A imprensa e a preservação da fonte
Francisco César Pinheiro Rodrigues*
Questão que volta e meia retorna ao debate, e não só no Brasil, é a necessidade de preservação do anonimato da fonte que deu ao jornalista uma informação de grande relevância, geralmente denunciando deslizes de agentes públicos.
É óbvio que a liberdade de imprensa deve ser preservada e encarada com simpatia e respeito. O direito do público à informação — verdadeira, ou assim imaginada pelo seu autor, frise-se —, é essencial a toda democracia. Se esta se define como o governo do povo pelo povo, através de seus representantes, como, pergunta-se, o povo poderia controlar a condução de seu país sem saber como se comportam realmente seus representantes, em termos de interesse público? Quem o mantém informado é a imprensa, ou, ampliando o conceito, a mídia.
Mesmo as ditaduras ditas “esclarecidas”, “provisórias”, “bem intencionadas”, impostas “por necessidade urgente de salvação nacional” e que confiam numa futura absolvição da História, sabem, ou deveriam saber, que a verdade sempre acaba aparecendo. Assim sendo, não lhes conviria encobrir fatos politicamente relevantes, principalmente crimes de seus subordinados e que, cedo ou tarde, virão mesmo à tona. Ditadores “esclarecidos” — há quem diga que isso é contradição de termos — se inteligentes fossem, deveriam preferir o legado de uma reputação de “duros” — cortando inclusive na própria carne — em lugar de “mentirosos”. Afinal, mesmo os ditadores têm netos, que não gostariam de se envergonhar do avô.
Entretanto, todas as atividades humanas — sem exceção, por mais santa que pareça — trazem dentro de si, latente, um potencial para o mal ou, usando palavra menos forte, para o abuso. E a mídia não poderia ser a única exceção nessa regra. Ocorre que a mentira intencional, deslavada (não muito comum), ou a evidente leviandade podem incrementar de tal modo a vendagem de jornais e revistas que a perspectiva do lucro torna-se irresistível ao profissional ou empresário de imprensa imensamente ambicioso. Nesse momento pouco pesa a destruição moral da vítima se a perspectiva é de impunidade, ou quase isso. Principalmente quando a vítima já não tem boa fama. “Uma pedrada a mais, mesmo mentirosa, nesse pilantra, não fará muita diferença”. Mas faz, porque o “pilantra” pode comprovar a falsidade na justiça e depois posar de vítima, induzindo a crer que as demais acusações (ainda que verdadeiras) nada mais são que armações de inimigos políticos. Boa parte da opinião pública fica em dúvida, confusa, e acaba apoiando quem não devia apoiar. Quase toda verdade, incluindo a dos “pilantras”, acaba vindo à tona.
A calúnia e a leviandade na mídia têm, portanto, que ser combatidas. Não somente por ser tratar de uma questão de justiça mas porque seus efeitos nunca desaparecerão totalmente. Mesmo que a vítima consiga provar a falsidade da denúncia, a desmoralização, pelo menos parcial, torna-se fato consumado, legitimando a velha comparação com as penas de galinha espalhadas ao vento e que não podem ser recuperadas. O diminuto desmentido gráfico, em canto de página, ou a condenação patrimonial, obtida na justiça, não cobrem totalmente os prejuízos diretos e indiretos da falsidade. Alguma névoa venenosa permanece sobre a cabeça da vítima. A pressa ou impossibilidade física dos leitores no lidar com o vagalhão informativo que tenta afogá-lo diariamente é tal que se sair uma manchete dizendo que “o político, juiz ou empresário Fulano de Tal foi filmado saindo apressadamente do banco, após efetuar um saque de dez mil reais”, um alto percentual de leitores carimbará mentalmente o cidadão como sendo “desonesto”, ou “suspeito”. Pensará assim: “Se o nome desse camarada saiu no jornal, alguma coisa errada ele deve ter aprontado… Não há fogo sem fumaça…” E o saque poderia ser totalmente inocente.
Acontece que se é inerente ao repórter a missão de procurar notícias relevantes, principalmente sobre a administração pública, onde ele conseguiria tais informes? No palco administrativo, sim, mas também — ou principalmente — nos bastidores. Para conferir se há uma relação de verdade entre esses dois ambientes.
Por motivos óbvios — temores de toda natureza —, sem a promessa de preservação da fonte, o jornalista não conseguiria obter as informações mais relevantes. Os “podres” governamentais, assim como os “podres” privados, são praticados nas sombras. Como conciliar as necessidades de informar e a de preservar a reputação do homem público que pode, em tese, estar sendo vítima de uma fonte mentirosa?
Nesse dilema entre publicar a informação “bomba” e correr o risco de denegrir um inocente, é de grande valor a recomendação de Voltaire de que “a vantagem deve ser igual ao perigo”. Uma versão mais abrangente, filosófica, de que precisamos sempre agir com cuidado, porque do contrário pagaremos as conseqüências que, no caso, devem ser patrimoniais e proporcionais ao grau de dolo ou culpa. Se a “vantagem” ( do furo jornalístico leviano) é muito superior, financeiramente, ao “perigo” ( da obrigação de indenizar), é natural que o profissional caia na tentação de abusar. Daí o desprestígio das indenizações “tabeladas”, bem modestas, no punir os crimes de imprensa. Não pode haver um “teto” muito baixo de indenização porque o lucro da vendagem sensacionalista pode compensar a condenação.
