Direito do Consumidor

Modelo de Recurso – inexistência de título extrajudicial nos autos

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA ….ª VARA CÍVEL DA COMARCA DE ……….- ….

Autos nº ……

………… e outros, já qualificados nos autos de embargos à execução aforada contra …………….., vem, por intermédio de seus procuradores, respeitosamente perante Vossa Excelência, inconformados com a r. decisão que julgou improcedentes os embargos à execução, apresentar

RECURSO DE APELAÇÃO,

de conformidade com os artigos 513 e seguintes do Código de Processo Civil, pelas razões em anexo, requerendo, para tanto, seu regular recebimento e, após, o devido encaminhamento ao Egrégio Tribunal, para recebimento e provimento.

Pede Deferimento.

[Local], [dia] de [mês] de [ano].

[Assinatura do Advogado]

[Número de Inscrição na OAB]

EGRÉGIO TRIBUNAL:

RAZÕES DA APELAÇÃO.

Apelante: ………. e outros.

Apelado: ……………

Origem: …..a VARA CÍVEL DA COMARCA DE …….. – ……

Autos nº: ……/….

Colenda Câmara:

Trata-se de ação de embargos à execução, onde a apelante pretende o reconhecimento da ilegalidade das taxas de juros e formas de atualização pretendidas pela embargada na execução, bem como o reconhecimento de que os juros aplicados por esta são capitalizados, questionando-se ainda, a exigibilidade do instrumento apresentado por não se revestir de título executivo, a não demonstração da forma de realização dos cálculos, a aplicação do código de defesa do consumidor, as taxas de juros abusivas, a cobrança de juros de forma extorsiva, o anatocismo, o limite constitucional de juros, aplicação da súmula 121 do STF.

Após os trâmites normais do feito, o MM. Juiz “a quo” em sua r. sentença, entendeu por bem julgar improcedentes os embargos, determinando o prosseguimento da ação executiva (consubstanciada nos autos …../…..) e, condenou a embargante ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios do patrono do embargado.

A r. sentença não pode ser mantida, de vez que afronta toda a sistemática moderna do direito positivo, conforme amplamente apresentado em sede de embargos e, pelo que se demonstrará a seguir.

1. PRELIMINARMENTE

Da inexistência de título executivo nos autos.

Não há revestimento de título executivo in casu, tendo em vista que o instrumento de contrato apresentado não representa, com a necessária exatidão, promessa de pagar quantia determinada, não se revestindo das qualidades essenciais, quais sejam, liquidez, certeza e exigibilidade.

Aliás, tal assertiva é demonstrada pelo próprio recorrido que alega ser credor dos recorrentes da importância líquida de R$ ………… conforme unilateral demonstrativo de cálculo.

Inclusive, se confrontada ainda a malsinada nota promissória e contrato apresentado como títulos executivos, nos quais os valores apontados totalizam …………. sendo, ainda, o crédito à época do contrato no valor de R$ ………., dar-se-á por encerrada qualquer afirmação de valor “liquido e certo”.

Denota-se cabalmente que a própria recorrida afetou a possibilidade de execução do contrato em questão ao apontar valores tão desconexos entre si – nota promissória, escritura pública, demonstrativo de débito, abertura de crédito.

Evidentemente não há como admitir presunção de veracidade ao alegado pelo recorrido e de alguns documentos colacionados aos autos de execução, tendo em vista tratar-se de uma elaboração unilateral, o que afeta flagrantemente a liquidez e a certeza do título.

Ademais, a instituição financeira está tomando como seu um direito que sequer foi reconhecido judicialmente, o que ofende aos princípios constitucionais do contraditório e do devido processo legal, insertos no artigo 5º, incisos LIV e LV da Constituição Federal.

Não se pode olvidar do princípio da intangibilidade dos contratos, que encontra respaldo no limite do princípio da ordem pública e dos bons costumes, devendo as cláusulas de adesão ser interpretadas contra quem as editou ante a unilateralidade com que se impõem.

Assim, além dos valores apontados como devidos não terem sido aceitos como verdadeiros pelos recorrentes, o valor do contrato, da nota promissória e a forma de atualização, são desconexos com a legislação.

O contrato de abertura de crédito é aquele “pelo o Banco (creditador) se obriga a colocar à disposição do cliente ou de terceiro (creditado) certa importância pecuniária, facultando-lhe a utilização dessa soma, no todo ou em parte, quer por meio de saque, de aceite, de aval ou de fiança, até o montante convencionado” (Sergio Carlos Covello, Contratos Bancários, p. 187, n 1, Saraiva, 1991, 2ª edição).

A modalidade de contrato de abertura de crédito é bastante usual nos dias de hoje, pode ser descrita da seguinte forma:

“Utilizado o valor e vencido o prazo do contrato deve o creditado reembolsar o creditador, pagando-lhe o principal e os acessórios contratados; e muito embora seja bilateral, preenchidos os requisitos do artigo 585, II, do CPC, tem ele em princípio eficácia executiva, residindo a dificuldade em aceitá-lo como título executivo, no entanto, em dois pontos: a) na prova do adimplemento da obrigação, qual seja: de colocar os valores à disposição do creditado; b) na determinação da liquidez. Para esses dois objetivos bastam, a priori, os extratos e o demonstrativo da dívida, desde que um e outro abranjam todo o período de movimentação da conta corrente, documentos suficientes para que o juiz e o devedor possam apurar o cumprimento da obrigação do banco e a evolução da dívida. De fato, se o título executivo deve, abstratamente, pelo seu só exame, revelar a natureza e o objeto da relação jurídica (certeza) e os dados para a determinação do quantum debeatur (liquidez), sem se falar ainda, neste momento, da existência e do conteúdo do direito de crédito, mas somente na eficácia do título executivo, aqueles dois pressupostos podem ser examinados a partir dos extratos e do demonstrativo. (conceito extraído dos autos nº 208/99 da 11ª VC de Curitiba, em sentença proferida pelo MM. Juiz Albino J. Guérios)

