«No es por tanto irreverencia, disentir com la opinión de los grandes maestros» (David Lascano, «apud» Eulâmpio Rodrigues Filho, Compra e Venda de Imóveis e Ação Ex Empto, Porto Alegre, HS Editora/Notadez, 2007, 3ª ed., pág. 45).
Creio ser próprio o momento, para exame da proposta de alteração da Lei processual brasileira, que, como amiúde tem acontecido, vem com graves deformidades.
Permito-me, com a devida vênia, indicar observações que faço ao anteprojeto do CPC, quanto aos pontos em destaque, a seguir.
1) Parte geral, letra «h»
Explicitação exageradamente eloquente para colocar serviços de cartório nas mãos dos advogados.
Desburocratização cartorária através da definição mais clara dos atos ordinatórios praticados pelo escrivão.
Até aí, tudo bem. Definição clara dos atos cartoriais em prol da «desburocratização».
Mas, segue: «desburocratização …pela concessão aos advogados, da faculdade de promover a intimação pelo correio, do advogado da parte contrária, de testemunha, etc.»
Isto não caracterizaria, em rigor, desburocratização, na acepção jurídica, mas transferência de atividade cartorial ao advogado.
A linguagem é curiosa: «concessão ao advogado» da faculdade de fazer em seu escritório, o trabalho dos cartórios, numa forma de transplante da burocracia para o seu escritório.
Indaga-se: que forma de desburocratização seria essa, de tornar claros os atos de cartório e atribuição de funções não remuneradas ao advogado?
«j) Inclusão do Poder ao magistrado, permitindo-o, a seu critério, o chamamento de «amicus curiae», sem modificação de competência.
Comentário: em primeiro lugar, a expressão «amicus curiae» haveria de ser definida pelo legislador, para integrar o Código de Processo. Sem isso parece não se saber até o que fazer com semelhante novidade, vez que, a expressão, no vernáculo, em verdade, soa mal.
Chamamento pelo Juiz, pela inclusão de Poder?
Além disso, o anteprojeto visa a autorizar o emprego de um aforisma jurídico estampado em idioma morto, em descompasso com a letra do artigo 156 do CPC, que exige no processo o uso do vernáculo.
Realmente, a colocação dessa «cadência» no texto legal levará à necessidade de se traduzir a expressão latina, de interpretá-la e chegar à conclusão de que ela não estaria mais refletindo o pensamento antigo, e nem, qualquer pensamento.
Como se vê da obra Ato Jurídico, de Vicente Ráo, S. Paulo, Saraiva, 1979, 2ª ed., págs. 166 e seg.,
«44. Rafael Bielsa, em sua interessante monografia Los Conceptos Jurídicos y su Terminologia (2ª ed.) diz que os aforismos não nascem por geração espontânea, são, antes, como diria Ihering, precipitados da razão abonados pela experiência e, mantidos pela tradição, por serem concisos e elegantes, gravam-se facilmente nos espíritos propensos à síntese e à clareza dos conceitos (pág. 187). Contudo, o mesmo autor reconhece que ‘el primeiro que debe tener el aforismo es fundamento racional sólido y debe referir-se a um principio general o a uma regla particular. Su alcance lo dá la norma jurídica al qual se refiere. Naturalmente que nadie se limitará a citar um aforismo, ni intentará hacerlo prevalecer frente al derecho positivo, no solamente por no ser derecho el aforismo, sino porque em la evolución del derecho se han modificado algunos princípios antiguos, considerados poco menos que immutables, y tambien porque el aforismo no ha tenido funcción normativa sino quando se lo ha concretado en norma, ya positiva formal, ya consuetudinária com autoridad de ley’ (pág. 185).»
