Direito Penal

O Supremo Tribunal Federal e a Lei dos Crimes Hediondos – Mais uma Inconstitucionalidade!

Por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal concedeu, durante sessão extraordinária realizada no dia 27 de junho de 2012 o Habeas Corpus nº. 111840 e declarou incidentalmente a inconstitucionalidade do parágrafo 1º do artigo 2º da Lei nº. 8.072/90, com redação
dada pela Lei 11.464/07, o qual prevê que a pena por crime hediondo (inclusive tráfico de drogas) será cumprida, inicialmente, em regime fechado. O
julgamento teve início em 14 de junho de 2012 e, naquela ocasião, cinco Ministros se pronunciaram pela inconstitucionalidade do dispositivo: Dias Toffoli
(relator), Rosa Weber, Cármen Lúcia Antunes Rocha, R icardo Lewandowski e Cezar Peluso. Em sentido contrário, se pronunciaram os Ministros Luiz Fux, Marco
Aurélio e Joaquim Barbosa, que votaram pelo indeferimento da ordem. Na última sessão, em que foi concluído o julgamento, os Ministros Gilmar Mendes, Celso
de Mello e Ayres Britto acompanharam o voto do relator, Ministro Dias Toffoli, pela concessão do Habeas Corpus e para declarar a
inconstitucionalidade do parágrafo 1º. do art. 2º. da Lei nº. 8.072/90. De acordo com o entendimento do relator, o dispositivo contraria a Constituição
Federal, especificamente no ponto que trata do princípio da individualização da pena (artigo 5º., inciso XLVI).

Como se sabe, a chamada Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº. 8.072/90[1]) traz emseubojo uma disposição de caráter processual/penal (relacionada com a
própriaexecução da pena), quenão se compatibiliza com a ConstituiçãoFederal: a obrigatoriedade inicial do cumprimento da pena no regime fechado (art. 2º.,
II e seu § 1º.). A norma é inconstitucional porque obriga que o condenado pelocrimehediondo cumpra a penaemregime inicialmente fechado, o que, além de
umabsurdo jurídico-penal, também afronta a Constituição, especialmente o seu art. 5º., XLVI, quetrata da individualização da pena. Entendemos que a
individualização da pena engloba, nãosomente a aplicação da pena, mastambém a suaposteriorexecução, com os benefíciosprevistos na Lei de ExecuçãoPenal
(art. 112, Lei nº. 7.210/84). Observa-se que o art. 59 do CódigoPenal, que estabelece as balizaspara a aplicação da pena, prevê expressamenteque o Juiz
sentenciante deve prescrever “o regimeinicial de cumprimento da penaprivativa de liberdade”, o que indica, induvidosamente, que o regime de
cumprimento da pena é parteintegrante do conceito “individualização da pena”. Assim, não podemos admitirque, a priori, alguém seja condenado a cumprir a
suapena obrigatoriamente emregime inicialmente fechado, vedando-se absolutamentequalquer possibilidade de se iniciar o cumprimento da pena no regime
semi-aberto ouaberto, ferindo, inclusive, as apontadas finalidades da pena: a prevenção e a repressão.

Como ensina Luiz Luisi, “
o processo de individualização da pena se desenvolve emtrêsmomentoscomplementares: o legislativo, o judicial, e o executório ouadministrativo .” (grifonosso). Explicitando esteconceito, o mestregaúchoensina: “
Tendo presente as nuanças da espécieconcreta e uma variedade de fatoresquesão especificamente previstas pelaleipenal, o juiz vai fixarqual das penas é
aplicável, se previstas alternativamente, e acertar o seuquantitativoentre o máximo e o mínimo fixado para o tipo realizado, e inclusivedeterminar o modo de suaexecução
.”(…) “Aplicada a sançãopenalpelaindividualizaçãojudiciária, a mesma vai serefetivamente concretizada comsuaexecução.” (…) “
Esta fase da individualização da pena tem sido chamadaindividualizaçãoadministrativa. Outros preferem chamá-la de individualização executória. Esta denominação parece mais adequada, pois se trata de matéria regida peloprincípio da
legalidade e de competência da autoridadejudiciária, e que implica inclusive o exercício de funções marcadamente jurisdicionais
.”(…) “Relevante , todavia no tratamento penitenciário emque consiste a individualização da sançãopenalsão os objetivosquecomela se pretendem alcançar. Diferente será
estetratamento se ao invés de se enfatizar os aspectos retributivos e aflitivos da pena e suafunção intimidatória, se porcomofinalidadeprincipal da
sançãopenal o seuaspecto de ressocialização. E, vice-versa.
” E conclui o autor: “
De outrolado se revela atuante o subjetivismo criminológico, posto que na individualizaçãojudiciária, e na executória, o concreto da pessoa do delinqüente tem importânciafundamental na sançãoefetivamente
aplicada e no seumodo de execução
.”[2] (grifosnossos).