Nesse mesmo sentido, quanto aos conceitos de certeza e de liquidez e quanto a eficácia executiva do contrato bilateral:

A exigência de um direito certo, portanto, resolve-se na necessidade de que o título tenha por conteúdo um direito cuja natureza seja conhecida e cujo objeto seja também de natureza conhecida (Cândido Rangel Dinamarco, Execução Civil, p. 488, n 328, Malheiros Editores, 1993, 3ª edição);

A certeza leva, pois, ao entendimento de que é indispensável a existência de um título executivo, ou seja, do fato ou ato jurídico a que a lei relaciona a aplicação de uma sanção. Trata-se de mero “juízo de eficácia processual”. A certeza da obrigação, enquanto inerente ao título, retrata apenas a consideração legal de um “elevado grau de probabilidade da existência do crédito ou da obrigação:. Se existe ou não, mostrá-lo-á o curso do processo…

Ora, para configurar título executivo, basta que se atenda ao figurino legal. Se houve descumprimento do contrato, isso há de ser arguido pelo executado e discutido nos embargos (Sérgio Shimura, ob. C., p. 137, n 2.8).

Quanto aos títulos executivos extrajudiciais, embora nada ainda tenha sido sobre a responsabilidade de cada parte, se for evidente a ausência da prova da prestação que cabe ao credor, o juiz poderá indeferir o pedido de citação do devedor. Se, porém, não for perceptível, prima facie, a questão apenas será debatida se o devedor invocar a cláusula non adimpleti contractus ou a non rite adimpleti contractus (Alcides de Mendonça Lima, Comentários ao Código de Processo Civil, volume VI, p. 223, n 593, Forense, 1991, 6ª edição);

De saída, a principal novidade reside na circunstância de que tais documentos podem contemplar obrigações de qualquer natureza. Assim, os negócios bilaterais, mesmo contemplando obrigações recíprocas simultâneas, que desfrutavam de norma explícita quanto à caracterização do inadimplemento (art. 582) e eram reprovavelmente discriminados (por exemplo, só porque “o surgimento da obrigação de uma das partes vincula-se à determinada prestação de outra”), desfrutam de eficácia executiva (Araken de Assis, Inovações do Código de Processo Civil, obra conjunta, p. 147, n 7.2.3., Livraria do Advogado, 1996).

Portanto, como primeira conclusão, o contrato de abertura de crédito em conta corrente, sem embargo da divergência na doutrina e nos tribunais, é título executivo, mas desde que acompanhado dos extratos de conta corrente de todo o período contratual.

Nesse sentido:

Em suma, o contrato de abertura de crédito, desde que assinado pelo devedor e subscrito por duas testemunhas, acompanhado do correspondente extrato de conta, configura título executivo extrajudicial, diante do permissivo do art. 585, II, do CPC. Eventual discordância do creditado poderá ser manifestada em sede de Embargos à Execução, sem qualquer prejuízo para seus interesses, como sucede em relação a todas as pretensões executivas (Carlos Alberto de Oliveira, Exequibilidade dos Contratos de Abertura de Crédito, Revista Jurídica 242/133, Editora Síntese) e

Contrato de abertura de crédito acompanhado de extrato circunstanciado de movimentação da conta corrente. Título executivo. Liquidez (STJ, Revista Jurídica 242/148).

Especificamente no caso dos autos; (a) os extratos apresentados pelo Banco ……….., não abrangem todo período do contrato, (b) consequentemente falta a liquidez.

Por tal razão, deve ser julgado extinto o feito na forma do artigo 267, IV, do CPC.

2 Contrato bancário. Código de Defesa do Consumidor. Relativização da pacta sunt servanda.

Todas as questões discutidas dependem da determinação do sistema normativo que regula o contrato bancário — se de direito comum (civil ou comercial) ou do direito do consumidor — , muito embora um ou outro leve ao mesmo resultado prático (mencionam-se dos sistemas para a eventualidade de um deles, por opção do intérprete, não ser o adequado e como reforço de argumento e da conclusão), dado necessário para que se possa: 1) relativizar o princípio da força obrigatório dos contratos, de modo a permitir ao Juiz, para reequilibrá-lo, o exame do conteúdo do contrato; 2) determinar se há cláusulas abusivas.

A relação de consumo requer a presença de um fornecedor ou de um prestador de serviços e de alguém que receba os produtos ou os serviços como destinatário final, não recolocá-los no mercado (artigos 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor), muito embora, excepcionando a regra, ao lado do consumidor destinatário final o artigo 29 do Código de Defesa do Consumidor equipare ao consumidor outras pessoas, físicas ou jurídicas, igualmente hipossuficientes, para o fim de protegê-las contra práticas comerciais previstas pelo mesmo código, como, por exemplo, a atividade bancária (artigo 3º, parágrafo 2º, do CDC). Ponderando esses dois critérios relevantes para o conceito de consumidor e a expressa referência à atividade bancária a doutrina e alguns julgados, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, submetam os contratos bancários ao Código de Defesa do Consumidor.

