico, viesse a assumir um papel passivo na condução do processo e completamente subordinado ao legislador na tomada de decisões, quanto também verificar e questionar o papel do juiz contemporâneo diante das partes, bem como a vigente conformação do processo civil, no Estaddo Democrático de Direito, principalmente com a imposição do modelo constitucional de processo civil introduzido pela Lei 13.105/2015.

Os elementos informadores do Estado Liberal clássico teve seu nascente na ruptura com a multiplicidade de instâncias de poder que tanto caracterizou a Idade Média. Tanto que se toma como marco principal do nascimento do Estado a estruturação do Estado Absolutista, na qual a unidade de instância de poder e direito é materializada.

E, nesse sentido, Del Vecchio considera como sendo os principais tipos históricos de Estados, os seguintes: o antigo Estado oriental (teocr´ratico ou absoluto, com limites religiosos, mas não jurídicos); o Estado grego também chamado de Estado-cidade (no qual a liberdade dos cidadãos, com exclusão dos escravos e mulheres), o Estado romano (que tendo nascido como Estado-cidade, se desenvolveu posteriormente em ordenamento muito mais amplo, no qual obteve forte relevo, justamente com a soberania do Estado, a personalidade jurídica individual nas relações privadas e públicas); o Estado medieval e, particularmente, o feudal (com pluralidade de poderes que originou várias figuras complexas e densas relações hierárquicas, sem unidade solidamente constituída); e finalmente, o Estado moderno que é o dotado de ordenamento unitário próprio, isento de toda e qualquer submissão à Igreja e ao Império, porém, limitado em seus poderes por sua própria Constituição, com um sistema de garantias dos direitos individuais. (In: Del Vecchio, Giorgio. Teoria do Estado. Tradução de Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo: Saraiva, 1957).

Ao cogitarmos sobre o Estado Moderno é preciso perceber que é resultado de lutas políticas ocorridas entre os diversos poderes medievais, como a Igreja e o Império, a Igreja e o Rei da França, e ainda, entre o Imperador e os reis e demais senhores feudais, e de outro lado, representa a síntese de comunidades nacionais, especialmente situadas na Espanha, França e Reino Unido, que representam comunidades assentadas fortemente sobre porções específicas do território europeu. A superação da atomização teocrática medieval fora conduzida prioritariamente pelos reis, o que explica plenamente a opção pela monarquia como forma fundamental do Estado Moderno.

O rompimento da atomização medieval de poder, engendra os principais traços que informam a noção de Estado existe até os dias atuais. E, nesse sentido, há uma notável unidade de poder concentrada no Estado que vai se sobrepor a todas as demais instâncias.

Segundo Giovani Tarello as raízes do absolutismo remontam à ruptura do equilíbrio jurídico existente no interior de alguns Estados a favor de um poder centralizado e supremo em desfavor de todas as outras instituições do universo jurídico medieval, como as classes, cidades, a Igreja e as corporações. E, o mais notável foi o papel dos conflitos religiosos ocorridos primeiramente na França e, depois na Espanha.

A figura do Estado Moderno é espelhada no soberano, titular de um poder direto, imediato e ilimitado, bem capaz de concentrar com fervor todas as funções que atualmente são denominadas de legislação, administração e jurisdição.

O soberano incorpora o Estado, e a frase de “L’Etat c’est moi” dita por Luís XIV ou o Rei Sol que teve um reinado de setenta e dois anos e cento e dez dias, reconhecidamente o reinado mais longo de toda história europeia.

Apesar de que a famosa frase é combatida por diversos historiadores que afirmam se tratar de mito ou lenda.  Luís XIV teria se voltado para o chanceler Séguier e declarou solenemente: “Senhor, eu lhe pedi que se reunisse com meus ministros e secretários de Estado apra dizer que até agora eu deixei o falecido senhor cardeal conduzir os assuntos de Estado; já é hora que eu próprio governo. Vocês me auxiliarão com seus conselhos, quando eu lhes pedir. Em seguida, proibiu os ministros de expedir qualquer coisa sem sua ordem”.

Alerta-se que num primo momento, o Estado Absolutista tenha sido fundamental para os objetivos da burguesia ascendente, mormente na área econômica, conforme ocorreu, afastando-a do poder político, que permanecia ilimitado nas mãos poderosas do soberano.

