CADE – Limites da intervenção estatal
Kiyoshi Harada*
Como se verifica do inciso IV do art. 1º da CF, o regime econômico adotado é o da livre iniciativa. Esse princípio é reafirmado no Capítulo I do Titulo VII, que cuida dos princípios gerais da atividade econômica, enumerados nos inciso I a IX do art.
O princípio da livre iniciativa, porém, não é absoluto, sofrendo restrições por outros princípios relacionados à função social da propriedade, à defesa do consumidor, à defesa do meio ambiente etc., além da evidente necessidade de preservar a livre concorrência entre os agentes econômicos.
Contudo, pode-se afirmar que o conceito de livre iniciativa que se pode extrair da Carta Política pressupõe necessariamente a prevalência da propriedade privada na qual se assentam a liberdade de empresa, a liberdade de contratação e a liberdade de lucro. São os marcos mínimos que constituem os alicerces do regime econômico privado, ou seja, do regime de produção capitalista submetido ao poder estatal, nos termos e nos limites do art. 174 da CF:
‘Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado’.
Dois dos instrumentos de intervenção na economia estão nesse artigo: elaboração de leis de combate ao abuso do poder econômico e de proteção ao consumidor; e o poder de polícia incluindo os incentivos e o planejamento, este meramente indicativo para o setor privado. Os incentivos são implementados por meio das agências financeiras oficiais de fomento, dentre os quais o BNDES, o BB e a CEF. O terceiro e último instrumento interventivo do Estado é a assunção direta da atividade econômica nas duas hipóteses referidas no art. 173 da CF: quando necessária aos imperativos de segurança nacional e quando houver relevante interesse coletivo, nos termos da lei.
A intervenção estatal na economia pressupõe a existência de uma infra-estrutura adequada capaz de captar, analisar e interpretar a conjuntura econômica do momento, projetando seus reflexos a curto, médio e longo prazos para auxiliar o Estado na tomada de decisões econômicas. Do contrário, acabaria por fazer uma intervenção atabalhoada que mais destruiria do que construiria uma sadia política econômico-financeira do Estado.
O CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica surgiu como principal órgão repressor ao abuso do poder econômico, a fim de preservar o princípio da livre concorrência, evitando a dominação de mercados relevantes de bens e serviços (truste e cartel). Ele é sediado em Brasília, com jurisdição em todo o território nacional. Foi criado pela Lei nº 4.137/62 e passou a ser regido pela Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994, constituindo-se em uma autarquia federal, vinculada ao Ministério da Justiça e atuando em sintonia com a Secretaria de Direito Econômico desse Ministério.
O Plenário do CADE é composto de Presidente e seis Conselheiros nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovados pelo Senado Federal, para um mandato de dois anos, permitida a recondução. Atuam junto ao CADE a Procuradoria chefiada pelo Procurador Geral, e representante do Ministério Público Federal designado pelo Procurador Geral da República.
A principal atribuição do CADE é a de decidir sobre a existência de infração à ordem econômica e em caso positivo, ordenar providências que conduzam à cessação dessa infração.
Assim, todo ato de concentração do mercado relevante de bens ou serviços, compra ou fusão que altera a participação de uma empresa no mercado acima de determinado percentual ( em geral 20% do mercado relevante), excluída a expansão resultante da atuação eficiente do agente econômico, deve ser submetido ao crivo do CADE. Este poderá entender que haverá dominação de mercado e determinar o desfazimento da compra ou fusão de empresas como no caso da Nestlé e da Autolatina, respectivamente.
Até aí tudo bem. O CADE estará agindo legitimamente como órgão repressor ao abuso do poder econômico, preservando o regime de livre concorrência no qual se assenta a livre iniciativa eleita pela Carta Política. Contudo, duas questões surgem: a inexistência de prazo fixado para decidir e a ausência de instância recursal.
A primeira diz respeito ao prazo para decisão do CADE, que não está disciplinado no Capítulo III, concernente ao julgamento, artigos
É certo que o prazo de encerramento da instrução do feito depende de cada caso concreto, a desaconselhar a fixação de seu prazo legal. Por isso, a própria Lei nº 9.784/99, que estabelece normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Federal direta e indireta, limita-se a fixar o prazo de até 30 dias para decisão, a contar do encerramento da instrução do processo. Porém, é certo que a demora excessiva do CADE em alguns casos, respaldado em suas normas internas, atenta contra o princípio da segurança jurídica e prejudica a atividade empresarial com reflexo em suas inúmeras áreas de atuação.
É preciso encontrar uma alternativa para morosa decisão do CADE, introduzindo um processo de consulta prévia pelo interessado, instruído de prova pré-constituída quanto à inexistência de óbice legal na operação pretendida. Dever-se-ia fixar um prazo legal razoável para as averiguações necessárias, dentro do qual a decisão deveria ser tomada.
A segunda questão reside no art. 50 da Lei 8.884/94, que não admite recurso no âmbito do Executivo contra decisão do CADE.
Ora, dispõe o art. 56 da Lei nº 9.784/99, em caráter de norma geral que ‘das decisões administrativas cabe recurso, em face de razões de legalidade e demérito’ . O art. 57, por sua vez, prescreve que ‘ o recurso administrativo transitará no máximo por três instâncias administrativas, salvo disposição diversa’.
Da interpretação conjugada desses dois dispositivos conduz, necessariamente, à existência obrigatória de pelo menos duas instâncias a possibilitar o recurso assegurado. Outrossim, a Constituição Federal assegura aos litigantes, em processo judicial ou administrativo o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (art. 5º, LV).
Essas duas questões estão a merecer providências legislativas para preservar o princípio da segurança jurídica, bem como a transparência e a credibilidade do CADE, livrando-o de pressões ou ingerências políticas ao sabor de cada caso concreto submetido a sua apreciação. Já houve tentativa de sua transferência para o âmbito do Ministério da Fazenda, o que seria um retrocesso, já que aquele Ministério não é exatamente um órgão vocacionado para conferir efetividade aos valores e aos princípios que norteiam a ordem jurídica.
SP, 25.10.04
* Professor de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
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