Nesse sentido:

Apesar das posições contrárias iniciais, e com apoio na doutrina, as operações bancárias no mercado, como um todo, foram consideradas pela jurisprudência brasileira como submetidas às normas e ao novo espírito do CDC de boa fé obrigatória e equilíbrio contratual (Cláudia Lima Marques, Contratos no Código de Defesa do Consumidor, p. 143, Editora Revista dos Tribunais, 1995, 2º edição)

Ainda que ad argumentandum se diga que as operações bancárias não seriam ontologicamente destinadas ao consumo, são elas consideradas ex lege como serviços para os efeitos de sua caracterização como relação de consumo. Haveria, por assim dizer, uma ficção jurídica conceituando as atividades bancária como sendo objeto das relações de consumo (Nelson Nery Júnior, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto, p. 311, n 11, Forense Universitária, 1991, 1ª edição)

Enquanto no artigo 2º o critério é a destinação final, no artigo 29 outro é o fundamento: exposição das pessoas (determináveis ou não) às práticas de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços, práticas perpetradas por pessoa física ou jurídica, pública ou privada, bem como os entes despersonalizados (artigo 3º)

A exposição da pessoa às práticas referidas não significa que elas sejam destinatárias finais. Pode-se admitir a situação de destinatário final, mas também de destinatário virtual, ou possível destinatário final.

O critério do artigo 29 é mais amplo, razão por que a equiparação dos ‘expostos’ sejam destinatários finais efetivos ou virtuais, estabelece outra espécie de consumidores (Alcibes Burgarelli, O Consumidor e a Relação de Consumo, Revista Literária de Direito, maio/junho de 1996, pp. 40 e seguintes, Editora Jurídica Brasileira Ltda.)

Nosso Código, em verdade, terminou por proteger o figurante fraco, independentemente de sua qualificação (consumidor ou profissional), não se contentando com a observação de Jean Calais- Auloy, evidentemente com olhos postos na legislação do seu país, de que a proteção aos “profissionais em situação de fraqueza” se realiza através de legislação específica Antonio Janyr Dall’Agnol Júnior, Direito do Consumidor e Serviços Bancários e Financeiros – Aplicação do CDC nas Atividades Bancárias, Revista de Direito do Consumidor 27/7-17, Editora Revista dos Tribunais) e, na jurisprudência,

O conceito de consumidor, por vezes, se amplia, no CDC para proteger quem “equiparado”. É o caso do art. 29. Para o efeito das práticas comerciais e da proteção contratual, “equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas”.

O CDC rege as operações bancárias, inclusive as de mútuo ou de abertura de crédito, pois relações de consumo (RT 697/173)

2. Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos bancários, mas as cláusulas ditas abusivas devem estar perfeitamente demonstradas pelo devedor (TAPR, Apelação Cível 0114834-7, de Curiuva, 4ª Câmara Cível, Relator Juiz Ruy Cunha Sobrinho) e

Os bancos, como prestadores de serviços especialmente contemplados no art. 3º, parágrafo 2º, estão submetidos às disposições do Código de Defesa do Consumidor. A circunstância de o usuário dispor do bem recebido através da operação bancária, transferindo-o a terceiros, não o descaracteriza como consumidor dos serviços prestados pelo banco (STJ, Revista de Direito do Consumidor 16/179, Editora dos Tribunais).

Apenas para arrematar:

De fato o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) foi editado para revolucionar as relações vividas na sociedade brasileira, impondo a partir da sua vigência, o fornecimento de produtos e serviços segundo os melhores padrões de qualidade, confiabilidade e segurança.

Desta forma, não se pode admitir que somente alguns segmentos da economia nacional fiquem à margem dessa evolução legislativa, como no caso das instituições bancárias e financeiras.

A defesa do consumidor possui respaldo na Constituição Federal que à elevou a categoria princípio geral da atividade econômica (art. 170, inc. V) e garantia individual (art. 5º, inc. XXXII), bem como o ordenamento jurídico repugna qualquer abusividade, seja no plano constitucional, comercial, trabalhista etc…

Se no nosso sistema de proteção do consumidor não faz distinção entre o consumidor pessoa física e jurídica, bem como equipara (tornando-o igual para efeito de aplicação da lei) a consumidores diversas pessoas expostas às práticas tratadas pelos (sob pena de julgar contra legis), deixar de dar a interpretação ou aplicação correta dos seus dispositivos. Neste sentido, entendemos impertinente o questionamento da destinação do serviço ou do crédito de incidência ou não das normas da lei 8.078/90 (Antônio Carlos Efing, Responsabilidade Civil do Agente Bancário e Financeiro, Segundo as Normas do Código de Defesa do Consumidor, Revista de Direito do Consumidor, volume 18, pp. 125 e seguintes, Editora Revista dos Tribunais, 1996).

Ao lado desse há outro argumento, subsidiário e de valor caso aquele primeiro (argumento), ad argumentandum, não esteja correto. O Código de Defesa do Consumidor introduziu (ou confirmou) dois princípios elementares do novo direito dos contratos: a boa fé e a justiça contratual. O sistema do direito do consumidor, por outro lado, não é excepcional, mas especial (e não se pode negar que, ao menos do ponto de vista legislativo, há alguma coisa nova no ordenamento jurídico, cfr. Edilson Pereira Nobre Júnior, A Proteção Contratual no Código do Consumidor e o Âmbito de sua Aplicação, Revista de Direito do Consumidor 27/56-77, Editora Revista dos Tribunais), portanto, exatamente porque novas normas passaram a integrar o ordenamento jurídico, o contrato em geral, não apenas os de consumo, não é mais visto como algo estático e individual, mas como algo dinâmico e social, necessário para o comércio jurídico e para a satisfação de interesses legítimos (e basta um passar de olhos pela Constituição Federal para constatá-lo), entendimento que permite relativizar o princípio da pacta sunt servanda e abre espaço para a justiça contratual, a tutela da confiança e a boa fé. O contrato, então como resultado desses novos princípios, deve ser o instrumento de satisfação de necessidades individuais e coletivas, não para a supremacia de um contratante sobre o outro ou para que esse enriqueça às custas daquele.