Assim, não restando dúvidasque o início de cumprimento da pena é parteintegrante da individualização da pena, afigura-se inconstitucional aquele
“dispositivohediondo”.

A respeito, veja-se a lição de Luiz Vicente Cernicchiaro: “
A Constituição, no art. 5º., XLIII, registrou tratamento especial a quatro delitos. Tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o
terrorismo e os definidos como crimes hediondos. Atente-se para as restrições: inafiançabilidade e vedação de graça ou anistia. A lei ordinária, então,
poderia, como fez, arrolar, definir os crimes hediondos. Norma, evidentemente, restritiva, de interpretação limitada. A Lei nº. 8.072/90, entretanto,
foi além, acrescentando, repita-se, no art. 2º., parágrafo primeiro, que a pena será cumprida integralmente em regime fechado. Com isso, sem dúvida,
afetou o sentido material da pena! Como atrás registrado, a sanção tem antecedente: conduta reprovável, previamente definida e finalidade: restituir o
condenado ao convívio social. Prevalece o interesse público de obter-se a ressocialização do delinqüente.
(…)
O cumprimento da pena, em regime inteiramente fechado, afronta a finalidade da pena que visa a readaptação social. Só se aprende a viver em sociedade
vivendo na sociedade!
”[3]

Segundo o profesor peruano, Luis Miguel Reyna Alfaro, “
la individualización judicial de la pena a imponer, es uno de los más importantes aspectos que deben ser establecidos por los tribunales al momento de
expedir sentencia. Sostienen por ello con absoluta razón ZAFFARONI/ ALAGIA/ SLOKAR que la individualización judicial de la pena debe servir para
´contener la irracionalidad del ejercicio del poder punitivo`. Este proceso de individualización judicial de la pena es ciertamente un proceso distinto
y posterior al de determinación legal de la misma que es realizado por el legislador al momento de establecer normativamente la consecuencia jurídica.
Esta distinción es importante porque nos permite marcar la diferencia –a la que recurriremos posteriormente- entre ´pena abstracta` y ´pena concreta`.
La primera está relacionada a la pena determinada legalmente por el legislador en el proceso de criminalización primaria, mientras la segunda se
refiere a la pena ya individualizada por el operador de justicia penal, dentro del proceso de criminalización secundaria. Adicionalmente, ésta
distinción ´pena abstracta- pena concreta` sirve para comprender que el proceso de individualización judicial de la pena es un mecanismo secuencial que
pasa, en primer lugar, por establecer cuál es la pena establecida por el legislador para, en segundo lugar y sobre esos márgenes, establecer la
aplicable al caso concreto y la forma en que la misma será impuesta. (…) Como se indicó anteriormente, el proceso de individualización
judicial de la pena debe necesariamente encontrarse vinculado a los fines de la pena, lo que obliga a introducirnos al inacabable debate sobre el fin
de la pena.
”[4] (grifo nosso).

Neste mesmo sentido, Rodríguez Devesa afirma que “
pueden distinguirse tres fases en el proceso de determinación de la pena aplicable: individualización legal; individualización judicial e individualización penitenciaria. ”[5] Grifo nosso.