A ausência de limites ou de controle do Estado, no entanto, deu azo a reação da burguesia que buscava construir uma barreira contra as arbitrariedades do poder, ou, pelo menos, domesticar uma administração cujas providências concretas, individuais e potencialmente discriminatórias não se coadunavam com a calculabilidade, liberdade e igualdade de oportunidades dos agentes econômicos e tão essenciais para o desenvolvimento das bases econômicas burguesas.

O Estado, portanto, era visto como inimigo chancelador de desigualdades de direitos sempre a favor do clero e da nobreza, os quais não pagavam qualquer tipo de impostos, e, ao mesmo tempo, que tinha total ingerência sobre a economia e a autonomia dos cidadãos. Portanto, era indispensável, contrapor-se à onipotência do rei, através de um sistema infalível de garantias.

O Estado Liberal Clássico foi idealizado exatamente nesse contexto histórico onde ocorreu a justificação patrimonial e religiosa do poder, traduzida no governo de vontade discricionário do Príncipe, opõe-se o governo da razão, da soberania da vontade geral expressa no parlamento por meio de normas gerais e abstratas e de direitos fundamentais[1].

Dentre as ideias pol´tiicas que vão nortear a noção de Estado Liberal, destaca-se a afirmação de que o governo deve ser limitado no sentido de que aúnica forma em que as instituições políticas de uma sociedade podem ser justificadas se forem suficientemente permissivas para que todos possam viver suas vidas por si mesmos. E, noutro viés, reside a ideia dos direitos fundamentais como barreira à interferência estatal invasiva, limitando-se, finalmente, o Estado.

Nota-se que as concepções liberais do Estado acabaram de confundir, relativamente, com o contexto histórico do Estado de Direito, o qual era visto pela burguesia precipuamente como um conceito de luta política focada simultaneamente contra a imprevisibilidade do Estado Absoluto e as barreiras sociais legadas pela sociedade estamental.

Portanto, o Estado Liberal deu molde aos contornos do Estado de Direito, entendido a partir da principal proteção da liberdade e dos direitos fundamentais, aos valores burgueses, notadamente a iniciativa privada, a segurança da propriedade e as exigências de previsão própria do sistema capitalista.

É certo que a adjetivação “liberal” do Estado de Direito trouxe consigo, também, o pressuposto teórico das três separações; a separação entre a política e a economia, a separação entre o Estado e a Moral e a separação existente entre o Estado e a sociedade civil.

A partir daí, estruturou-se o Estado Liberal através dos direitos fundamentais, concebidos como esferas de autonomia destinada a preservar a intervenção do Estado, pela divisão dos poderes, calcada em assegurar o predomínio do corpo legislativo (pelo império da lei e pelo princípio da legalidade) e da força social que o hegemoniza, ou seja, a burguesia.

Nesse diapasão, o direito era identificado pela lei e sua titularidade era exclusiva do legislador, que aparecia como único protagonista da juridicidade com a preterição e quase total sacrifício do juiz, que se reduzia a ser a boca da lei.

Aliás, Montesquieu afirmou que: “Nos governos republicanos é da natureza da constituição que os juízes observem literalmente a lei (…) Os juízes de uma nação, não são, como dissemos, mais que a boca que pronuncia as sentenças da lei, seres inanimados que não podem moderar nem sua força nem seu rigor. (In: Do Espírito das Leis, Coleção: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultura, 1997).

Com a tomada do poder econômico e político pela burguesia, preocupou-se em domesticar a classe altamente técnica dos magistrados, e impedir que julgasse contrariamente aos ideiais da Revolução Francesa, e a saída, foi aplicar o sistema de separação dos poderes, inicialmente inspirado em Platão, mas tornando o judiciário um poder nulo, a quem caberia tão-somente declarar a vontade da lei, que fora criada pela burguesia, agora detentora do poder.

A estrutura do Estado Liberal Clássico era fundiada na limitação do Estado como meio de assegurar o desenvolvimento da burguesia ascendente e, do então incipiente modelo capitalista, a partir da configuração de direitos fundamentais[2] enxergados como garantias de autonomia individual contra as invasões autoritárias do soberano.

Assim, na divisão de poderes há sincera ênfase ao Poder Legislativo e uma total subordinação do Judiciário à lei, que tão bem refletia os valores burgueses. Desta forma, o processo civil acabou assumindo características dessa forma de Estado.