Indo um pouco além, e na esteira da constitucionalização do direito privado, o recurso ao direito do consumidor, que ostensivamente consagra princípios constitucionais relevantes para o mercado, encobre uma postura metodológica acanhada, tímida — a que impede o intérprete de olhar para a Constituição e aplicá-la diretamente, como se as normas constitucionais contivessem meros conselhos ao legislador ordinário e como tais passíveis de descumprimento, não preceitos ou ordens ou normas jurídicas, dotadas de eficácia. Um rápido passar de olhos pela Constituição da República revela, ao menos do ponto de vista teórico (o que não é pouco, mas muito, desde que o operador do direito aceite o comando e o concretize), as mudanças operadas no direito contratual. Os incisos III e IV do artigo 1º (da CF), por exemplo, conforme será visto também mais adiante, consagram a dignidade da pessoa humana e a necessidade da compatibilização entre a livre iniciativa e o trabalho. O artigo 3º, I, II, e III, fala na justiça e na solidariedade, no desenvolvimento nacional e na justa distribuição de riquezas. O 5º, XXIII, limita o direito de propriedade, dando-lhe um colorido social. O 170, caput, e III, VII e IX, disciplinam diretamente a atividade econômica, orientando-a para a valorização da justiça social e da dignidade do Homem. Essa série de princípios, desde que sejam consideradas duas premissas, a saber: 1) a eficácia das normas constitucionais, mesmo das chamadas programáticas, que também têm eficácia, ainda que negativa, isto é, de no mínimo evitar comportamentos contrários a sua diretriz e de exigir o intérprete autêntico (o Juiz) a interpretação das normas ordinárias conforme o que elas estabelecem, e 2) o contrato constitui o fundamento e o pressuposto da atividade econômica, autoriza a seguinte conclusão: devendo o mercado, a atividade econômica, seguir as diretrizes constitucionais — o mercado deve ser equilibrado, estruturado não apenas para propiciar a acumulação de riquezas a um dos contratantes mas também, e principalmente, para atender ao desenvolvimento nacional, sem provocar injustiças –, o contrato, seu ponto de apoio, deve trazer implícito na sua estrutura o modo de realização daqueles valores, o que somente será possível se houver justiça contratual e um atuar conforme a boa fé objetiva. O que não se pode, sem se violar aquele princípios, é pensar o contrato nos moldes antigos, de prevalência da vontade individual de um dos contratantes, porque, aí, não haverá desenvolvimento nacional, justiça social, equilíbrio nas relações etc.

Ou dito de outra forma e melhor explicando esse entendimento. Mesmo sem o Código de Defesa do Consumidor, que não é uma lei excepcional, mas especial, compatibilizando-se com a noção de contrato delineada pela Constituição Federal e por isso passível de aplicação aos contratos em geral, ainda que de direito comercial ou civil (cfr. Fernando Noronha, O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais, p. 02. n1.1, Saraiva, 1994), não seria incongruente dizer que o modelo contratual flexibilizou-se e socializou-se com o advento da nova ordem constitucional. Essa conclusão exige algum esforço de argumentação. Sabidamente, todo objeto cultural reflete uma ideologia, uma concepção de mundo, quer no momento em que ele é produzido ou mais tarde, quando é compreendido ou interpretado. O Direito, como objeto do mundo da cultura e como superestrutura que é (e cada um dos seus institutos por extensão) é essencialmente ideológico (Luis Roberto Barroso, Interpretação e Aplicação da Constituição, Saraiva, 1996). Não poderia escapar à regra o contrato, ponto de convergência de toda a atividade econômica da sociedade. Como instrumento de circulação de riquezas e de satisfação de interesses e necessidades ele teve e sempre terá o seu conceito marcado por ideias econômicas, políticas e filosóficas e servirá, mediatamente, para a realização dos valores idealizados como corretos por essas ideias (logo, um conceito cambiante). Assim é que, em pleno século XIX, quando do predomínio do individual-liberalismo, tanto no plano econômico como no jurídico, o contrato como lei entre as partes tinha no ambiente sócio-cultural-econômico de então o necessário fundamento. Raciocinava-se deste modo: se todos são iguais (falácia, desmentida pela realidade dos homens, regulando-a somente em poucos casos, os contratantes também são iguais e, portanto, quando da contratação, têm iguais oportunidades de discutir o conteúdo; sendo assim, o pacto terá de ser integralmente cumprido, porque, sendo as partes os melhores juízes de seus interesses e possuindo a vontade individual força suficiente para produzir efeitos jurídicos, a justiça material estará garantida, abrindo-se exceção somente para os vícios da vontade e a muito custo para a teoria da imprevisão. Essa visão do contrato ajustava-se também ao tipo de economia da época – essencialmente agrária. Com a mudança do mundo, principalmente da economia, que passou para uma economia industrial e de massa, aquela ideia de contrato foi superada, desmentindo-se os dogmas da vontade, da igualdade e da liberdade contratual. Princípios como o da boa fé e da justiça contratual, frutos de uma concepção social do Direito e do contrato, juntamente, ou como produto, com a constatação de que os homens não são iguais, logo, não discutem em pé de igualdade um contrato, relativizaram o princípio da pacta sunt servanda, possibilitando ao juiz, para a proteção do economicamente mais fraco, a revisão do “livremente” pactuado. Chega-se assim ao conceito de contrato como algo social e destinado à satisfação de interesses legítimos, não para o enriquecimento de um contratante em detrimento do outro ou para o predomínio vazio da vontade de um sobre a do outro; o instituto, em outras palavras, imantou-se da ideia de que as partes devem agir de boa fé e segundo a boa fé objetiva e que entre prestação e contraprestação deve existir o necessário equilíbrio. Ora, o Código de Defesa do Consumidor nada mais fez do que ressaltar o que sempre esteve subentendido no sistema – a boa fé objetiva e a justiça contratual, reflexos no campo do Direito Contratual dos novos valores do sistema jurídico como um todo; consequentemente, as disposições daquele Código devem ser aplicadas sempre que, constatada a hipossuficiência de um dos contratantes, a vontade de um dos contratantes, em razão da fraqueza econômica do outro, prevaleça ditando condições contratuais iníquas.

