O enforcamento de Saddam
Francisco César Pinheiro Rodrigues*
Qual a “seriedade” de nossos sentimentos e julgamentos? Quase nenhuma. Flutuamos, em nossas opiniões, ao sabor dos ventos. E não se trata tanto de volubilidade de caráter. Mesmo gente “firme” muda de opinião, conforme o que lhe transmitem os sentidos, notadamente a visão — não a razão mais profunda. Se o “firme como uma rocha” não altera seu parecer, muitas vezes é porque não quer ver abalada sua reputação. Mudou por dentro mas só poderá dizer isso em doses homeopáticas. Fica mais “decente” assim. Se trocar bruscamente de opinião como ficarão aqueles, bem mais “borboletas”, que dele dependem psicologicamente? É por isso que Margaret Thatcher dizia que o político não pode ficar no meio da estrada. Não pode ser meio de direita e meio de esquerda. Se agir desse modo, “justo em excesso” — expressão minha, não da Thatcher —, será atropelado pelos veículos das duas faixas. “Não podemos contar essa besta…”, murmura o colega de partido. Isso porque somos noventa por cento emoção.
Conhecem aquelas birutas nos aeroportos? Somos muito parecidos, coisas e gente. Não só eu, todo mundo. Marionetes das impressões que chegam ao nosso computador de carne, principalmente as visuais. Isso significa que se fossem diferentes as imagens recebidas — meras imagens — nossa opinião seria talvez oposta. Não é estranhável isso nos orgulhosos e “lógicos” campeões da evolução biológica e cerebral do nosso planeta? Afinal, raciocinamos com a mente ou com olhos e ouvidos? Um choro de mulher muda muita coisa…
Sempre fui favorável à pena de morte, embora não disposto a mover uma palha para que ela vigorasse no Brasil. No “olho por olho” há uma certa proporcionalidade, embora primária, e um efeito intimidativo, útil, quando a pena é cumprida à risca. Ocorre que é uma pena que passou de moda, soa como peça de museu de horrores. Parecia-me, no entanto, que a aversão que ela desperta origina-se da circunstância da execução ter sido filmada e exibida, sem o “contraditório visual” da cena da vítima sendo esfaqueada, estuprada, martelada, queimada viva ou morta a cacetadas, conforme o caso. Achava que se aparecesse na televisão, juntamente com a cena da execução, a cena — com atores profissionais — da vítima apavorada e ensangüentada, a “biruta” da indignação mudaria totalmente de direção. Aplaudiríamos até mesmo a forca.
Saddam foi enforcado. Parecia ser um decisão justa, pois matou milhares. Todavia, quando assisti — houve uma filmagem não autorizada —, pela internet, seus momentos finais, praticamente mudei de opinião sobre a pena capital. E depois de duas horas mudei de novo após ler a lista de suas maldades e ver fotos de crianças e mulheres curdas “gasificadas”. Meus olhos mandavam em mim mais do que a razão. Decidiam por mim? Alguns anos atrás, assistindo parcialmente um júri, ouvi um eloqüente criminalista, Waldir Troncoso Peres, perguntar aos jurados — sem esperar resposta, claro — se algum deles já havia entrado na casa de um ladrão. Referia-se, presumo, ao ambiente de miséria de um ladrãozinho barato e não agressivo, com família para sustentar. Patrão mais inflexível que entre, por acaso, na moradia do ascensorista de sua empresa talvez sinta imediata vontade de lhe aumentar o salário. Só porque entrou na casa. É o olho, é o olho…
Admitido que a condenação de Saddam foi “legal” — embora melhor teria sido se julgado por um tribunal internacional, sem juízes inimigos — foi-lhe negado, censuravelmente, o pedido de morrer fuzilado. Ele queria morrer como soldado. Bush poderia ter satisfeito seu desejo, pedindo ou pressionando o governo iraquiano nesse sentido. Alegou — a meu ver falsamente —, que a legislação local determinava que a execução previa a morte por enforcamento, e “dura lex, sed lex”. Falsamente, porque Bush não é assim tão fanático na obediência às leis, notadamente as internacionais. Não acredito que a justiça iraquiana teria coragem de negar esse pedido dos Estados Unidos, que praticamente montaram o tribunal, escolheram e treinaram seus juízes, todos presumíveis inimigos do réu. Não consta que sunitas figurassem entre os julgadores. Além do mais, leis podem ser mudadas. A Bush interessava mais um Saddam enforcado que fuzilado. Só que, pelo simples detalhe do enforcamento, notadamente filmado, mais soldados americanos morrerão, vitimados por explosões oriundas do ódio exacerbado. A generosidade do vencedor para com o vencido, mesmo com fins obviamente políticos, sempre gera simpatia. Mas é preciso alguma inteligência para perceber isso.