O Dr. Vicente Ráo, cit., explicita ainda, «ibidem»:
«De Ruggiero nos adverte que ‘na antiga escolástica e na prática do foro surgiram, aos poucos, inúmeros brocardos e aforismos jurídicos repetidos até hoje pelos práticos e considerados como expressões de regras fixas e princípios absolutos, – brocardos e aforismos que soam como provérbios de sabedoria jurídica, mas, na realidade, constituem perigosos instrumentos nas mãos dos juízes; e tendo, embora, a aparência de princípios gerais, deles um só não há que, como máxima geral, não seja falso».
Em conclusão, lembra-se que esse princípio travestido de pretensa regra positiva só terá como subsistir se se revogar o princípio da demanda, com isso descaracterizando o Estado democrático de Direito.
2 – Procedimentos especiais
«b) Exclusão dos seguintes procedimentos especiais: ação de depósito, … ações possessórias, …»
Ressalto que por ocasião da publicação do Código Civil de 2002, percebi que nas regras do Direito das Coisas não figuram as possessórias de força nova e nem de força velha. Ao perceber isso vaticinei que logo viria alguma mudança no CPC, fazendo desaparecer a possessória de força nova espoliativa ou esbulhativa.
«Não deu outra».
O desaparecimento da possessória de força nova parece um projeto destinado a dar guarida aos propósitos do MST, tanto que há pouco apareceu u’a mensagem dos chamados «direitos humanos», antevendo Lei dando força aos invasores de terra, equiparando a ocupação ilegal à posse do justo possuidor.
O direito à propriedade e, como corolário, o direito à posse traduzem garantia constitucional, não podendo ser identificados com direitos outros, comuns, que se buscam perante a Justiça.
Afigura-se atentatório a esse direito firmado pela Carta Magna, colocar a possessória em meio aos procedimentos comuns, com mera possibilidade remota e sujeita à «discrição», de uma antecipação de tutela, que nada tem a ver com liminar possessória (v. meu artigo Antecipação de Tutela em vez de Liminar Possessória, Revista Jurídica, Porto Alegre, vol. 381, pág. 59).
Na eventualidade de a possessória deixar de ser de procedimento especial, necessário será o valimento do desforço pessoal (ainda em vigor), para se assegurar o exercício da posse justa.
A exclusão das possessórias do procedimento de rito especial implica na extinção do mecanismo fixado nos arts. 926, 927 e 928 do CPC.
Com essa providência o Brasil perde a sua característica de país civilizado, fica desonerado da necessidade do respeito às coisas alheias para asseguramento da PAZ SOCIAL, transformando-se oficialmente em país aberto à insegurança, numa espécie Haiti.
Eventual extirpação assim, sem qualquer critério científico, dos arts. 926, 927 e 928, este de caráter cogente, do CPC em vigor, seria providência não só injurídica, atentatória à ordem pública, como um retrocesso ao império da desordem.
«c) nas ações que tenham por objeto pagamento de condenação de quantia em dinheiro, o Juiz, sempre que possível, poderá prover, além da imposição de multa, outras medidas indutivas, coercitivas ou sub-rogatórias.»
Isto faz evocar a Lei das XII Tábuas, que nem Nero e nem Calígula ousaram reeditar. Verdade que os bancos e os emprestadores de dinheiro vêm sendo aquinhoados amiúde com criação legal de medidas violentas para terem seus créditos, mais juros astronômicos satisfeitos, a exemplo do «depósito» previsto no próprio Código Civil, para o caso da alienação fiduciária (art. 1.363, «caput», final).
Norma aberta, essa, de conteúdo indeterminado, exequível casuisticamente, atacável, em tese, até via habeas-corpus.
Medidas indutivas, coercitivas, sub-rogatórias?
Se o Estado confessa-se impotente, a solução não seria pela violência, mas pelo aperfeiçoamento da sua imagem através da prática da austeridade.
«l) Permitir penhora parcial de bens atualmente considerados impenhoráveis, estabelecendo critérios para tanto, tornando-se flexível a impenhorabilidade.»
Consabido que a impenhorabilidade é o espinho atravessado nas gargantas dos bancos e assemelhados.
Pretende-se com disposição de semelhante jaez, destruir uma tardia conquista da raça brasileira.