Nesse sentido, partindo da Constituição Federal e aplicando os seus preceitos:

Como se vê, o princípio geral é o de que salvo motivos especiais, há um valor que deve ser preservado na vida contratual que é o da equivalência ou proporcionalidade das prestações e contraprestações recíprocas, o que não tem sido infelizmente respeitado pela chamada Nova República (Miguel Reale, Temas de Direito Positivo, p. 19, Editora Revista dos Tribunais, 1992).

Disso tudo resulta o novo modelo contratual – socializado e, forçosamente, eticizado.

Nesse sentido:

Assim, através da aplicação dos princípios que regem a nova realidade contratual, busca-se a segurança jurídica, mas não através da liberdade contratual, onde imperava a supremacia da “palavra dada” (pacta sunt servanda), mas através da tutela da confiança e da boa fé, banhados pelo princípio da justiça contratual (Renata Mandelbaum, Contratos de Adesão e Contratos de Consumo, p. 101, n 36.2, Editora Revista dos Tribunais, 1996)

Com efeito, o princípio da autonomia da vontade parte do pressuposto de que os contratantes se encontram em pé de igualdade, e que, portanto, são livres de aceitar ou rejeitar os termos do contrato (Silvio Rodrigues, Direito Civil, volume 3, p. 19, n 8, Saraiva, 1975, 5ª edição) e, destacando o aspecto transcendente do contrato:

A verificação de que o contrato tem um impacto que transcende a “privacidade” das partes nos leva a outra mudança de enfoque.

A teoria clássica entendia o contrato como fenômeno economicamente neutro. Isto não é assim, tem efeitos distributivos. Desde a análise econômica, tem sido posto em destaque, o efeito redistributivo que têm as normas contratuais.

A análise particularizada no contrato impede, muitas vezes, perceber a globalidade do “negócio” celebrado. A venda a baixo preço (contrato) pode objetivar a eliminação de um concorrente (negócio) e transformar-se em ilícita à luz da regulamentação da concorrência.

Tanto as normas derivadas da autonomia privada como as regulamentações intervencionistas têm efeitos econômicos distributivos…

Há uma grande massa de excluídos do consumo; trata-se de instrumentalizar normas de ordem pública que flexibilizem esse acesso em condições de qualidade e segurança aceitáveis.

Para que isso seja possível, há que reforçar o acesso ao consentimento pleno, despejando as dúvidas individuais (intervenção como garantia subjetiva ao consentimento pleno) e colocando as partes em igualdade material de expressão (ordem pública de proteção) (Ricardo Luis Lorenzetti, Fundamentos do Direito Privado, pp. 541 a 543, n III e IV, Editora Revista dos Tribunais, 1998).

Se essa é a tendência no momento e se o Código de Defesa do Consumidor contém normas que atenuam a força obrigatória do contrato, como resultado dos princípios constitucionais antes mencionados, além de não representar o direito do consumidor um sistema excepcional mas sim especial, conforme insistentemente repetido, resta aplicá-lo sempre que frente a frente estiverem contratantes economicamente desnivelados, flexibilização a que se chegaria apenas com a Constituição da República (em outros termos: os novos valores, redescobertos pela Carta da República e concretizados em princípios como o da Justiça, da solidariedade, da função social da propriedade, da iniciativa econômica aliada ao respeito do trabalho e da dignidade humana etc, impõem um novo modelo de contrato, e como o Código de Defesa do Consumidor materializou esses valores as suas disposições, regras e princípios devem ser aplicadas a todos os contratos não paritários).

Mais ainda, e também nessa linha de raciocínio, o contrato bancário é de adesão – ou o cliente adere, aceitando as condições impostas pelo banco, ou não adere e permanece sem recursos para levar adiante a sua empresa ou o atendimento de necessidades — o que vulnera o postulado do desenvolvimento nacional, entre outros, e contraria mesmo a essência do modo de produção capitalista ao impedir a livre iniciativa (a respeito, percebendo essa situação, o seguinte trecho do voto do Ministro Athos Gusmão Carneiro, verbis; “Ora, em casos como o dos autos, é o credor que está, em realidade, criando o título executivo extrajudicial em seu favor, fixando-lhe o valor e o momento da exigibilidade, mercê de outorga de poderes imposta compulsoriamente em contrato de adesão, compulsoriedade a que as pessoas obrigadas ao uso do crédito bancário não têm como fugir. Ou aderem, ou estão expulsas do mundo dos negócios, pelos menos a imensa maioria dos médios e pequenos empresários, que não têm condição alguma de discutir com os fornecedores de crédito, com as instituições financeiras…”, grifos nossos, in Wilson Bussada, Súmulas do Superior Tribunal de Justiça, Acórdãos de Origem e Sentenças Decorrentes, volume II, p. 972, Jurídica Brasileira, 1995, 1ª edição). A falta da Justiça formal (que ocorre quando o equilíbrio de forças é rompido no instante da contratação) abre oportunidade ao reequilibro, na busca da justiça contratual material, da economia do contrato; e a necessidade de reequilibro pressupõe a possibilidade de intervenção no contrato, sem que se possa falar na sua intangibilidade.