A ideologia predominante na era liberal seguia o sentido de que o processo era onde se manifestava a autonomia e a liberdade das partes privadas. E que estavam à disposição de todos os instrumentos processuais necessários apra desenvolver, por iniciativa própria, uma competição individual, um combate que se realizava diante do juiz, que fazia o papel de árbitro, cuja função era assegurar o respeito das regras do embate.

Portanto, havia o processo como verdadeiro duelo privado que é comum a todas legislações processuais liberais, que enfeixam uma série de princípio que delineiam o modelo processual típico.

A análise de Sergio Chiarloni sobre as ideologias processuais no âmbito da iniciativa probatória do juiz e, trouxe severas críticas ao exercício do poder de assumir as provas de ofício, o que remontam ao duelo judiciáiro, da concepção do processo como um jogo, em que o juiz não intervem sob pena de acabar favorecendo a vitória de um dos contendores.

Já no modelo ideal de Estado liberal reativo aponta que quanto mais for limitada a possibilidade de o juiz intervir, mais evidente está o modelo de combate, ficando evidente que as versões extremas da ideologia reativa propugnam um esquema exagerado de conflito. A indiferença do Estado incluiria, nessa senda. 

Exemplarmente os princípios foram encampados nas duas principais legislações processuais puramente liberais: o Código Napoleônico de 1806 e o Código Italiano de 1865. Nestes, não havia muitos procedimentos especiais, e também existiam raros casos de jurisdição coluntária, disciplinados com nítico caráter administrativo.

A admissão da demanda não estava subordinada à nenhuma aprovação do juiz, vez que se tratava de serviço necessário(e porque não mencinar indispensável) do Estado que estava no absoluto domínio de particulares.

A regra da demanda, ademais, era entendida no seu sentido mais ortodoxo, de modo que as partes não obtinham nenhuma colaboração do juiz na fixação da prova. E, nesse sentido, era confiada aos litigantes à disposição do processo e o controle do tempo. Salvo a audiência de discussão oral, o processo se desenvolvia na forma escrita, com ampla instrução probatória esfrita e remetida integralmente à disponibildiade dos litigantes, as quais podiam prolongá-la indefinidamente.

Pode-se constatar que a configuração de um processo remetido integralmente à autonomia e iniciativa dos particulares, no qual a intervenção do juiz era mínima e respondia às ideologias burgo-liberais.

O processo civil sob a forja capitalista, nesse sentido, era composto de um lado pelo dogma da liberdade das partes privadas no processo e, de outro, pelo dogma da mais completa tutela de direitos processuais das partes.

O domínio das partes sobre a gestão do processo transferiu o ideal da autonomia pessoal da ideologia política à administração da justiça. Portanto, revela-se um processo como uma controvérsia entre duas partes autônomas frente a uma corte passiva, e visto ainda, como mera continuação de outros meios de relações privadas.

O modelo de juiz passivo era compatível com a concepção liberal de Estado, pois este deveria evitar quaisquer intervenções na gestão de afazeres privados. Mas, ao mesmo tempo, trouxe os primeiros contornos ao processo civil para servir de controle estatal[3] sobre o juiz no momento de decidir, uniformizando rigorosamente o comportamento dos juízes que deveria atender às orientações pol´tiicas do governo, usando todos os instrumentos lícitos ou ilícitos, como pressões de arrecadações e sanções burocráticas ou disciplinares sobre aqueles que ousassem se tomadas pelo juízes, de maneira a garantir sempre a supremacia da legislação.

Nesse sentido, não era dado ao juiz, nem às partes contribuir para a compreensão do sentido do direito. O perfil do processo liberal clássico pode ser sintetizado no binômio: total liberade das partes privadas frente ao juiz; e forte controle político sobre o juiz por parte do governo.

Ultrapassa a fase do processo civil tido como “coisa das partes”, vieram as mutações no papel do Estado que começam a ser teorizadas no final do século XIX e vão erigir uma nova forma de processo civil.

Tais imbricações no papel do Estado e do processo civil refletiram naquilo que se chamou a história ideal do direito processual civil e o conduziram a salutar publicização.

Não havendo o individualismo e a neutralidade do Estado liberal para satisfazer as reais exigências de liberdade e igualdade dos setores mais oprimidos social e economicamente, eclodiu, na segunda metade do século XIX, uma série de conflitos de classes sociais que veio a desvelar a insuficiência das liberdades burguesas, quando se inibe o reconhecimento da justiça social.

