Sociedade

Como e Porque Todo Camburão tem um pouco de Navio Negreiro

Marcito Galvão da Luz [1]

Rosane Rezende Cazuza [2]

           

 

            Recentes investigações e legislações têm emergindo, disseminando maior visibilidade à diversidade étnica no Brasil. Um desses esforços tem sido a Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, a qual inclui no currículo oficial da Rede Escolar a temática da história da cultura Afro-Brasileira, recaindo especialmente nas disciplinas de História, Arte-Educação e Literatura. Entre educadores/as, as dificuldades em se encontrar materiais didáticos adequados têm sido grandes; o mesmo pode ser dito quando se pensa da ótica das políticas públicas.

Isso posto, o objetivo deste artigo é o de situar o escravismo no Brasil em perspectiva histórica; a seguir, discutir resultados de recentes pesquisas para apontar dois conjuntos de efeitos deste processo: a exclusão na distribuição da riqueza e evidencias de preconceito de cor e/ou raça. Por fim, defende a importância de se matizar tais resultados, dadas as implicações para as políticas públicas, o quefazer nas escolas e/ou para a construção da cultura política democrática.

           Comecemos por análise do processo escravagista brasileiro: a investida econômica e mercantilista do Brasil colonial e imperial, incentivada por Portugal e Inglaterra, incluiu decisivamente uma mercadoria: homens e mulheres em suas condições de escravos/as. Desenvolvendo o capitalismo, em seu caminho de exploração econômica produziu a submissão sociocultural dos povos dominados, configurando práticas imperialistas e opressivas.

Dentro desse interesse econômico, o continente africano passa a ser alvo de investidas, no período que vai da metade do século XVI à primeira metade do XIX, servindo de cenário para o transporte de milhares de homens e mulheres da África para o Brasil, transportando diferentes etnias, a diversidade cultural, de sistemas sociais, econômicos, políticos e religiosos. Nesse intenso comércio de escravos/as, muitos aspectos dos interesses de Portugal e de comerciantes brasileiros entravam em choque com as pressões inglesas, as quais se opunham ao tráfico de escravos/as africanos/as. Naturalmente, não por serem humanitários, mas apenas por interesses comerciais.

Estima-se que foram trazidos para o Brasil aproximadamente quatro milhões de africanos. Escravos/as estavam em toda parte na lavoura e nas cidades, dentro de casa, nas senzalas, fugidos/as no mato. Prestando serviços nas grandes cidades, como Rio de Janeiro e Salvador, vendendo água, comida, panelas, miçangas, badulaques; exercendo ofícios especializados ou ainda, como relata a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, em Negros Estrangeiros (1985), eram carregadores.

Carregavam desde as cadeirinhas, onde os brancos iam sentados aos barris com dejetos produzidos nas casas, que logo cedo,  às seis da manhã procissão de negros iam jogar no mar; ao cultivo da terra, plantação de alimentos e ao cozimento dos mesmos. Esteve dentro e fora da casa grande pescando, caçando, extraindo riquezas minerais do solo brasileiro, sem nunca ter desfrutado de qualquer especiaria que tenha extraído da terra, ou comido qualquer alimento que tenha plantado. Sustentou famílias sem poder viver com a sua ou constituir a sua própria família.

De acordo com Manolo Florentino (2005), a escravidão foi o modelo de relações econômicas e sociais com a maior estabilidade que o Brasil já teve. Assim viabilizou, para quem dele dependia, novos empregos como o de capitão do mato, caçadores de escravos e enriqueceu traficantes de escravos. Numa lista realizada em 1799, dentre as trinta e seis maiores fortunas da província do Rio de Janeiro, sete eram de traficantes, cujos lucros obtidos por eles superavam os de traficantes ingleses – registre-se que, na época, a Inglaterra era a “dona do mundo”.

Sem o trabalho escravo seria impossível preencher as necessidades de mão-de-obra requeridas pela produção colonial, nenhum homem livre exerceria tal função. Esse tem sido o argumento de Clóvis Moura; em História do Negro Brasileiro, mostra que

 

somente o trabalho escravo e não outro tipo de trabalho, mesmo compulsório e espoliativo poderia dar resultados compensatórios ao novo tipo de empresa que se estabeleceu no Brasil. Fora disto, o sistema global que regulava as relações metrópole-colônia entraria em crise ou colapso (MOURA, 1994, p. 39).

 

            Na prática, a escravidão foi uma categoria de trabalho criada para privilegiar o capital mercantil e garantir a utilização da terra para o capital e para a produção externa. O contato mais profundo do Brasil com a civilização ocidental começa diretamente sob o signo do colonialismo mercantilista, possibilitando a estruturação do latifúndio mercantil.