Nesse sentido:

Ora, posta assim a questão, a melhor solução parece ser aquela que, partindo da distinção entre justiça formal e substancial, considera que esta se deve presumir a partir daquela: em princípio, deve admitir-se ser substancialmente justa a relação entre prestação e contraprestação, entre benefícios e encargos, que as próprias partes estabeleceram. Garantidas as condições para a realização da justiça formal, é de se presumir que o contrato seja justo, já que em geral são as partes que estão em melhores condições para avaliar se a prestação e contraprestação se equilibram e se ônus e riscos estão divididos de forma equitativa…

Mesmo em contratos que não sejam de consumo, a cláusula abusiva poderá ver questionada a sua validade se figurar em contratos padronizados e de adesão, porque, não existindo prévia negociação sobre o conteúdo contratual ou sendo ela ineficaz, não se pode presumir a relação de equilíbrio entre prestação e contraprestação, que é pressuposta pela justiça formal (Fernando Noronha, O Direitos Contratos e seus Princípios Fundamentais, pp. 225. 226 e 249, n. 9.3 e 9.4.4., Saraiva, 1994).

Concluído, pois, por um ou por outro fundamento chega-se ao mesmo resultado – necessidade do exame ponderado da posição das partes dentro do contexto do contrato, avaliando-se eventual desequilíbrio para saná-lo.

A resistência a esse ponto de vista tem um substrato ideológico (alias como qualquer interpretação da norma jurídica) e em certa medida contraria o próprio conceito de Direito — objeto cultural, portanto, teleológico, voltado a valores, constatação que força: a) o reconhecimento de que as velhas ideias são descartadas com o passar do tempo pelo meio social e que novas (ideias) surgem, representando essas novas ideias o conceito de Justiça e que, necessariamente, por isso, devem ser apreendidas pela norma jurídica, e b) coloca o intérprete que teime em apegar-se à antiga ordem de valores em contradição com a própria ideia de Direito. Melhor explicando. O Direito é uma superestrutura, e como superestrutura é essencialmente ideológica (Luís Roberto Barroso, Interpretação e Aplicação da Constituição, Saraiva, 1996). Os órgãos que o elaboram e o aplicam submetem-se, mesmo inconscientemente, a certa ideologia e a perpetuam, e assim agem porque o legislador, o intérprete e o aplicador da norma vivem em um ambiente sócio-político que sofre influências ideológicas e por isso tendem a preservá-lo, sem críticas. Compreende-se, portanto, a resistência de alguns setores à limitação da atividade bancária; olha-se o banqueiro (ou o capital, mais amplamente), o seu lucro, apenas, esquecendo-se da contraparte e, o que é pior, a tarefa que a própria Constituição Federal atribui ao sistema financeiro (artigo 192, caput). Esquece-se também da hipossuficiência de quem contrata com o banco. Somente sob esse ponto de vista é que se consegue justificar a corrente que nega o caráter de norma de eficácia plena ao artigo 192, parágrafo 3º, da Constituição, e que consente que os juros possam ser capitalizados e cobrados a qualquer taxa e outros encargos exigidos, procedendo a aguda crítica do Professor José Carlos Barbosa Moreira, verbis: “Só na hora de interpretar a Constituição é que não se sabe o que é: não se sabe porque não se quer saber. É claro que taxa de juros reais é tudo aquilo que se cobra, menos a correção monetária”(apud Luís Roberto Barroso, ob. C., p. 243). Ou, arrematando, toda “estrutura jurídica reproduz o jogo de forças sociais e políticas, bem como os valores morais e culturais de uma dada organização social” (Antonio Carlos Wolkmer, Ideologia, Estado e Direito, p. 145. n 5.6., Editora Revista dos Tribunais, 1995, 2ª edição) e, segundo Carlos Cossio, em crítica à dogmática jurídica, “o jurista, ao trabalhar sobre tal formulação (o positivismo e o normativismo), se acha a serviço de um padrão capitalista de estrutura social… e Ao final de seu texto, Cossio fazia alusão ao muito que podem fazer os juízes e os juristas, dentro da tradição democrática, para viver em um mundo melhor, com libertar-se desta ideologia que mede todas as coisas, inclusive a justiça, pelo dinheiro e que faz do dinheiro a razão de ser da existência humana” (apud Nelson Saldanha, A Propósito de “Crítica da Dogmática”. Anotação a um Texto de Cossio, in Revista Trimestral de Jurisprudência dos Estados 27/19, Editora Jurid Vellenich Ltda., abril/junho 1984).