Esqueceu-se novamenteque o modeloclássico de JustiçaPenal, fundado na crença de que a penaprivativa de liberdade seria suficientepara, porsisó, resolver a
questão da violência, vem cedendo espaçoparaumnovomodelopenal, estebaseado na idéia da prisãocomoextrema ratio e quesó se
justificaria paracasos de efetivagravidade. Emtodo o mundo, passa-se gradativamente de uma políticapaleorrepressiva ou de hard control, de cunhoeminentemente simbólico (consubstanciada em uma série de leis incriminadoras, muitas das quais eivadas comvícios de
inconstitucionalidade, aumentando desmesurada e desproporcionalmente a duração das penas, inviabilizando direitos e garantiasfundamentais do homem,
tipificando desnecessariamente novascondutas, etc.) para uma tendência despenalizadora.

Como afirma Jose Luis de la Cuesta, “
o direito penal, por intervir de uma maneira legítima, deve respeitar o princípio de humanidade. Esse princípio exige, evidentemente, que se evitem as penas cruéis, desumanas e degradantes (dentre as quais pode–se contar a pena de morte),
mas não se satisfaz somente com isso.
Obriga, igualmente, na intervenção penal, a conceber penas que, respeitando a pessoa humana, sempre capaz de se modificar, atendam e promovam a sua
ressocialização
: oferecendo (jamais impondo) ao condenado meios de reeducação e de reinserção
.” (grifo nosso, na tradução de Consuelo Rauen)[6].

Hoje, aindaque o nossosistemapenal privilegie induvidosamente o encarceramento (acreditando, ainda, na função dissuasória da prisão), o certo é que a
tendência mundial é no sentido de alternativizar estemodeloclássico, pois a pena de prisãoemtodo o mundopassapor uma crisesem precedentes. A idéia
disseminada a partir do século XIX segundo a qual a prisão seria a principalresposta penológica na prevenção e repressão ao crime perdeu fôlego,
predominando atualmente “uma atitudepessimista, quejánão tem muitas esperançassobre os resultadosque se possa conseguircom a prisão tradicional
(Cezar Roberto Bittencourt).

Por fim, resta-nos enfrentar a questão da aplicação desta decisão à luz dos princípios que regem a aplicação da lei no tempo. De logo, ressalvamos que o
art. 2º., parágrafo primeiro da referida lei, apesar de norma processual, tem um nítido e indissociável caráter penal, razão pela qual é norma processual
penal material (mista ou híbrida). Trata de matéria processual (regime de cumprimento de pena, execução penal), mas também diz respeito a direitos
fundamentais dos acusados e dos condenados, previstos constitucionalmente.

Esta matéria relativa a normas híbridas ou mistas, apesar de combatida por alguns, mostra-se, a nosso ver, de fácil compreensão.

Com efeito, o jurista lusitano e Professor da Faculdade de Direito do Porto, Taipa de Carvalho, após afirmar que “
está em crescendo uma corrente que acolhe uma criteriosa perspectiva material – que distingue, dentro do direito processual penal, as normas
processuais penais materiais das normas processuais formais
”, adverte que dentro de uma visão de “
hermenêutica teleológico-material determine-se que à sucessão de leis processuais penais materiais sejam aplicados o princípio da irretroactividade da
lei desfavorável e o da retroactividade da lei favorável
.”[7]

Taipa de Carvalho explica que tais normas de natureza mista (designação também usada por ele), “ embora processuais, elas são-no também plenamente materiais ou substantivas.”[8]

Informa, ainda, o mestre português que o alemão Klaus Tiedemann “
destaca a exigência metodológica e a importância prática da distinção das normas processuais em normas processuais meramente formais ou técnicas e
normas processuais substancialmente materiais
”, o mesmo ocorrendo com o francês Georges Levasseur.[9]

Por lei penal mais benéfica não se deve entender apenas aquela que comine pena menor, pois “
en principio, la retroactividad es de la ley penal e debe extenderse a toda disposición penal que desincrimine, que convierta un delito en
contravención, que introduzca una nueva causa de justificación, una nueva causa de inculpabilidad o una causa que impida la operatividad de la
punibilidad, es dicer, al todo el contenido que hace recaer sobre la conduta
, sendo necessário que se tenha em conta uma série de outras circunstâncias, o que implica em admitir que “ la individualización de la ley penal más benigna deba hacerse en cada caso concreto, tal como ensina Eugenio Raul Zaffaroni. (grifo nosso)[10].

