Tripartição fundamental das obrigações – obrigações negociais, responsabilidade civil e enriquecimento sem causa – Noronha
Matheus Lolli Pazeto *
NORONHA, Fernando. Tripartição fundamental das obrigações – obrigações negociais, responsabilidade civil e enriquecimento sem causa. IN: Jurisprudência Catarinense, vol. 72.
1. Teoria do adimplemento
Evolução do conceito; A coerência do novo código civil e a moderna doutrina obrigacional; Natureza jurídica do adimplemento.
Atualmente considera-se o adimplemento como a realização do conteúdo da obrigação pelo devedor. Para tanto, faz-se necessário a atividade solutória do devedor, ou seja, os atos materiais previstos no contrato, bem como a satisfação dos interesses do credor, analisados de maneira objetiva, de acordo com a tipicidade da obrigação.
Podemos dizer que tanto o elemento pessoal como o elemento patrimonial são essenciais para o perfeito adimplemento da obrigação. Portanto, o credor tem um direito a uma prestação útil por parte do devedor, e somente em uma possível fase executiva é que o direito do credor recai sobre o patrimônio do devedor. Mas, apesar da alteração de seu objeto, a relação obrigacional não perde a sua identidade, pois vista a obrigação como um processo, esta prossegue até conseguir o seu objetivo: a satisfação do interesse do credor.
Nesse mister de equacionar o conteúdo da obrigação, o princípio da boa-fé é fonte autônoma de deveres anexos e independentes, criando um verdadeiro feixe de deveres e obrigações recíprocas entre os contratantes.
Deste modo, para se alcançar o conceito de adimplemento, levando-se em conta o interesse objetivo do credor, ou, melhor dizendo, o fim da obrigação, necessário a apreciação do ditames sempre mutáveis da boa fé objetiva.
O adimplemento somente poderá ser declarado perfeito e adequado se todas as fontes obrigacionais forem consideradas, ou seja, a vontade das partes deve ser colmatada pelos princípios ordenadores da relação jurídica obrigacional, como a boa-fé e a função social dos contratos.
Note-se que o princípio da autonomia da vontade não foi esquecido, mostrando-se ainda essencial a teoria contratual, na verdade, as transformações referidas tentam preservar a essência do princípio, atualizando-o aos novos clamores sociais.
Alguns autores facilitam o trabalho dos estudiosos quando tentam colocar a visão moderna de adimplemento como sendo conseqüência da obediência a dois grandes princípios ordenadores: o princípio da pontualidade e o princípio da boa-fé.
O Código de 1916, inserido no contexto liberal e individualista da época, seguia a linha do Código de Napoleão e da maioria dos Códigos latinos do século XIX e início do século XX, considerando a autonomia da vontade como valor supremo. O novo Código Civil contém as normas necessárias para respaldar a noção de adimplemento anteriormente exposta, analisando o interesse do credor, de forma objetiva, em função do viés econômico-social do vínculo anteriormente firmado, garantindo o respeito somente às expectativas legítimas do credor.
O novo Código Civil nacional confere estrutura dogmática e sistemática eficientes para a aplicação das modernas noções de adimplemento, protegendo apenas as legítimas expectativas do credor.
A doutrina da teoria contratual limitada, é a que está mais de acordo com a natureza das coisas, acreditando que a natureza jurídica do adimplemento não pode ser reduzida a uma só categoria, variando conforme a natureza da obrigação.
2. Modalidades de inadimplemento
Segundo a lição de Antunes Varela, o inadimplemento é “a situação objetiva de não realização da prestação debitória”.
Para a maioria da doutrina, o inadimplemento apresenta-se diferenciado quanto a causa em: imputável e não imputável ao devedor e quanto aos efeitos em: definitivo (inadimplemento absoluto) e não definitivo (inadimplemento relativo).
2.1. Inadimplemento absoluto
Vale destacar que o inadimplemento definitivo decorre de impossibilidade ou da falta de interesse de credor em aceitar a prestação, quando esta se apresenta ainda possível.
2.1.1. Da impossibilidade
A impossibilidade ocorre quando existe “obstáculo invencível ao cumprimento da obrigação, seja de ordem natural ou jurídica.
A prestação deve tornar-se verdadeiramente impossível, seja através de intervenção legislativa, seja por forças da natureza ou por ação humana. A prestação que se tornou simplesmente mais onerosa ou excessivamente difícil não libera o devedor, tendo em vista a não aceitação da doutrina germânica do limite do sacrifício.
Deste modo, a impossibilidade verifica-se nos casos de caso fortuito, força maior, ato do credor, ato de terceiro ou ato do próprio devedor.
a) Impossibilidade inimputável ao devedor
Quando ocorre a impossibilidade superveniente inimputável ao devedor, a relação obrigacional extingui-se ipso iure. Como conseqüência, o devedor libera-se de sua obrigação e não encontra-se adstrito ao pagamento de perdas e danos, conforme o artigo 963 do Código Civil 1916 e o art. 396 do novo diploma civil.