Para reduzir as contradições dessa interpretação puramente ideológica com a realidade, com marca liberal-individualista, supondo ainda em vigor a antiga ordem jurídica, opta-se por outra (interpretação) também ideológica (toda interpretação do Direito tem raízes ideológicas, não sendo o intérprete neutro, ao contrário do que entende a doutrina clássica, positivista e normativista), só que com compromisso com uma nova ideologia, marcada justiça contratual e coerente mesmo com o nosso sistema e com certos valores fundamentais, resultando daí um novo enfoque dos juros nos contratos bancários e de regra das disposições contratuais como um todo. E essa nova ordem axiológica é revelada, primeiro, pela própria Constituição Federal, no seu Preâmbulo e no seu artigo 1º, onde valores como justiça, liberdade e dignidade do homem são colocados como supremos e servem de guia para a perfeita compreensão do sistema (a respeito da relevância do preâmbulo das constituições, João Barbalho, apud José Cretella Júnior, Comentários à Constituição Brasileira de 1988, volume I, pp. 74 e 78, n 1, forense Universitária, 1989, 1ª edição, e sobre a relevância dos princípios constitucionais para a interpretação da norma constitucional e da infraconstitucional, Luís Roberto Barroso, ob. C.) (e, note-se, que a própria Constituição Federal impõe o mesmo compromisso ao sistema financeiro ao fazer que ele deve servir aos interesses da coletividade e concorrer para o desenvolvimento equilibrado do País – artigo 192, caput, da CF) e, segundo, pelo novo Código de Defesa do Consumidor, que dinamizou a aplicação desses princípios gerais. São esses os dados componentes da nova ideologia – de justiça social – que devem ser pensados e pesados no caso (e com isso fica-se dentro do próprio sistema sem o receio de críticas à necessidade de uma posição fora do ordenamento). E toda e qualquer norma que destoe dos valores predominantes em dado ordenamento jurídico “podem, por causa da contradição de valores nela incluídas, atentar contra o princípio constitucional de igualdade e, por isso, serem nulas” (Claus-Wilhelm Canaris, Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito, p. 225, Fundação Calouste Gulbenkian, 1989). Certamente alguém argumentará que os juros são fixados pelo mercado financeiro, mercado que sofre a interferência direta do Estado como medida de política econômica, e que, sendo assim, os bancos perderiam ao captar dinheiro pagando certa taxa e recebendo outra inferior. O argumento à primeira vista impressiona e poderia autorizar o raciocínio simplista de que se a empresa ou a pessoa física vale-se do banco para conseguir dinheiro então que arque com os ônus daí advindos, não podendo nunca a instituição sofrer prejuízos; se alguém tiver que perder que seja o mutuário. Mas esse raciocínio passa ao largo da realidade ao desconhecer ou esconder a dependência que toda a economia mantém com o sistema bancário, que caracteriza o chamado fenômeno da bancarização, desde o empregado mais humilde, que recebe em cheque o seu salário, até a média empresa que, em momentos difíceis, recorre a financiamentos. A busca de recursos junto a instituições financeiras não é uma opção, mal algo que a todos é imposto, e imposto pelo consumismo e a busca de melhores condições de vida e que, matreiramente, monopoliza o crédito e o dinheiro nas mãos dos bancos. O pagamento de juros elevados sacrifica o consumidor absurdamente, na medida em que ele, no seu dia a dia, desenvolvendo as suas atividades, não consegue obter o necessário para quitar o débito, porquanto o mercado não o remunera suficientemente para arcar com juros superiores a 1% (um por cento) ao mês ou para suportar um acréscimo mensal, a título de comissão de permanência, de mais de 9% (nove por cento) (o sistema financeiro, nesse contexto, descumpre, ao inviabilizar principalmente a empresa, aquela finalidade que a Constituição da República expressamente lhe atribui, de promover o desenvolvimento nacional); para o banco pode ocorrer uma perda, sem dúvida. Mas dos dois, quem pode melhor suportar o prejuízo? O banco, certamente, não só pela sua melhor estrutura patrimonial como pela possibilidade de compensá-lo com a cobrança de outros serviços, como aliás, o vem fazendo. A opção pelo menos favorecido não é uma escolha arbitraria do juiz, mas sim do ordenamento jurídico como um todo, representado pelos valores já referidos, todos de cunho social e que servem para fomentar a solidariedade, implementando a justiça distributiva.

Com esses argumentos não se está contrariando ou inviabilizando o sistema de mercado, ou o capitalismo. Busca-se apenas, na esteira da eticização do Direito, uma forma de harmonizá-lo com certos valores agora priorizados e, em certa medida, proteger aquele sistema, o único viável, contra certas pressões ou efeitos por ele próprio produzidos e que podem destruí-lo.

O argumento de que o juiz deve cumprir a lei e não inovar, permanecendo neutro (a neutralidade não passa de um dogma, cuja falsidade pode ser facilmente demonstrada: na medida em que a ordem jurídica incorpora valores sócio-políticos, o juiz, ao aplicar irrefletidamente a lei, está na verdade aderindo a esses valores e ao assim proceder não mais estará agindo com neutralidade), prende-se a uma ideologia liberal-individualista e eminentemente capitalista e também a um modelo filosófico, o racionalismo, de há muito esquecido em outros setores do pensamento humano, mas que teima em persistir no campo jurídico por convir àquela ideologia, e coloca ou tenta colocar o Direito como uma ciência exata, capaz de soluções matematicamente corretas. Por mais que a realidade demonstre que o homem muda suas ideias, o seu comportamento, os seus valores, evoluindo, quer pela insatisfação que lhe é própria, quer porque novos fenômenos repercutem na sociedade, escapando tudo isso ao legislador mais cauteloso; por mais que se diga que o Direito evolui ao sabor de uma nova realidade, exigindo do juiz um envolvimento maior com o presente e com a nova ordem axiológica, agindo “como canal de comunicação entre o universo axiológico da sociedade e o caso concreto”, não inovando, mas trazendo “para as suas decisões, positivando-as com isso, os cambiantes imperativos da ordem social e política da nação, rompendo a estática dos textos legais e interpretando-os segundo os valores a preservar” (Cândido Rangel Dinamarco, Escopos Políticos do Processo, in Participação e Processo, p. 115, n 1, Editora Revista dos Tribunais, 1988, Coordenação de Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco e Kazuo Watanabe), insiste-se em apregoar, até compreensivelmente, como forma de prolongar privilégios, o imobilismo e a neutralidade judicial. Deve inovar, mesmo desrespeitando um dispositivo legal isolado, olhando para a evolução do sistema como um todo, por isso o direito é um sistema aberto e móvel, e interpretando, para readaptá-lo ou reintegrá-lo nesse sistema, o preceito de acordo com a nova valoração de condutas feita pela norma. E é precisamente a partir dessas ideias, repita-se, a questão dos juros bancários há de ser examinada, ou seja, segundo uma nova ordem axiológica. Frise-se que não se é contra a lei, mas, sim, a favor da necessidade de adaptá-la a essa nova ordem axiológica, de interpretá-la segundo certos princípios retores.