Assim, vem progressivo estabelecimento por parte do Estado de medidas capazes de frear os excessos mais bizarros do capitalismo, especialmente atinentes aos horários de trabalho e ao trabalho infantil e feminino.

Nessa radical alteraçãa nas relações do Estado com a sociedade e, a partir, de um novo ethos político calcado na concepção da scoeidade não mais como um dado, porém, como um objeto suscetível e carente de estruturação a ser perseguida pelo Estado focado na realização da justiça social

O ideal que domina e alicerça a noção de Estado Social é o de um sistema político que ofereça a todos os cidadãos um digno padrão de vida, com a possibilidade efetiva para se realizarem como homens.

Evidentemente para tal escopo exige-se um papel mais ativo e interativo do Estado, rompendo-se com aqueles padrões liberais da atuação estatal mínima. Paralelamente, o direito e o processo civil começa a receber as influências dessa mudança, com reformas legislativas justificadas e com a rejeição ao individualismo associado aos princípios típidos do liberalismo clássico.

O processo, assim, deixa de ser um afazer privado, e passa a representar o exercício de uma função pública e soberana. Deixa de ser “coisa das partes” para ser o lugar onde se exprime a autoridade do Estado, com o fim não somente de tutelar interesses privados, mas sobretudo, de realizar o interesse público da administração da justiça.

Em resumo, o processo assume a forma de instrumento que o Estado coloca à disposição dos privados para a atuação da lei com finalidade de promover a pacificação social.

Cabe saleintar que o papel passivo e quase bovino do juiz liberal dava margem a grande lentidão e abuso, pois que as partes e seus defensores tornavam-se árbitros praticamente absolutos.

Ademais, o processo civil restava infenso aos valores, reproduzindo a pretensa neutralidade do Estado, sendo apenas concebido como mero dispositivo técnico capaz de servir a todas as possíveis ideologias e, em face da tolerância que tal concepção pressupunha abrigar em seu âmago, as mais variadas e contraditórias correntes de opinião.

Dessa forma, a doutrina processual naquele momento de transição tratou de repensar o processo, apostando em maiores poderes conferidos aos juízes, o que já indicava o novo papel que o Estado vinha a assumir. O processo passa a ser instrumento de justiça social, visando ser mais rápido e eficaz.

E, as modificações ocorridas no processo civil da época foram relevantes para que o papel do juiz e dos litigantes começasse a ser rediscutido e redimensionado, abandonando-se a ideia de um processo dominado pelas partes e por um juiz passivo e inoperante.

O que certamente implicará na majoração de importância do judiciário o que conduziu a maior aproximação entre Processo da Constituição Federal, particularmente, a partir do segundo Pós-guerra, com a criação dos Tribunais Constitucionais.  Tal profunda transição paradigmática, a partir do século XIX, trouxe igualmente uma releitura de todos os institutos do processo civil.

Mas, temos que reconhecer que tanto no Estado Liberal Clássico como no Estado Social, o fim ultimado é o de adaptação à ordem estabelecida, mantendo-se, por conseguinte, a já mencionada separação entre o Estado e a sociedade.

Quanto mais profunda essa separação, mais a relação de cidadania se converte numa relação paternalista de clientela, isto é, reservando ao cidadão um papel apático e meramente periférico.

A exigência de socialização do Estado exige não apenas o reconhecimento da intervenção dos grupos de interesse e organizações sociais na tomada das decisões políticas centrais, mas, efetivamente, a recondução institucional dessas decisões à vontade democraticamente expressa pelo conjunto da sociedade.

O cidadão passa a ser visto como participante e não mero expectador e recipiente da intervenção social do Estado. Essa autodeterminação democrática da sociedade inscreve-se, por sua vez, nos demarcados limites por uma vinculação material demarcada pela autonomia individual e pelos direitos fundamentais.

O referido caráter democrático implica na constante mutação e ampliação de conteúdos do Estado e do Direito, não bastando a limitação ou a promoção da atuação estatal. Mas, objetiva-se, nesse sentido, a transformação do status quo. Ocorre a incorporação efetiva da questão da igualdade como conteúdo próprio a ser buscado, garantindo juridicamente as condições mínimas de vida ao cidadão e à comunidade.