Ainda a propósito, veja-se a lição de Carlos Maximiliano: “ Quanto aos institutos jurídicos de caráter misto, observam-se as regras atinentes ao critério indicado em espécie determinada. (…) “
O preceito sobre observância imediata refere-se a normas processuais no sentido próprio; não abrange casos de diplomas que, embora tenham feição
formal, apresentam, entretanto, prevalentes os caracteres do Direito Penal Substantivo; nesta hipótese, predominam os postulados do Direito Transitório
Material
.”[11]

Comentando a respeito das normas de caráter misto, assim já se pronunciou Rogério Lauria Tucci: “
Daí porque deverão ser aplicadas, a propósito, consoante várias vezes também frisamos, e em face da conotação prevalecente de direito penal material
das respectivas normas, as disposições legais mais favoráveis ao réu, ressalvando-se sempre, como em todos os sucessos ventilados, a possibilidade de
temperança pelas regras de direito transitório, – estas excepcionais por natureza
.[12]

Outra não é a opinião de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho: “
Se a norma processual contém dispositivo que, de alguma forma, limita direitos fundamentais do cidadão, materialmente assegurados, já não se pode
defini-la como norma puramente processual, mas como norma processual com conteúdo material ou norma mista. Sendo assim, a ela se aplica a regra de
direito intertemporal penal e não processual.
”[13]

Destarte, quanto ao início do cumprimento do regime de pena, após esta decisão, o apenado terá direito ao benefício (a princípio, pois será necessário
aferir-se quanto ao seu “merecimento”), que nada obstante não ter sido proferida quando do controle concentrado de constitucionalidade, teve efeito (ou
deveria tê-lo) erga omnes.[14]

Também mutatis mutandis, concordamos com João José Leal e Rodrigo José Leal, para quem “
ao reconhecer – mesmo que de forma incidental – a inconstitucionalidade da norma proibitiva da progressão de regime, prevista na LCH, o STF garantiu o
direito dos condenados por crime hediondo a postular a obtenção deste benefício penal, após o cumprimento de mais de um sexto da pena
”, razão pela qual “
a nova norma contida no art. 2º., § 2º., da LCH deve ser aplicada tão-somente aos crimes hediondos e seus assemelhados praticados a partir da vigência
da Lei nº. 11.464/2007. Em conseqüência, o condenado por crime desta natureza, praticado antes da vigência desta lei, tem o direito à progressão de
regime prisional após o cumprimento de 1/6 da pena.
”[16]

Neste sentido, o Ministro Joaquim Barbosa concedeu uma liminar a um acusado de portar drogas. Ao analisar o pedido feito no Habeas Corpus nº. 91360, o Ministro concedeu liberdade a paciente condenado a um ano e oito meses de reclusão. De acordo com o Ministro, “
pela nova lei de entorpecentes, o livramento condicional deve ocorrer após cumpridos dois terços da pena (art.44, parágrafo único da Lei 11.343/2006) e
a progressão de regime, conforme art. 2º, §2º da Lei 8.072, com a redação dada pela Lei 11.464 de 2007, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 da pena se
primário o réu
”, disse. O relator explicou que esta última alteração legislativa não pode retroagir para alcançar o delito, em tese, cometido pelo jovem, pois o fato,
segundo a sentença, teria ocorrido em 26 de outubro de 2006, “antes, portanto, de estar em vigor legislação mais gravosa”. Assim, se a legislação
anterior fosse aplicada, o condenado poderia progredir de regime ao cumprir 1/6 da pena imposta, conforme o artigo 112 da Lei de Execução Penal, ou seja, “ no caso em exame, já faria jus à progressão”. Fonte: STF (1º./06/2007).

Em outra oportunidade, ao julgar o Habeas Corpus (HC) 92709, por unanimidade, os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal concederam ordem
de ofício para que um condenado por crime hediondo, seja transferido para o regime semi-aberto.Como a defesa não havia feito esse pedido no Superior
Tribunal de Justiça, os ministros votaram pelo arquivamento da ação. O relator, Ministro Carlos Ayres Britto, afirmou, porém, que as informações recebidas
do juiz de execução criminal de Presidente Prudente (SP) confirmam a alegação da defesa, de que a condenação ocorreu antes da vigência da Lei 11.464/2007,
que disciplina a progressão de regime para crimes hediondos.O relator explicou que votava pela concessão da ordem, de ofício, para evitar a aplicação de
lei penal posterior, que é mais severa para o condenado. A Lei 11.464/2007 determina que a progressão de regime só pode ser concedida depois de cumprido
dois quintos da pena, enquanto a Lei de Execuções Penais era mais benéfica e determinava que devia ser cumprido um sexto. Segundo Ayres Britto, o
entendimento de que se deve afastar a aplicação de lei penal posterior mais severa já é pacífico na Corte. Fonte: STF.

