Política

O lado perturbador das religiões.

O lado perturbador das religiões.

 

Francisco César Pinheiro Rodrigues*

 

 

Não se pode negar o lado benéfico das religiões. É, digamos, a “luz”, no plano íntimo, subjetivo. Fonte de esperança e conforto nas situações de desespero. Mais útil que qualquer Prozac, lítio e similares. Quando ninguém nos estende a mão, a de Deus está sempre disponível, bastando ter fé — seja a já existente de longa data, seja a só agora emergente, estimulada pelo perigo ou, mais raramente — a provar que nem sempre é interesseira — nos momentos de extrema felicidade. A mente humana sempre necessitou de um ombro amigo. É algo, suponho, neurológico, porque existiu em todos os agrupamentos humanos.

 

Mais comumente, é o perigo que predispõe à fé. Funciona como um chicote, expulsando da alma a propensão ao ceticismo. Principalmente nos tempos modernos, em que a ciência, a técnica e o conforto relativizam velhos legados religiosos propiciando uma certa sensação de segurança. Quanto mais insegurança, mais religião. Em época de desemprego e dificuldades as igrejas ficam lotadas. Para compensar, embora mais raramente, mentes maduras, rigorosamente científicas, sentem — apenas sentem, não se atrevendo a dar um nome — que há algo de “estranho”, inteligente e poderoso no universo, muito além da compreensão da mente mais objetiva.

 

Mesmo sob o ângulo estritamente social a religião tem, normalmente, imensa utilidade. Ainda não se conhece, estatisticamente, quantos crimes ou más-ações deixaram de ser cometidos por receio da desaprovação divina. Medo de Deus, não da polícia. Uma estatística dessas seria problemática porque os consultados não teriam a necessária franqueza. Como admitir, por exemplo, que já quis ver morto o cônjuge, ou pai, ou o concorrente que lhe causa inveja? Dizia Ruy Barbosa, o grande jurista do passado — é preciso esclarecer, sim, quem foi, pelo menos aos jovens — que o Código Penal cuida dos crimes públicos e a Religião dos crimes privados ( secretos, íntimos).

 

Reconhecida, aqui, a utilidade da crença religiosa, não se pode negar, porém, que o homem — esse grande deturpador —, tem, por vezes, utilizado mal, de boa ou má-fé, a grande força psicológica da religião. Psicológica, mas que pode se transformar em ações bélicas concretíssimas, transfigurando mandamentos em aço e sangue. Em algumas situações políticas é o caso de se perguntar se um pouco de ateísmo, ou de agnosticismo, ou de relativismo, ou de “nova leitura” de textos sagrados não seria muito mais útil à humanidade do que insistir na suposta infalibilidade de escrituras.

 

As considerações acima, embora talvez provoquem ranger de dentes nos donos da verdade espiritual — que sempre discordam raivosamente entre eles —, se aplicam ao atual conflito entre judeus e palestinos.

 

Vejamos, em linguagem imensamente simplificada, quase telegráfica, a raiz do referido conflito e sua problemática solução. A simplificação é perdoável e aconselhável, por vezes, quando o tema é extenso e complexo. Tratados políticos de grande profundidade tornam-se, por vezes, pouco úteis à coletividade porque cada argumento básico é rodeado de muitos detalhes, impedindo a percepção rápida do conjunto. Servem mais à geração seguinte do que à do autor. E, no caso em exame, é preciso estimular, já, essa percepção do conjunto para uma tomada de posição política. Daí a liberdade desta simplificação, que espero não ofender a inteligência do leitor.

 

A síntese é a seguinte:

 

Os judeus não abandonaram a Palestina porque quiseram, à maneira de turistas entediados. Foram expulsos. Houve duas “diásporas”. Na última, os romanos arrasaram Jerusalém. Os romanos — anotem bem, não os árabes palestinos. Espalhados pelo mundo, os judeus foram perseguidos “porque crucificaram Jesus” (um judeu). Uma justificação sem sentido porque os judeus que o — ou “O”, para os cristãos — condenaram à crucificação, preferindo salvar Barrabás, eram outras pessoas que não aqueles judeus que, séculos depois, se espalharam principalmente pela Europa. E ninguém pode ser punido por eventuais crimes de seus tataravôs. Nem isso, certamente, em linhagem direta de descendência.