Na medida em que o Estado Democrático de Direito carrega o caráter transformador, não é mais possível concebê-lo como Estado passivo.  A tônica inaugurada pela autodeterminação democrática enfatiza que os cidadãos deixam de ser apenas o alvo de atuação do Estado. O que vai refletir na concepção de processo civil, de maneira a equalizar o problema da divisão do trabalho entre o juiz e as partes.

Assim no Estado Democrático de Direito há a parceria de singularidades, ou seja, uma comunidade dialógica de trabalho entre juiz e as partes. O que equivale mencionar que nem as partes e nem os juiz podem prover solitariamente os monólogos articulados. Somente o diálogo cooperativo é capaz de atingir o melhor resultado do processo,

Em verdade, o papel apático e periférico do cidadão de um lado ou, a atuação degenerada da atividade jurisdicional, provoca o surgimento de entendimentos judiciais, subjetivistas e particulares sobre a aplicação da norma jurídica, isto é, as decisões solipsistas, solitárias e voluntarísticas o que metaforicamente é comparado ao mito do juiz vespa de Aristófanes.

Lenio Luiz Streck apontou tal tendência no artigo intitulado “O que é isso – decido conforme minha consciência?”; onde aborda que a superação do racionalismo no processo civil enquanto condição de possibilidade para a construção das tutelas preventivas é um problema de estrutura ou de função?

Tal pergunta ainda aguarda pacientemente a resposta da doutrina.

Atualmente, apesar de o juiz dirigir o processo de forma ativa, passará fazê-lo sob a perspectiva comparticipativa, policêntrica e dialógica, assim se garante que participarão da formação das decisões.

Colhe-se uma atuação jurisdicional dialogal, operando-se a oitiva da impressão das partes a respeito de eventuais rumos a serem tomados no processo, possibilitando que essas dele participem, influenciando-a a respeito de suas possíveis decisões, com especial observância do contraditório[4] dinâmico e à estrutura comparticipativa processual.

Abandona-se a arena de luta egoística passando a construir um ambiente de cooperação que deve ser pressuposto próprio do julgamento no cenário democrático fornecendo um aspecto discursivo ao processo e criando um mandamento constitucional do diálogo entre as partes e o órgão julgador para a formação do juízo.

Assim, se substitui com vantagem a oposição, o confronto e embate, dando azo ao concurso das atividades dos sujeitos processuais, com ampla colaboração tanto na pesquisa dos fatos quanto na valorização da causa.

O processo é enxergado, pois, como um produto de atividade cooperativa, resultado de um trabalho conjunto realizado pelas partes e pelo juiz, seja no âmbito probatório, seja na construção da decisão da causa, sendo compatível e harmônico com regime democrático e coerente com o perfil do Estado Democrático de Direito.

Desta forma, é insustentável conceber um juiz inerte, de braços cruzados que encara ainda o processo como coisa exclusiva das partes. Portanto, cabe ao órgão judicial, zelar pelo contraditório efetivo, pelo rápido e regular processamento, assumindo inclusive os meios probatórios dentro dos limites fáticos estabelecidos pelas partes.

Não se trata, todavia, de cercear a iniciativa das partes ou deixar tudo por conta do juiz, numa posição de contraposição deste e das partes ou mesmo de opressão, mas sim, de ressaltar a colaboração entre um e outras, encarnando-se o processo, como autêntica comunidade de trabalho, com um trançar de parceria de singularidades e não como mero monólogo articulado.

Tal recompreensão do processo civil no marco do Estado Democrático do Direito impele uma nova leitura do devido processo legal[5] e também das chamadas garantias constitucionais do processo. E, nesse sentido, o devido processo legal[6] está distante de ser um conceito fixo, estático e enrijecido.

Passando a ser informado também pelos direitos fundamentais, numa perspectiva dinâmica e substancial, de modo que deve ser visualizado em dupla dimensão; a processual e a material, como direito de defesa e, também como direito as ações positivas, de modo particular como direito à organização e ao procedimento.

Cogita-se, finalmente, em um processo justo capaz de designar naquele modelo os direitos fundamentais, que deixam de ser visualizados sob o prisma defensivo tão próprio do Estado Liberal, além de sofrerem todos os influxos do regime jurídico dos direitos fundamentais.

Mostra-se indispensável à coordenação dos direitos fundamentais que compõem o processo justo, já que este não se materializa e nem se exaure em nenhum deles sozinhos.