Veja-se que o homem nasce em algum lugar do mundo, há de cumprir seu tempo de vida, buscando aperfeiçoar-se. Uns conseguem ser vitoriosos e outros simplesmente sobrevivem.
É humano, é racional, admitir que o ser humano tenha a garantia de u’a morada com conforto superior ao que ordinariamente se dispensa aos animais?
Por outro lado, é correto viver o homem 24 horas por dia agoniado, com receio de perder sua morada, urbana ou rural, ou o seu fogão de duas bocas em favor de credores tipo gafanhotos, por falta de habilidades naturais, e muitas vezes em razão de um ambiente econômico sempre sacudido por medidas alopradas, adotadas pelo Estado através de se dizentes sábios, especializados na mecânica da vida social, e que o cidadão nem conhece?
Flexibilizar a impenhorabilidade parece projeto de quem carece de sensibilidade, é tripudiar sobre a natureza humana, é revelar indiferença para com o ser, é atentar contra a obra de Deus.
«q) Eliminar a necessidade hoje prevista no CPC de duas hastas públicas…»
Mais uma vez trabalha-se em prol do exequente, contra cujos atos nada é previsto, permitindo venda a preço inferior à avaliação, numa sofreguidão que pode reduzir os gastos e aumentar lucros do judiciário, mas que não faz justiça.
Demais, não há como conciliar a idéia de se eliminar o sistema de duas hastas públicas podendo o bem ser vendido a qualquer preço «logo na primeira» hasta pública.
3) Recursos
«d) Fixação ampliativa dos honorários, a cada recurso não provido (Sucumbência recursal).
A maior obra sobre Responsabilidade Processual que conheço é a «infra» citada, escrita pelo Prof. Fernando Luso Soares.
Retrata o Direito europeu sobre essa responsabilidade, inclusive quanto a interposição de recursos, e não é notado um caso sequer, de referência esse novel instituto denominado «sucumbência recursal» a envolver pagamento de honorários advocatícios «continuados».
Em todos os casos versados há apenas a figura do pagamento das custas.
Todavia, encontramos referência a isso no Direito soviético caduco, quando em vigor o regime comunista, mas nem tão exagerado assim, face o sentido proporcional que a doutrina parece revelar – «5% daquela parte da demanda».
De fato, a obra Derecho Processual Civil Soviético, escrito sob direção de M. A. Gurvich, traduzido para o espanhol por Miguel Lubán, publicado pelo Instituto de Investigaciones Jurídicas de la Universidad Nacional Autónoma de México, México, 1971, págs. 150 e segs., em Capítulo escrito por S. V. Kuriliov, traz as seguintes informações relativas ao tema «sucumbência recursal»:
«Aparte del derecho e la indemnización de los gastos judiciales efectuados, la parte, en cuyo favor se hubiera dictado un fallo judicial, tiene derecho a la indemnización de los gastos referentes a la remuneración de su representante, que haya participado en el litigio, cuya cuantía no puede exceder del 5% de aquella parte de la demanda, respecto a la cual se hubiera dictado una sentencia en su favor (nota 1 del art. 46 del Código de Procedimiento Civil de la RSFSR), y tratándose de las demandas de índole no patrimonial, de conformidade con la tarifa estabelecida, del pago de la gestión por los abogados de asuntos civiles de índole no patrimonial. En la República Soviética Socialista de Ucrania los gastos referentes a la ayuda jurídica se indemnizan a la parte, en la cuantía que se establece por las reglas sobre la consulta jurídica (art. 58 del Código de Procedimento Civil de la República Soviética Socialista de Ucrania).
«Conforme al mismo sistema, se indemnizan los gastos referentes a la tramitación del litigio ante el Tribunal de Segunda Instancia, así como los gastos para la remuneración del representante, que haya participado en la segunda instancia. Conforme al artículo 176 del Código de Procedimiento Civil, el Tribunal debe por su propia iniciativa, al pronunciar el fallo y efectuar la distribución de gastos judiciales. La omisión del Tribunal, respecto a ello, puede corregirse, conforme al artículo 181 del mismo Código, mediante el pronunciamiento de un fallo complementario.»