 

Espalhados na Europa — fiquemos só nessa área geográfica — e não querendo perder sua fé e herança cultural, os judeus isolaram-se, “fecharam-se”, casando entre eles. Esse isolamento despertou suspeita e inveja, principalmente porque enriqueceram. Qualquer isolamento, inclusive o de indivíduos, é perigoso, atrai calúnias e difamações. Quando alguns deles quiseram se mesclar com os “goys” (não judeus), já não foram bem recebidos. E, pelo que sei, em certos períodos e países os judeus não podiam ser proprietários de terras. Não podiam ser agricultores. Tiveram, pois, que ganhar a vida no comércio, seja de mercadorias seja de moedas. Com isso foram aprendendo e dominando a arte dos negócios, das finanças, ramo mais rendoso que a agricultura (o Brasil que o diga). Príncipes e governantes, de olho na riqueza dos judeus, freqüentemente a eles devendo grandes somas, de vez em quando açulavam a população contra aquelas figuras facilmente distinguíveis, nos famosos “pogrons”, sempre um bom negócio para os saqueadores.

 

A partir de 1933, quando Hitler crescia em poder e não escondia suas ferozes intenções de “acabar com a raça” dos judeus, os líderes desse povo perceberam que negros horizontes se aproximavam. O campo de concentração de Dachau foi criado em 1933 e o de Buchenwald em 1937. Em 1938 foi criado o de Mauthhausen, na Áustria. Essas datas estão no livro de Vivian Forrester, “O Crime Ocidental”, pág.11.

 

Aí não dava para esperar mais. A desgraça era iminente. Convocada a Conferência de Évian, em julho de 1938, trinta e três países, reunidos pelos Estados Unidos, “deveriam se entender sobre a ampliação de suas quotas de imigração, para acolher os judeus vítimas da ideologia de Hitler” ( V. Forrester, mesmo livro, pág. 8). Os judeus queriam fugir do nazismo. Mas somente dois países ( Holanda e Dinamarca) aceitaram ampliar suas quotas de imigração de judeus. O apelo destes foi rejeitado por 31 países. Inclusive pelos Estados Unidos, que não quiseram alterar sua quota, embora insistindo para que outros países o fizessem. A Austrália desculpou-se dizendo que nunca conheceu problemas raciais (esqueceu-se dos seus aborígenes). A França afirmou que já estava “saturada”. Cada país deu sua desculpa. Segundo a mesma autora, Goebbels, ministro da propaganda nazista, dizia, no Conselho dos Ministros, de 12 de novembro de 1938: “É curioso constatar que os países cuja opinião pública se ergue a favor dos judeus sempre se recusam a acolhê-los. Dizem que eles são os pioneiros da civilização, os gênios da filosofia e da criação artística, mas quando se quer fazê-los aceitar esse gênios, fecham as suas fronteiras” (pág. 10 do livro). E Hitler ironizava: ”Se há algum país que julga não ter judeus suficientes, eu ficarei feliz em mandar-lhe todos os nossos” ( mesma página).

 

Em suma, ainda sintetizando, as grandes potências não quiseram acolher os judeus. Certamente não imaginavam que a perseguição chegaria ao nível tão brutal a que chegou, sem precedentes no mundo civilizado. Uma coisa é perseguir; outra, exterminar.

 

Aí ocorreu o Holocausto. Mesmo os que tentam negá-lo o fazem de maneira suspeita. Se foram seis milhões, ou menos, isso não desqualifica a expressão. Os campos de extermínio e as câmaras de gás são inegáveis, fotografados, documentados. Mas anotem novamente: que não foram os árabes palestinos que eliminaram os seguidores de Moisés.

 

Terminada a 2a. Guerra Mundial a opinião pública internacional viu com simpatia, e talvez até com um certo sentimento de culpa, a exigência judaica de um país próprio, finalmente um “lar”. A Inglaterra — que exerceu o menos daninho imperialismo mundial até hoje — propôs aos líderes sionistas uma área em Uganda, hoje fazendo parte do Kenya. Uma área situada em boa altitude, menos quente, mais tolerável para um povo acostumado a viver na zona temperada do planeta. Mas os sionistas, em sua maioria, não aceitaram, por motivos que hoje, comparativamente, parecem ridículos face à nuvem de ódio que paira sobre a Palestina. Não aceitaram porque havia muitos leões na região e havia também a proximidade de tribos Massai ( tinham lanças e flechas, porém não dinamite). Mas não aceitaram, principalmente, porque os textos — para eles sagrados — exigiam o retorno para a “terra prometida”. Tinha que ser a Palestina, Jerusalém. Aqui o lado “perturbador” referido no título deste artigo.