Com razão Robert Cover, Owen Fiss e Judith Resnik aponta que “o devido processo é mais uma pergunta que uma resposta”. Não é um conceito estático com um significado fixo já que, ao contrário, seu alcance tem evoluído através do tempo e continua evoluindo.

Atribui-se às garantias constitucionais a nobre missão de precisar o conteúdo mínimo do direito ao processo, segundo as áreas de cobertura que não se aplicam somente ao ato de impulso inicial do juízo, mas abrangem todas as posições ativas das partes no processo.

O direito ao processo não pode ser caracterizado por um objeto puramente formal ou abstrato, mas assume um conteúdo modal qualificado como o direito ao justo processo.

Então, finalmente o processo ganha um matiz democrático, deixa de ser instrumento formal que aplica o direito com celeridade máxima, para ser aquela estrutura normativa constitucionalizada que é dimensionada e arquitetada por todos os princípios e valores constitucionais dinâmicos.

O processo como espaço de problematização incessante impede o subjetivismo e o autoritarismo, pois o contraditório passa a ser visto como autêntico direito fundamental do processo civil, e ganha cores, indo para além da bilateralidade de audiência.

Apresenta-se, assim, inerente ao entendimento do que seja processo democrático, do que resta implícita a participação do indivíduo na preparação do ato de poder, tornando o processo um verdadeiro ambiente de índole democrática.

A nova roupagem do contraditório se tornou essencial e crucial fator de legitimação democrática do processo, afastando, de imediato, a ideia segundo a qual a parte possa ser considerada simples objeto do pronunciamento judicial no iter procedimental.

O valor essencial do diálogo judicial na formação do juízo e da cooperação é resgatado; a necessidade de uma legitimação democrática, participativa e deliberativa, dando azo à maior abertura do processo às partes, de forma dialética na construção da decisão jurisdicional;

As partes têm, nessa linha, o direito de fazer valer livremente suas razões de serem atentamente escutadas. Eleva-se colaboração entre os sujeitos do processo, afirmando-se que as partes em relação ao juiz não têm papel de antagonistas, mas sim, de colaboradoras.

Reafirma-se o direito fundamental ao contraditório, como um verdadeiro direito de influir sobre a elaboração e a formação do convencimento do juiz. Nessa linha, também Guiseppe Tarzia afirma que o contraditório compreende poderes que correspondem a uma possibilidade de participar ativamente do desenvolvimento do processo e, portanto, de influir sobre os provimentos do juiz.

Obriga-se o julgador ao debate, ao diálogo judiciário, cooperando com as partes, estando gravado por deveres de esclarecimento, de prevenção, de consulta e de auxílio para com os litigantes.

Com efeito, quanto maior a participação das partes, mais justa será a solução encontrada ao caso concreto, de modo que a participação não somente vem a ser indicativa da justa possibilidade de manifestação, mas configura também uma contribuição para a solução justa.

Consequência disso tudo é uma “tutela contra o perigo de eventuais surpresas”, que “impõe ao juiz o dever de provocar o debate acerca de todas as questões, inclusive as de conhecimento oficioso, impedindo que em ‘solitária onipotência’ aplique normas ou embase a decisão sobre fatos completamente estranhos à dialética defensiva de uma ou de ambas as partes”.

Há, por conseguinte, uma exigência de uma prevenção de qualquer decisão-surpresa, seja no âmbito dos fatos da causa, seja no âmbito de questões jurídicas.

Dessa forma, “a submissão de todos os aspectos potencialmente relevantes da decisão ao contraditório apresenta-se como uma manifestação da percepção de que o poder do juiz no processo não é absoluto (incontrolável protagonismo judicial), em face de sua falibilidade e do fato de que a discussão será muito mais adequada (e legítima) se todos souberem os aspectos mais importantes da demanda”.

É resgatado o diálogo judicial. O antagonismo de posições das partes não é obstáculo para a dialética, antes a viabiliza, uma vez que não seja a morada do consenso, mas do diálogo regrado e da construção racional das soluções.

O entrechoque de opiniões é também ele, diálogo. Dessa forma, o processo civil, no marco do Estado Democrático de Direito, passa a ser visto como uma comunidade de trabalho entre o juiz e as partes: onde se pode construir a mediação ou conciliação ou um julgamento.