O Superior Tribunal de Justiça também assim decidiu:


SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – EMENTA: REGIME. PROGRESSÃO. LEI MAIS BENÉFICA. Ao paciente foi deferida a progressão de regime pelo juiz da vara de
execução penal. Contra essa decisão, o Ministério Público interpôs agravo em execução e o Tribunal a quo cassou aquela decisão ao argumento de que a
progressão deveria ser analisada sob os critérios da Lei n. 11.464/2007. Nesse contexto, o Min. Relator advertiu que este Superior Tribunal vem
entendendo que a inovação trazida pela referida lei, por ser evidentemente mais gravosa, não deve retroagir para prejudicar o réu, considerando correta
a decisão do juiz que aplicou ao caso o art. 112 da Lei de Execuções Penais (com a redação dada pela Lei n. 10.792/2003). Diante disso, a Turma negou
provimento ao agravo
.” (AgRg no HC 96.226-SP, Rel. Min. Nilson Naves, julga! do em 29/4/2008).


STJ – RHC Nº. 21.055 – 6ª TURMA – REL. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA – J. 17.05.07 – PUBL. 04.06.07 – RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 21.055 – PR
(2007?0061930-0) – RELATORA: MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA – EMENTA:
RECURSO EM HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. PROGRESSÃO DE REGIME PRISIONAL. CRIMES HEDIONDOS. INCONSTITUCIONALIDADE DA VEDAÇÃO AO CUMPRIMENTO PROGRESSIVO
DA PENA. EXIGÊNCIA DE LAPSO TEMPORAL NÃO PREVISTO NA LEGISLAÇÃO PÁTRIA. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. ADVENTO DA LEI N.º 11.464?07. LAPSOS
TEMPORAIS MAIS GRAVOSOS. APLICAÇÃO EXCLUSIVA AOS CASOS SUPERVENIENTES.1. Reconhecida a inconstitucionalidade do art. 2º, § 1º da Lei n.º 8.072?90, na
sua antiga redação, não pode o magistrado exigir lapso distinto do previsto na legislação pátria para a progressão de regime, sob pena de ferir-se o
princípio da legalidade.2. Com o advento da Lei n.º 11.464?07, a progressão de regime prisional aos condenados pela prática de crimes hediondos é
permitida após o cumprimento de 2?5 da pena, em se tratando de réu primário, ou 3?5, nos casos de reincidência, lapsos aplicáveis somente aos casos
supervenientes à sua vigência, em razão do maior rigor.3. Recurso provido.

Do voto condutor, lemos o seguinte:

“(…)
A progressão de regime aos condenados pela prática de crimes hediondos passou a ser regulada pela Lei n.º 11.464, de 29 de março de 2007, que
estabeleceu o lapso temporal de 2?5 da pena, tratando-se de réu primário, e 3?5 da pena, no caso de reincidente. Todavia, a novel legislação é
aplicável somente aos casos supervenientes à sua publicação, por dispensar tratamento mais severo aos condenados pela prática de crimes hediondos que,
até então, em razão da decisão do Plenário do Supremo Tribunal Federal, na sessão de 23?02?2006 (HC n.º 82.959?SP), que declarou a
inconstitucionalidade incidental do art. 2º, § 1º, da Lei n.º 8.072?90, eram submetidos ao lapso temporal previsto no artigo 112, da Lei de Execuções
Penais, sendo o caso do paciente. Aplicável, portanto, ao recorrente o lapso de 1?6 da pena para a satisfação do requisito objetivo temporal para a
progressão de regime.Ademais, a decisão tomada pelo juízo monocrático fere o princípio da legalidade, previsto no art. 5º, XXXIX, da Constituição
Federal e no art. 1º do Código Penal. Ante o exposto, dou provimento ao recurso para que o Juízo das Execuções Criminais analise, de acordo com os
preceitos da Lei de Execuções Penais, o cumprimento dos requisitos objetivos e subjetivos pelo paciente, para a obtenção da progressão de regime.