 

Ocorre que com uma ausência de quase dois mil anos — reitere-se, sem culpa dos árabes — a Palestina estava ocupada por estes últimos. O que fazer com eles? Ninguém se preocupou muito com o detalhe. Havia uma empolgação com a criação do Estado de Israel. Livros e filmes glorificavam o grande retorno (“Êxodus”) dos perseguidos. O governo inglês, realista, sensato, ainda tentou frear um pouco o afluxo de judeus porque sabia das limitações de terras férteis e da presença dos árabes palestinos. Mas não adiantou. O resultado foi o que vemos hoje: um conflito de décadas que aparentemente só será possível solucionar com a intervenção de um poder maior, internacional, que ainda não existe. Os judeus, vítimas da “diáspora”, tornaram-se autores da parcial “diáspora” palestina.

 

Para agravar o problema da demarcação das terras dos dois Estados, um problema apenas físico, geográfico, existe um novo complicador — o “perturbador” do título — : a fé. Os árabes muçulmanos também entendem que não podem abrir mão de Jerusalém. E dão seus motivos religiosos. E ambas as religiões são monoteístas. Como pode um único Deus, um único coração, ser dividido, tendo um ventrículo judeu e outro muçulmano?

 

Como se vê, as religiões, embora boas e úteis no plano íntimo, têm o seu lado perigoso, ameaçador, perturbador. Principalmente porque envolvem “área proibida”, interditada à discussão desapaixonada. Abordar criticamente qualquer religião equivale a tentar desarmar bombas que não explodiram — por enquanto, até que se tente desarmá-la.

 

Felizmente, parte da opinião pública de Israel não se deixa cegar pelos argumentos daqueles que querem ser celebrados, daqui a algumas décadas, como os grandes “estadistas” expansionistas do Estado de Israel. O diário israelense Haaretz , corajosamente, mostra-se crítico quanto à reação exagerada ao seqüestro recente de um único soldado israelense, Guilad Shilat. Note-se que mais de mil palestinos estão em prisões israelenses. Os árabes e parte do mundo se perguntam: um judeu vale mais que mil palestinos? Tropas israelenses destruíram pontes e usinas de energia elétrica, deixando 2/3 de Gaza no escuro. E seus aviões voam desafiadoramente sobre a residência do presidente da Síria, por imaginar que o presidente acolhe terroristas.

 

É impossível que não passe pela cabeça do governo israelita pelo menos a hipótese de que os poucos captores que seqüestraram o soldado estivessem agindo por conta própria. Em uma população que se sente massacrada sempre surgem grupos autônomos, impacientes, que não esperam reação oficial, governamental, ordens “para agir”. Talvez alguns ”falcões” do governo de Israel estejam dando graças a Deus pela existência desse seqüestro. Um excelente pretexto para mostrar sua força e garantir territórios.

 

O atual governo israelense cava, com suas reações excessivas, a própria sepultura em termos de respeito internacional. Os judeus sempre foram contra o preconceito racial, mas é o caso de se argumentar: se, no fundo, todos os seres humanos são iguais, essa igualdade também existiria entre o povo alemã, antes de 1945 — indiferente ao sofrimento judeu — e o povo israelense atual — indiferente ao sofrimento palestino? Se os alemães de então eram inerentemente “maus”, é o caso de se concluir que o preconceito racial deve permanecer, tem base, porque algumas raças seriam essencialmente “más”, ou “inferiores”, seja no corpo, na inteligência ou no caráter. Aí ficaria moralmente autorizada a perseguição de qualquer delas. Discordo desse raciocínio mas há nele uma certa lógica, embora moralmente inaceitável.

 

“Gangsters”, declarados ou disfarçados, não existem apenas no submundo. Infiltram-se também na política, no mundo sindical e noutras profissões. E, para piorar tudo, o lado fundamentalista das religiões serve-lhes como caldo de cultura facilitadora, onde proliferam como bactérias.

 

Para acabar com o conflito árabe-palestino seria preciso reformular a ONU, dar-lhe uma força que ainda não tem. Suprimir o poder de veto dos cinco “maiorais” do Conselho de Segurança. É um outro capítulo da infindável tragédia. Tragédia que nutre o ódio anti-americano e muito contribuiu para o onze de setembro, de triste memória. Se os Estados Unidos tivessem tratado os palestinos com o mesmo carinho com que tratam os judeus provavelmente as Torres Gêmeas ainda estariam de pé. Haja insensatez!

 

 * Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo. Website do autor: http://www.franciscopinheirorodrigues.com.br

 

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Como citar e referenciar este artigo:
RODRIGUES, Francisco César Pinheiro. O lado perturbador das religiões.. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/politica/o-lado-perturbador-das-religioes/ Acesso em: 22 nov. 2024