Objetivamente, tem-se que nesse ponto acredita-se que o Direito brasileiro imaginado está sendo encarado para momentos de «prognósticos», como ramo da Matemática; e não somente isto, mas voltado para soluções axiomáticas, absolutas, a exigirem dos advogados condições para trabalharem com Ciências Exatas, dominando mesmo a «redução ao absurdo», sem margem para raciocinar diversamente com relação aos julgadores, ou seja, capazes de, semanalmente, acertar na Mega Sena!
Conforme lembra Carlo Furno, «A legitimidade dimana da incerteza» (Negócio de Fijación y Confesión Extrajudicial, Ed. Espanhola, Madrid, 1957, pág. 69).
O Prof. Fernando Luso Soares, em sua preciosa obra A Responsabilidade Processual Civil, Coimbra, Almedina, 1987, pág. 65 assevera:
«Não quero, evidentemente dizer que isto de instaurarmos ações seja coisa ‘perigosa’ nos mesmos parâmetros em que são o funcionamento da fábrica ou o movimento do trânsito. Mas se, na verdade, o processo tem como pressuposto um conflito de interesse (nº 1 do artigo 3º do Código de Processo Civil), óbvio se nos mostra que há nele, e sempre, o perigo de o adversário ganhar – ou seja, o perigo de se perder. E é assim adequado ao âmbito das atividades do foro aquele critério de justiça distributiva que se anuncia com o brocardo romano ubi commoda ibi incommoda. Commodum – segundo o DIGESTO – é utilidade, proveito, benefício. E, quem este pretenda, terá de correr os riscos inerentes a todas as incertitudes, boas e más, da luta judicial. A responsabilidade objetiva pelo risco.»
Nas páginas 25 e segs., «ibidem», dissera o mesmo mestre Fernando Luso Soares:
«Decerto o processo constitui um instrumento de cultura (…)
«Qualquer pessoa – legalmente ‘pobre’ ou legalmente ‘rica’ – pode ter dúvidas sobre qual o preceito aplicável ao seu caso. Por isso procura a declaração certa do órgão jurisdicente.»
Ora, aprendemos que o Direito é uma Ciência Humana, social, crítica, de fato, crítica, praticada através do emprego da Dialética, sendo a sentença, por sua vez integrada por um discurso judicial clássico: tese, antítese e síntese, contra cuja natureza a lei não pode atentar.
Logo, não parece inteligente franquear o debate mediante tanto constrangimento.
De sorte que, à luz do anteprojeto sob exame, o Direito passa a ser arte da surpresa, da traição, sendo o debate uma enganação onde o vencido paga à contraparte, honorários advocatícios arbitrados reiterada e indefinidamente, com chances de se igualarem ou tornarem-se superiores ao interesse em debate, sem margem a contraditório.
Jogo de azar, enfim.
Com disposição normativa assim cria-se no Brasil o processo invariavelmente de parte única, com todos fugindo dele. Não há exemplo disso no Direito comparado, a não ser no caso especificado, da «extinta» União Soviética, que não poderia inspirar o legislador brasileiro.
Nesse ponto a lei forçará busca de «gurus» nos países do extremo oriente, a fim de, através de meios paranormais, extrair e fornecer informações sobre as reações dos tribunais ao longo das demandas frente aos recursos que forem interpostos.
Daí por que tenho afirmado que o texto visando à reforma do CPC deveria dar prioridade ao funcionamento livre do processo, e não à criação de dificuldades assim, ao ponto de sufocar a atividade do advogado, sobretudo do advogado do interior do Brasil, que constitui a maioria.
*Eulâmpio Rodrigues Filho, Doutor em Hermenêutica. Doutorando em Direito. Professor titulado de Direito Processual Civil – OAB/MG 366-A