Para Jayme Walmer de Freitas, tratando-se “
de lex gravior ou novatio legis in pejus, não pode retroagir consoante princípio da irretroatividade da lei mais
severa (CF, art. 5º, XL). Não importa o momento processual, ou seja, se processo julgado definitivamente ou não, há de se ter em conta que as normas
atinentes à fase de execução da pena têm nítido caráter penal, de modo que a nova lei alcança somente os crimes hediondos e equiparados cometidos a
partir da data de sua publicação
.”[16]

Idêntico entendimento foi tomado, em decisão monocrática, pelo Ministro Gilmar Mendes, na Medida Cautelar nº. 92.477-8/SP. Nesta decisão, o Ministro deixou
consignado o seguinte:

“(…)
No presente writ, alega-se, em síntese, constrangimento ilegal decorrente da aplicação da legislação mais rigorosa ao paciente, a saber: as disposições
da Lei nº 11.464/2007. No caso concreto, vislumbra-se, ao menos em tese, possível violação ao princípio constitucional da irretroatividade da lei penal
mais gravosa (Constituição Federal, art. 5o, inciso XL). Isto porque, dos documentos acostados aos autos pelos impetrantes, verifica-se que, tanto o
fato criminoso, quanto a prolação da sentença condenatória, ocorreram em momento anterior à vigência da Lei no 11.464/2007. É dizer, ao momento da
condenação, o cumprimento da pena cominada pelo Juízo de origem submetia-se ao regime estabelecido pela antiga redação do § 2º., do art. 2º., da Lei
nº. 8.072/90, o qual, por sua vez, estabelecia como requisito objetivo para a concessão do benefício da progressão de regime prisional o cumprimento de
1/6 (um sexto) da pena. Ressalvado melhor juízo quando da apreciação de mérito, constato a existência dos requisitos autorizadores da concessão da
liminar pleiteada (fumus boni juris e periculum in mora). Ante os fundamentos expostos, defiro o pedido de medida liminar para
afastar, no caso concreto, a aplicação do artigo 2º., § 2º., da Lei nº. 8.072/90, alterado pela Lei nº. 11.464/2007, de modo a garantir ao paciente que
o lapso temporal exigido para a sua progressão de regime seja de 1/6 (um sexto). Nessa extensão do deferimento, caberá ao juízo de primeiro grau
avaliar se, na espécie, o paciente atende, ou não, aos requisitos para obter o referido benefício. Após, abra-se vista ao Procurador-Geral da República
(RI/STF, art. 192).Publique-se.Brasília, 17 de setembro de 2007.”[17]

Em outra oportunidade, o Ministro Carlos Ayres Britto concedeu liminar no Habeas Corpus 93724, no Supremo Tribunal Federal, reconhecendo que, conforme o
entendimento da Corte, a Lei 11.464/2007, ao disciplinar a progressão de regime para os delitos hediondos, estabeleceu critérios mais rigorosos do que
aqueles definidos no art. 112 da LEP. “
Pelo que ante a garantia constitucional da irretroatividade da lei penal mais gravosa (inciso XL, do art. 5º da CF), a nova lei é de se aplicar apenas
a fatos praticados após a sua vigência
”, afirmou.

Rômulo de Andrade Moreira é Procurador-Geral de Justiça Adjunto para Assuntos Jurídicos na Bahia. Foi Assessor Especial da Procuradoria Geral de Justiça e Coordenador do Centro de
ApoioOperacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS,
na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pelaUniversidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). EspecialistaemProcessopelaUniversidade Salvador – UNIFACS (Curso
então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da AssociaçãoBrasileira de Professores de
CiênciasPenais e do InstitutoBrasileiro de Direito Processual. Associado ao InstitutoBrasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim. Integrante, por quatro
vezes, de bancas examinadoras de concursopúblicoparaingresso na carreira do MinistérioPúblico do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de
pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), Praetorium (MG), IELF (SP) e do Centro de Aperfeiçoamento e Atualização Funcional do Ministério Público da Bahia.
Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal”, “Comentários à Lei Maria da Penha” (este em coautoria com Issac Sabbá Guimarães), ambas
publicadas pela Editora Juruá, 2010 (Curitiba) e “A Prisão Processual, a Fiança, a Liberdade Provisória e as demais Medidas Cautelares – Comentários à Lei
nº. 12.403/11”, 2011, Porto Alegre: Editora LexMagister, além de coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal”, publicado pela
Editora JusPodivm, 2008 (estando no prelo a 2ª. edição). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