Quais foram as conseqüências desse processo? Ou, a partir da música d’O Rappa, tal como o título deste artigo sugere, como e porque todo camburão tem um pouco de navio negreiro? Pelo menos dois conjuntos de efeitos podem ser apontados. O primeiro deles foi e tem a ver com a economia e a herança histórica: se um dia o escravismo foi responsável por nossa economia, formas contemporâneas de escravismo ainda podem ser identificadas. A título de exemplos são o Quanto Vale ou é Por Quilo?, filme que, além de centrar-se no escravismo, questiona a lógica de funcionamento de Organizações Não-Governamentais; outro deles foi a coletânea publicada em 1999 pela Edições Loyola que, em parceria com a Comissão Pastoral da Terra, mapeia as modalidades existentes de escravismo e aponta soluções. Da mesma forma a Comissão Pastoral da terra tem publicado, anualmente, relatório em que atenção tem sido direcionada ao tema para o caso brasileiro, denunciando casos recorrentes de escravidão por endividamento.

Além disso, o fim processo de escravização levou à exclusão se pensarmos na divisão das riquezas. A tragédia é que esta situação até hoje persiste; em junho de 2004, o jornal Zero Hora fez reportagem a partir de dados disponibilizados pelo IBGE, pois foi a primeira vez que esta instituição relacionou seus resultados a partir da raça do/a entrevistado/a. Os resultados (Figura 1) foram os seguintes: nas seis principais regiões metropolitanas do Brasil, a renda média de brancos/as é o dobro; negros/as e pardos/as apresentaram maior vulnerabilidade à desocupação; a renda média de brancos/as empregados/as é o dobro da de negros/as e pardos/as, e a média de escolaridade para brancos/as ocupados/as é de mais 1,2 anos de estudos.

 

 

 


 

 

 

Figura 1 – Confira as Desigualdades

 

 

 

O segundo conjunto de efeitos está relacionado com aspectos culturais, especialmente o preconceito de cor e/ou raça. A partir dos resultados da Pesquisa Social Brasileira (PESB, 2002), o professor Alberto Carlos Almeida publicou A Cabeça do Brasileiro (2007). Com o objetivo de detectar evidências deste tipo de preconceito, o autor lançou mão de uma inovação metodológica: a evidência indireta, dado o pressuposto de que dificilmente as pessoas reconhecem o próprio preconceito. Através de oito fotografias, entrevistados/as tiveram a oportunidade de estabelecer relações com atributos positivos ou negativos. A principal conclusão é a de que existe preconceito contra pardos/as e pretos/as, a favor de brancos/as, desde que não sejam nordestinos/as.

No que diz respeito aos atributos, “ao contrário do que muitos poderiam imaginar, os pardos são mais malvistos que os pretos. São eles que detêm os menores percentuais em todos os atributos positivos” (2007, p. 227). Além disso, mostrou que a preguiça está associada mais a brancos do que a pardos e pretos. Observando os resultados atribuídos aos atributos negativos, a vantagem é de brancos/as, e mais uma vez pretos/as levam maior desvantagem. Também identificou que pardos/as estão associados à malandragem, ao crime e à desonestidade, e pretos/as com a pobreza e a exclusão. Outra relação explorada foi a relação entre as fotos e a profissão: “à medida que cai o status da profissão, ela se torna menos branca e mais parda e preta.. os pretos são vistos como os que ocupam profissões de ainda menor status do que pardos” (idem, p. 232).

            Enfim, os resultados evidenciados pelo professor Almeida clamam por relações entre a autopercepção de raça e os atributos positivos e negativos atribuídos pelos/as entrevistados/as, o que é tema para outro artigo. Talvez a contragosto de muitos/as, é preciso deixar claro o fato de que o preconceito de cor e/ou raça não é via de mão única, como se fosse um mecanismo maniqueísta utilizado por brancos/as contra pardos/as e negros/as. A superação das desigualdades, em sua relação com as políticas públicas e no quefazer pedagógico em escolas, também pode depender da necessidade de se matizar os resultados destas pesquisas se o objetivo não for apenas tentar inverter o sentido dos preconceitos ou reforçar a presença da cultura política autoritária.

 

 

Referências Bibliográficas

 

ALMEIDA, Alberto Carlos. A Cabeça do Brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2007. 2 ed.

CUNHA, Maria Manuela Carneiro da. Negros, Estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

FLORENTINO, Manolo. Tráfico, Cativeiro e Liberdade (Rio de Janeiro, XVII-XIX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

MOURA, Clóvis. Dialética Racial do Negro. São Paulo: Editora Anita Ltda., 1994.

VVAA. Trabalho Escravo no Brasil Contemporâneo. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

ZERO HORA. Desemprego Atinge Mais Negros e Pardos. Porto Alegre, 5 de junho de 2004.



[1] Marcito Galvão da Luz é pesquisador, mestrando em Ciência Política na UFRGS e Assessor Pedagógico junto ao Serviço de Educação de Jovens e Adultos (SEJA) na Capital da Solidariedade, Alvorada/RS. Para contato: marcitopoa@yahoo.com.br.

 

[2] Rosane Rezende Cazuza integra a equipe de Assessoria Pedagógica junto à Secretaria de Educação na Capital da Solidariedade, Alvorada/RS, e estuda no pós-graduação em História Africana e Afro-brasileira nas Faculdades Porto-Alegrenses. Para contato: rocazuza@hotmail.com.

Como citar e referenciar este artigo:
LUZ, Marcito Galvão da; CAZUZA, Rosane Rezende. Como e Porque Todo Camburão tem um pouco de Navio Negreiro. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/camnavnegre/ Acesso em: 30 dez. 2024