Se o direito do jornalista de silenciar sobre a fonte de sua notícia for levado ao limite máximo, um mau profissional, um “ovelha negra”, pode se sentir tentado a inventar um escândalo, ou exagerar tremendamente um fato mínimo, conquistando certa notoriedade, com efusivos agradecimentos verbais e pecuniários do dono do veículo informativo.
Como conciliar, na difícil missão do jornalismo, os interesses da comunidade (beneficiada com a vigilância da imprensa) e os de todo cidadão (se inocente) de manter sua boa imagem?
A solução lógica, ideal, seria a de assegurar ao jornalista o direito de manter o segredo da fonte, se convicto de que a informação foi correta. Se, eventualmente, o jornalista verificou, depois de publicada a notícia, ter sido enganado pelo informante, parcial ou totalmente, decidiria soberanamente quanto à revelação do nome dele ao juiz, aí sem nenhum constrangimento de ética jornalística, porque nenhuma “fonte” de carne e osso, só porque é “fonte”, está acima do bem e do mal, isenta de responder pelos seus atos. Revelando a fonte, ambos seriam condenados conforme o grau de má-fé ou leviandade de cada um. Daí a recomendação de “checar” as informações mais “virulentas”, tanto quanto possível. Felizmente, a mídia não trabalha apenas com fatos políticos extremamente sensíveis, porque do contrário seria a profissão mais arriscada do mundo.
Se, entretanto, processado o jornalista, este está convicto que sua fonte foi veraz, é seu dever profissional e moral não revelar o nome do informante. E aí entraríamos em outro desdobramento jurídico, embora pouco comum, sobre a preservação da fonte.
Se o Ministério Público, ou outro órgão investigativo idôneo, “detonado” — termo vulgar mas expressivo — pela notícia, precisa ainda de certas informações complementares para a investigação da infração, ou formalização da denúncia penal, mas não as consegue amigavelmente do jornalista, teria o órgão acusador o direito de exigir judicialmente do jornalista os informes complementares necessários?
Penso que tem, até que se demonstre, doutrinariamente, o contrário. Afinal, a liberdade de imprensa visa, em última análise, proteger os interesses da comunidade, não a curiosidade doentia do público ou o crescimento financeiro das empresas jornalísticas ou de televisão. O Direito autoriza o sacrifício dos direitos à privacidade e boa reputação apenas atendendo ao bem maior, público, que seria a correção das falhas e punição dos culpados. Se o jornalista revela crimes de agentes governamentais e seus cúmplices privados, está aí implícito o dever da autoridade tomar alguma providência. Se a Polícia ou o Ministério Público não a tomam, essa omissão seria até criminosa. O povo diria: “E a polícia e o Ministério Público? Não vão tomam qualquer providência?”
Por vezes, sem informações complementares os órgãos da repressão estatal não têm como agir. A denúncia do Promotor, deve ser precisa na descrição dos fatos. Assim, estando a investigação em aberto, é direito da Polícia, ou do Ministério Público, exigir do jornalista denunciante os informes necessários, imprescindíveis, se a notícia publicada está incompleta e impossibilitando uma investigação suficiente para uma acusação formal
Nesse caso, jornalista, solicitado a prestar tais informes complementares, não pode simplesmente dizer ao delegado, ou ao promotor, que “ouviu o galo cantar mas não sabe onde”, e ficar por isso mesmo. A razão de não poder silenciar, sem maiores explicações, está na possibilidade, em tese, de o jornalista ter apenas inventado a história. Ele seria a “fonte” dele mesmo. Cobrado nos detalhes necessários ao início de uma ação penal, não é obrigado a revelar a sua fonte, mas dela deve exigir — reservadamente — o que for necessário ao procedimento estatal de repressão ao crime. Em suma, pedir ao informante que “complete o serviço”, que teria iniciado por amor ao país. A não se pensar assim estaria aberta a porta da irresponsabilidade.
Se, indo mais além, o jornalista, sinceramente, não sabe os detalhes exigidos pela investigação ou acusação estatal, e diz que sua fonte — ainda sem revelá-la — também não sabe (o que até pode ser verdade), cabe à justiça, caso por caso, verificar bem o que ocorreu, absolvendo ou condenando o jornalista e sua empresa, conforme a prova. Aí não há como formular uma regra geral de julgamento, porque são muitos os fatores
Finalmente, há que encarar com certa reserva a exigência do acusador público de ser mais municiado, pelo jornalista, com detalhes da infração para oferecer a denúncia. Em tese, apenas em remota tese — notadamente em regiões sob domínio de “coronéis” —, o acusador público pode estar apenas arranjando um pretexto para não provocar a ira de alguma poderosa figura pública.
* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo.
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