Notas:

[1] A respeito deste diploma legal, Alberto Silva Franco afirma que ele, “na linha dos pressupostos ideológicos e dos valores consagrados pelo Movimento da
Lei e da Ordem, deu suporte à idéia de que leis de extrema severidade e penas privativas de alto calibre são suficientes para pôr cobro à criminalidade
violenta. Nada mais ilusório.” (Crimes Hediondos, São Paulo: Revista dos Tribunais, 4ª. ed., 2000, p. 97).

[2] Os Princípios Constitucionais Penais, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, pp. 37 e segs.

[3] Escritos em Homenagem a Alberto Silva Franco, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 290.

[4] “La individualización judicial de la pena. Especial referencia al artículo 46 CP peruano”, encontrado no site www.eldial.com – 13 de junho de 2005.

[5] Apud Nicolas Gonzalez-Cuellar Serrano, “Proporcionalidad y Derechos Fundamentales en el Proceso Penal”, Madri: Editorial Colex, 1990, p. 30.

[6] “Pena de morte para os traficantes de drogas?”, publicado no Boletim da Associação Internacional de Direito Penal (Grupo Brasileiro), ano 1, nº. 01
(maio de 2005), p. 04.

[7] Sucessão de Leis Penais, Coimbra: Coimbra Editora, págs. 219/220.

[8] Ob, cit., p. 220.

[9] Idem.

[10] Tratado de Derecho Penal, Parte General, I, Buenos Aires: Editora Ediar, 1987, págs. 463 e 464.

[11] Direito Intertemporal, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955, p. 314.

[12] Direito Intertemporal e a Nova Codificação Processual Penal, São Paulo: José Bushatsky, Editor, 1975, 124.

[13] O Processo Penal em Face da Constituição, Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 137.

