A violência contra a mulher
Maria Berenice Dias*
Não basta a revolução feminina haver marcado este século. O significativo avanço das mulheres em várias áreas e setores não consegue encobrir a mais cruel seqüela da discriminação: a violência doméstica.
Ainda que o momento não comporte uma análise mais acurada sobre as causas de o amor gerar dor, é inquestionável que a ideologia patriarcal ainda subsiste, e leva o homem a se sentir proprietário do corpo e da vontade da mulher e dos filhos. Essa errônea consciência de uma situação de poder é que assegura o suposto direito de o macho fazer uso de sua superioridade corporal e força física sobre a fêmea.
Ao homem sempre coube o espaço público, e a mulher foi confinada nos limites do lar, no cuidado da família. Isso enseja a formação de dois mundos: um, de dominação, externo, produtor; o outro, de submissão, interno e reprodutor. A essa distinção estão associados os papéis ideais de homens e mulheres: ele provendo a família, e ela cuidando do lar, cada um desempenhando a sua função. Os padrões de comportamento instituídos distintamente para homens e mulheres levam à geração de um verdadeiro código de honra. A sociedade outorga ao varão um papel paternalista, que chancela a exigência de uma postura de passividade. As mulheres acabam recebendo uma educação diferenciada, pois necessitam ser mais controladas, mais limitadas em suas aspirações e desejos. Por isso o tabu da virgindade, a restrição ao exercício da sexualidade e a sacralização da maternidade. Ambos os universos, ativo e passivo, distanciados mas dependentes entre si, buscam manter a bipolaridade bem definida: ao autoritarismo corresponde o modelo de submissão.
A evolução da Medicina, com a descoberta de métodos contraceptivos, bem como as lutas emancipatórias levaram ao surgimento de um novo perfil feminino, que acabou impondo a redefinição do modelo ideal de família. A mulher, ao integrar-se no mercado de trabalho, saiu para fora do lar, cobrando do varão a necessidade de assumir responsabilidades dentro de casa. Essa mudança acabou por provocar o afastamento do parâmetro preestabelecido, gerando um clima propício ao surgimento de conflitos.
Nesse contexto é que transborda a violência, que tem como justificativa a cobrança de possíveis falhas no cumprimento ideal dos papéis de gênero. Quando um não está satisfeito com a atuação do outro fora do modelo, surge a guerra dos sexos, e cada um dos envolvidos usa suas armas: eles, os músculos; elas, as lágrimas.
As mulheres, por evidente, levam a pior, tornando-se vítimas da violência masculina.
Acostumada a realizar-se exclusivamente com o sucesso de seu par e o pleno desenvolvimento de seus filhos, não consegue, a mulher, encontrar em si mesma o centro de gratificação, o que gera um profundo sentimento de culpa que a impede de usar a queixa como forma de fazer cessar a agressão. É que, em seu íntimo, se acha merecedora da punição, por haver desatendido as tarefas que lhe são afeitas como a rainha do lar.
O medo, a dependência econômica, o sentimento de inferioridade, a baixa auto-estima, decorrentes da ausência de pontos de realização pessoais, sempre impuseram à mulher a lei do silêncio. Raros os casos em que se encorajam a revelar a agressão ocorrida dentro do lar.
Somente a partir da conscientização de que o novo modelo de família deve-se basear na mútua colaboração e no afeto é que se poderá chegar à tão almejada igualdade e, quiçá, ao fim da violência.
* Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS
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