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[1] A importância dos direitos fundamentais decorre ain da de outra circunstância. Além de serem tautologicamente fundamentais, a evolução da humanidade passou a exigir uma nova concepção de efetividade dos direitos fundamentais. Do sentido puramente abstrato e metafísico da Declaração dos Direitos do Homem de 1789, a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, evoluiu -se para uma nova universalidade dos direitos fundamentais de modo a colocá -los num grau mais alto de juridicidade, concretude, positividade e eficácia.

[2] Do ponto de vista do direito processual, impõe -se sublinhar que os direitos fundamentais, para poderem desempenhar sua função na realidade social, precisam não só de normatização intrinsecamente densificadora como também de formas de organização e regulamentação procedimentais apropriadas.

Daí a necessidade de estarem assegurados constitucionalmente por normas, principiais ou não, garantindo -se ao mesmo tempo seu exercício e restauração, em caso de violação, por meio de órgãos imparciais com efetividade e eficácia. Embora essa dimensão procedimental nem sempre se refira ao processo judicial, também o abrange, a evidenciar uma interdependência relacional entre direitos fundamentais e processo.

[3] Segundo o nobre doutrinador Luiz Guilherme Marinoni coaduna com este entendimento, estabelecendo os meios de interligar o direito processual e o material, sempre sob a ótica dos direitos fundamentais, garantindo a prestação jurisdicional efetiva, como transcrito a seguir:

(…) os direitos fundamentais materiais, além de servirem para iluminar a compreensão do juiz sobre o direito material, conferem à jurisdição o dever de protegê-los (ainda que o legislador tenha se omitido), ao passo que o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva incide sobre a atuação do juiz como “diretor do processo”, outorgando-lhe o dever de extrair das regras processuais a potencialidade necessária para dar efetividade a qualquer direito material (e não apenas aos direitos fundamentais materiais) e, ainda, a obrigação de suprir as lacunas que impedem que a tutela jurisdicional seja prestada de modo efetivo a qualquer espécie de direito.

[4] Ao se definir o processo como procedimento estruturado em contraditório, isto significa que o contraditório compõe a essência do processo.Em verdade, processo é categoria da teoria geral do direito. Tanto que se pode cogitar processo administrativo, processo legisltivo, processo judicial e processo negocial. E, em todas essas manufestações do processo haverá o contraditório.

Náo se conforma ao devido processo legal o desenvolvimento de um processo sem que às partes sejam conferidas oportunidades de manifestação, de defesa de seus interesse. Há, pois, efetivo dever do órgão jurisdicional, a quem incumbe cientificar as partes a respeito dos atos ocorridos no processo. Há dois tipos de comunicação, a saber; a citação e a intimação.

E, tias atos concretizam a primeira faceta do contraditório que é coerente com a prerrogativa de reação aos atos processuais do juízo e da contraparte, tal como a defesa e o recurso.

O artigo 10 do CPC/2015 inovou e aperfeiçoi o ordenamento jurídco-processual, no momento em que proíbe o órgão jurisdicional de proferir qualquer decisão inclusive sobre as matérias apreciáveis de ofício – se antes houver sido efetivado o contraditório formal.

[5] No ano de 1354 , o rei Eduardo III, na Inglaterra, no Statute of Westminster of the Liberties of London, após tradução para o inglês da Magna Carta, utilizou, pela primeira vez, a expressão due processo of law, que passou a ter a seguinte redação: “Nenhum homem de qualquer camada social ou condição social, pode ser retirado de sua terra ou propriedade, nem conduzido, nem preso, nem deserdado, nem condenado a morte, sem que isto resulte de um devido processo legal”.

[6] Em nosso país, a Constituição Federal de 1988, denominada de “cidadã” expressamente consignou, no artigo 5º, inciso LIV:”ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Trata-se da única Constituição brasileira que trouxe ipsis verbis a previsão do devido processo legal. Entretanto, importante relatar que, mesmo antes de previsão expressa, os Tribunais no Brasil e pelo mundo, já consagravam, implicitamente, a cláusula do devido processo legal, a exemplo do caso Alemão, em que a cláusula do devido processo legal é previsão implícita da Carta Alemã de 1949.

Como citar e referenciar este artigo:
LEITE, Gisele. O processo civil contemporâneo e o protagonismo judicial. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2017. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/processo-civil/o-processo-civil-contemporaneo-e-o-protagonismo-judicial/ Acesso em: 22 nov. 2024