[14] É o chamado “controle difuso abstrativizado”, expressão do Professor Fredie Didier Júnior, in “Transformações do Recurso Extraordinário” – Aspectos
polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins. Teresa Wambier e Nelson Nery Jr. (coordenadores), São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006,
pp. 104-121 (“A decisão sobre a questão da inconstitucionalidade seria tomada em abstrato, passando a orientar o tribunal em situações semelhantes.”).
Neste sentido, é a lição de Luís Roberto Barroso: “A verdade é que, com a criação da ação genérica de inconstitucionalidade, pela EC nº 16/65, e com o
contorno dado à ação direta pela Constituição de 1988, essa competência atribuída ao Senado tornou-se um anacronismo. Uma decisão do Pleno do Supremo
Tribunal Federal, seja em controle incidental ou em ação direta, deve ter o mesmo alcance e produzir os mesmos efeitos. Respeitada a razão histórica da
previsão constitucional, quando de sua instituição em1934, já não há mais lógica razoável em sua manutenção. (…) Seria uma demasia, uma violação ao
princípio da economia processual, obrigar um dos legitimados ao art. 103 a propor ação direta para produzir uma decisão que já se sabe qual é!” (“O
Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro”, São Paulo: Ed. Saraiva, 2004, p. 92). Aliás, ao proferir o seu voto neste habeas corpus, o Ministro
Gilmar Mendes reconheceu a inconstitucionalidade do dispositivo, mas com eficácia ex nunc, lastreando-se exatamente no art. 27 da Lei nº. 9.868/1997 (que
trata de matéria relativa ao controle concentrado de constitucionalidade). Esta matéria está sendo debatida por meio de uma Reclamação (Rcl 4335) em que a
Defensoria Pública da União contesta decisão do Juiz da Vara de Execuções Penais de Rio Branco (AC) que indeferiu o pedido de progressão do regime da pena
a dez condenados por crimes hediondos, contrariando decisão do Supremo sobre o assunto. Pedido de vista do Ministro Ricardo Lewandowski suspendeu o
julgamento da ação em que o Plenário do Supremo Tribunal Federal analisa a eficácia de dispositivo constitucional que imputa ao Senado Federal a
competência para dar eficácia geral a lei declarada inconstitucional pelo STF (inciso X do artigo 52 da Constituição). Para o Juiz da Vara de Execuções, a
decisão do Supremo Tribunal Federal só teve efeito imediato para as partes envolvidas no processo. Para ele, a eficácia geral da decisão [eficácia erga
omnes] só passará a valer quando o Senado Federal publicar resolução suspendendo a execução da norma considerada inconstitucional pelo Supremo, como prevê
a Constituição. Quatro dos 11 ministros do STF já se posicionaram sobre a matéria. Gilmar Mendes e Eros Grau disseram que a regra constitucional tem
simples efeito de publicidade, uma vez que as decisões do Supremo sobre a inconstitucionalidade de leis têm eficácia normativa, mesmo que tomadas em ações
de controle difuso. “Não é mais a decisão do Senado que confere eficácia geral ao julgamento do Supremo. A própria decisão da Corte contém essa eficácia
normativa”, afirmou Gilmar Mendes. “A decisão do Senado é ato secundário ao do Supremo”, disse Eros Grau. Os Ministros Sepúlveda Pertence e Joaquim Barbosa
refutaram a solução proposta por Mendes e Grau. Mesmo afirmando que o dispositivo em debate é “obsoleto”, Pertence não concordou em reduzir a uma “posição
subalterna de órgão de publicidade de decisões do STF” uma prerrogativa à qual o Congresso se reservou. Segundo ele, as sucessivas Constituições
promulgadas no Brasil têm mantido o dispositivo. Sepúlveda defendeu a utilização, no caso, da súmula vinculante, criada pela Emenda Constitucional nº
45/04, da Reforma do Judiciário. “[Essa questão] se resolve com maior segurança jurídica e clareza com o instituto da súmula vinculante”, ressaltou. O
Ministro Joaquim Barbosa classificou como anacrônico o posicionamento do juiz da Vara de Execuções de Rio Branco. “O anacronismo é do juiz. Portanto, do
próprio Poder Judiciário”, afirmou. Ele defendeu a manutenção da leitura tradicional do dispositivo constitucional em discussão, pois ele “é uma
autorização ao Senado, não uma faculdade de cercear decisões do Supremo”. Os quatro Ministros concordam que os dez condenados têm o direito de terem seus
pedidos, de progressão do regime de cumprimento da pena, analisados, individualmente, pelo juiz de execuções criminais. Gilmar Mendes e Eros Grau
concederam o direito ao deferir a reclamação. Sepúlveda Pertence e Joaquim Barbosa concederam habeas corpus de ofício aos condenados, já que o primeiro
indeferiu a reclamação e segundo não conheceu do pedido. Fonte: STF (19/04/2007).

[15] Crime Hediondo e Progressão de Regime Prisional: A Nova Lei nº. 11.464/2007 à Luz da Política Criminal, Repertório de Jurisprudência IOB –
Agosto/2007, nº. 16/2007, Vol. III, p. 492.

[16] FREITAS, Jayme Walmer de. Crimes hediondos: uma visão global e atual a partir da Lei 11.464/07. Disponível na internet www.ibccrim.org.br 06.09.2007.

[17] No mesmo sentido, Amilton Bueno de Carvalho e Rafael Rodrigues da Silva Pinheiro Machado, “Lei 11.464/2007 no tempo: sua ir(retroatividade)”, Revista
Brasileira de Ciências Criminais, nº. 67 – 2007, p. 133.

Como citar e referenciar este artigo:
MOREIRA, Rômulo de Andrade. O Supremo Tribunal Federal e a Lei dos Crimes Hediondos – Mais uma Inconstitucionalidade!. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2012. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/o-supremo-tribunal-federal-e-a-lei-dos-crimes-hediondos-mais-uma-inconstitucionalidade/ Acesso em: 24 nov. 2024