Faço aqui um confissão um tanto exótica: quando Saddam foi retirado do buraco em que se refugiara — estratégia nada inteligente, alguém acabaria revelando o segredo… — senti a tentação de me oferecer como mais um dos advogados que integrariam seu grupo de defesa. Como advogado — sou inscrito na OAB — poderia, sem infração da ética profissional, me oferecer como defensor, desde que não cobrasse pelo serviço. E como eu pensaram centenas de advogados do mundo inteiro, medalhões e ilustres desconhecidos em busca de “vitrine”. No meu caso, buscava o “frisson”, a excitação de fazer parte de um julgamento de tal envergadura. Naquela época, uma das filhas de Saddam estava na Síria. Obtendo o e-mail da embaixada ou consulado do Iraque na Síria seria, provavelmente, possível fazer chegar a ela meu oferecimento, mais um entre centenas. Evidentemente, eu teria que me limitar a sugerir algumas abordagens de defesa, pois não falo árabe e mesmo meu inglês é suficiente apenas para ler, não para falar fluentemente. Se conseguisse evitar a pena de morte já seria uma vitória excepcional, porque Saddam realmente cometeu muitos crimes.
Se tivesse participado — mera elocubração — da equipe de defesa, teria sugerido as seguintes atenuantes:
a) Saddam teve uma infância difícil, onde não faltaram espancamentos, vindos de um padrasto meio sádico que não lhe poupava varadas. Isso deforma o caráter de um menino, com reflexo na idade adulta;
b) o Iraque é um Estado artificial, “montado” pelos ingleses após a 1a.Guerra Mundial, sem nenhum respeito à natureza dos três grupos que integram o país: xiitas, curdos e sunitas. Argumentaria, mera comparação, que se tivesse sido criado, pela força, no início do século XX, um “país” composto de ingleses, franceses e alemães, certamente apenas um punho de ferro, extremamente temido e implacável, conseguiria governar essa salada indigesta, impedindo que esses três povos se digladiassem continuamente;
c) o Iraque era — ainda é, os americanos constatam isso ainda hoje — uma mistura incontrolável de antagonismos fomentados pela grande mestra das discórdias, insolucionáveis pela argumentação lógica: a religião. Qualquer coisa você pode discutir neste planeta, exceto a religião. O que contraria nossa religião é apenas desrespeito ou insulto. Saddam — eu diria aos juízes —, só poderia manter “ordem na casa”, essa casa artificial, pelo temor e uso efetivo da força bruta, caso desobedecido;
d) diria que quando os curdos tentaram matá-lo, em uma visita, Saddam raciocinou que se não “revidasse”, “punisse” fortemente o atentado, estaria desmoralizado, estimulando indiretamente novos atentados contra sua pessoa. Por isso, não conseguindo saber exatamente quem participara do grupo conspirador, mandou matar número indeterminado de pessoas;
e) diria, ainda, que no Oriente Médio, essa forma — para os ocidentais hoje injusta, não quando da II Grande Guerra —, de punir pessoas indeterminadas — quando não se sabe exatamente quem praticou um atentado —, é ainda hoje prática rotineira. É o caso dos israelitas, embora em menor escala, que, quando vítimas de um atentado terrorista palestino, revidam bombardeando e demolindo casas que apenas presumem abrigar terroristas, ou amigos, ou parentes de terroristas, mesmo que nesses revides morram inúmeros civis inocentes. Eu diria que essa é a forma usual, embora primitiva, de se “fazer justiça” no Oriente Médio. E Saddam era um governante nessa região, governando um país especialmente complicado, mesmo para a região. Pensa-se, no Oriente Médio, que se não houver um “castigo exemplar” para cada atentado — pouco importando a “culpa” individual dos fulminados —, estimularemos novos atentados, seremos rotulados de “fracos”.
Saddam não era flor que se cheirasse. Faltava-lhe um ingrediente indispensável ao grande estadista: um certo grau de bondade, ou empatia, mesmo usada com moderação, como tem que ser em assuntos de Estado. Sua única virtude era a coragem, que tinha, ou aprendera a ter, em excesso. Subiu à posição política máxima não por sua inteligência, que era bem mediana, mas por sua bravura, que exibiu até o último momento, recusando o capuz e insultando o adversário. Valente até com a corda no pescoço. Fosse mais inteligente, teria pensado melhor antes de invadir o Kuwait. E, deposto, não teria se refugiado num buraco, em terreno tomado pelo inimigo. Talvez sua coragem — não fugindo do Iraque — tenha atrapalhado a já medíocre inteligência de que dispunha. Possivelmente, queria manter-se não muito longe do invasor, pretendendo liderar um movimento de resistência. Para isso precisava ficar por perto, mesmo numa toca. E essa coragem foi sua perdição.
Como se vê, até as virtudes precisam ser utilizadas com moderação. A própria esperteza, quando em excesso, prejudica, dizia Tancredo Neves. A coragem é uma virtude. Churchill dizia que a coragem é a mãe de todas as virtudes porque sem ela todas as demais virtudes não se manifestam. Com algumas operações plásticas, e vivendo em algum país árabe, Saddam poderia estar hoje vivo e fazendo o que mais gostava: brigar. No vasto frigir internacional dos ovos, e vistas as coisas no longo prazo, sua morte provavelmente ajudará na pacificação do mundo, embora, no curto prazo, acrescente algumas labaredas na já grande fogueira do Oriente Médio.
Fica aqui minha despedida ao hipotético e virtual ex-cliente que, no item bravura, merece o respeito já normalmente devido aos mortos.
(19-01-2007)
* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo. Website do autor: http://www.franciscopinheirorodrigues.com.br
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