A maioria dos casos de impossibilidade inimputável encontram-se dentro da categoria de força maior e caso fortuito.
b) Impossibilidade imputável do devedor
Para que ocorra a impossibilidade imputável é necessário que a conduta do devedor seja culposa, ilícita, cause certos prejuízos ao credor e mantenha um nexo de causalidade com estes prejuízos. A conduta do devedor é considerada culposa quando não observa os ditames determinados pelo ato constitutivo da obrigação, sendo considerados os deveres advindos da vontade das partes, bem como os gerados pelo princípio da boa-fé. Entretanto, para que ocorra a imputabilidade também devemos contar com a ilicitude do ato, ou seja, a conduta do devedor deve estar contrária ao ordenamento jurídico como um todo.
Primeiramente, o credor poderá manter o vínculo e exigir a execução pelo equivalente (art. 865 do CC/1916 e art. 234 do CC/2002) ou, com base no art. 1092 do CC/1916 e do art. 475 do CC/2002, optar pela resolução contratual. Vale lembra que nos casos de inadimplemento imputável ao devedor, o credor sempre fará jus às perdas e danos.
2.2. Inadimplemento relativo
No inadimplemento relativo a prestação a que o devedor estava adstrito, mesmo após o inadimplemento, continua despertando o desejo do credor, ou seja, a prestação continua útil para o credor. O inadimplemento relativo dividi-se em mora e impossibilidade temporária.
2.2.1. Mora
A mora é a espécie de inadimplemento relativo que contém a idéia de imputabilidade do devedor, ou seja, segundo a grande maioria da doutrina, para a caracterização da mora é necessário a conduta culposa.
Quando da ocorrência da mora, o credor poderá executar o contrato para forçar o devedor a prestar, sempre com a possibilidade de cumulação do pedido de perdas e danos.
2.2.2. Impossibilidade temporária
A impossibilidade temporária abarca todos os casos de inadimplemento relativo, quando a conduta do réu não se encontrar dentro das categorias de culpabilidade e ilicitude. Ou seja, se um caso de inadimplemento relativo não enquadrar-se no conceito de mora, automaticamente poder-se-á dizer que se trata de impossibilidade temporária.
Como o próprio nome revela, a impossibilidade sob análise não se enquadra na moldura do inadimplemento absoluto ou definitivo, visto que não impossibilita futura prestação, pois temporária.
2.3. Do inadimplemento relativo ao absoluto – critérios e efeitos jurídicos
A condição de inadimplemento relativo não é jamais estática e imutável, podendo transformar-se em inadimplemento absoluto. Assim, não apenas a impossibilidade definitiva, fática ou jurídica, caracteriza o inadimplemento absoluto, mas também a prestação que ainda pode ser fáticamente realizada pelo devedor, mas já não mais representa nenhuma utilidade para o credor.
Para simplificar a nossa análise, mister consultarmos os estudos do professor Agostinho Alvim, que, de forma brilhante, unificou os critérios para se determinar o inadimplemento absoluto. Assim podemos usar o único critério da impossibilidade da prestação, mas observando a impossibilidade da ótica do credor, ou seja, a prestação não é mais possível de ser recebida, seja por impossibilidade fática ou legal de realização da prestação ou pela perda de interesse do credor. Assim, podemos dizer, embasados no art. 956 do Código Civil de 1916, bem como no art. 395 do Código de 2002, que a impossibilidade deve ser encarada como um impossibilidade de receber, por parte do credor.
2.4. Violação positiva do contrato
Pode-se definir a violação positiva do contrato como o inadimplemento decorrente do descumprimento culposo de dever lateral, quando este dever não tenha uma vinculação direta com os interesses do credor na prestação (Jorge Cesa Ferreira da Silva).
Vale lembrar que em nosso ordenamento, muitos dos danos proveniente da violação positiva do contrato poderiam ser compreendidos dentro da cláusula geral de responsabilidade civil extracontratual, consubstanciada no art. 159 do Código Civil. Entretanto, quando ao deslocar o espectro da violação dos direitos laterais para o campo extracontratual, estaríamos privados de lançar mão de figuras como a resolução contratual e a exceção de contrato não cumprido, sendo necessário o ajuizamento de uma demanda reparatória toda vez que ocorresse uma infração desse tipo por parte do devedor.
Finalmente, resta-nos acrescentar que na maioria dos casos de ocorrência de violação positiva do contrato, os danos daí provenientes podem ser capazes de resolver o contrato, pois aviltam substancialmente os interesses do credor; bem como apenas ensejar perdas e danos, mantendo-se o vínculo obrigacional principal.
* Acadêmico de Direito da UFSC