Os que assim pensam esquecem que concessões como essas, de espectro social, ao invés de destruir o modo de produção capitalista, concorrem para preservá-lo, evitando a autodestruição do capitalismo pelos próprios capitalistas. A intervenção do Estado compensando os excesso, ou as “disfunções do processo de acumulação” (Eros Roberto Grau, Direito Posto e Direito Pressuposto, pp. 89 e seguintes, Editora Revista dos Tribunais, 1998, 2ª edição), permite a subsistência e o desenvolvimento do mercado, afastando pressões autodestrutivas.

Nesse sentido:

Devemos também ter total consciência de outra circunstância: a sobrevivência e a aceitação do moderno sistema de mercado foram, em grande medida, uma conquista dos socialmente engajados. Ele não teria sobrevivido sem nossas bem-sucedidas iniciativas civilizadoras. O capitalismo em sua forma original era terrivelmente cruel. Somente com os sindicatos, a proteção aos trabalhadores e aos seus direitos, pensões para os idosos, indenizações para os desempregados, assistência pública, habitação de baixo custo — uma rede de segurança, embora imperfeita, para os desafortunados e privados — e ações públicas para atenuar o compromisso capitalista com o crescimento e a queda, o politicamente aceitável (John kenneth Galbraith, O Enganjamento Social Hoje, texto reproduzido e traduzido por Luiz Roberto Mendes Gonçalves na Folha de São Paulo de 20 de dezembro de 1998).

Ou seja: ainda que não se tenha afinidade com os novos valores introduzidos pela Constituição da República, ou amor pelo Justo e pelo equitativo, o novo modelo contratual deve ser aceito como forma de viabilizar atenuando-se as pressões.

Sintetizando tudo o quanto foi exposto e para finalizar esse tópico, trabalhando com outro argumento, a nova ordem axiológica e de princípios, mesmo sem um ato formal de revogação, ao ser introduzida no direito positivo, por lhe ser contrária, e exatamente por isso, afastou a antiga ordem, impedindo-lhe de continuar em vigor.

Nesse sentido:

Limitando-nos, contudo, às relações entre o Direito antigo e o Direito novo sob o aspecto das nossas “contradições entre princípios”, diremos que Wengler mostrou como, em toda a parte do mundo, as modificações das circunstâncias de facto, das concepções políticas, culturais e morais, e sobretudo ainda da restante legislação “pela qual a regra jurídica em questão como se encontra rodeada”, conduzem, sem a intervenção de uma especial lex posterior, à rejeição do Direito contrário aos princípios, isto é, em contradição com os novos princípios. O “espirito da nova legislação” exorcizará o Direito antigo, formal, que ainda se encontra em vigor…Uma forma menos ampla de adaptação do antigo Direito à nova situação jurídica global seria a já acima…referida “interpretação conforme à Constituição”, na medida em que esta interpretação se refira a “Direito pré-constitucional” e não só o “interprete” em sentido estrito como também o “complemente” ou “desenvolva” (Karl Engish, Introdução ao Pensamento Jurídico, pp. 322 e 323, Fundação Calouste Gulbenkian, 6ª edição).

Portanto, partindo-se também, diretamente ou mesmo indiretamente para os que teimem em dizer que a atividade bancária não é de consumo, do Código de Defesa do Consumidor e dos novos princípios por ele revelados, ou melhor, colocados em relevo, é que as questões discutidas pelas partes devem ser equacionadas.

Todo o exposto justifica e fundamenta este asserto: a vontade declarada pelo consumidor não é absoluta, e não o é porque, repetindo, ele simplesmente adere ao contrato bancário, não o discutindo; e não sendo absoluta, o sistema permite o reexame da base e do conteúdo do negócio para que possa estabelecer se existe ou não justiça contratual e, em caso negativo, para o realinhamento da economia do contrato.

Abrindo-se um parêntese. Com frequência as partes em seus arrazoados e os tribunais em seus acórdãos referem-se ao Professor Orlando Gomes como um defensor intransigente da pacta sunt servanda, esquecendo-se que o extraordinário jurista, em muitas outras obras, defendeu a flexibilização desse princípio, como o revela o seguinte trecho do livro Direito Econômico, em co-autoria com Antunes Varela, Saraiva, p. 152:

Mas, se alguma coisa se perdeu com a segurança com a expansão do princípio geral da boa fé, muito mais se ganhou em justiça (que é o valor primordial de toda a ordem jurídica) na luta contra os abusos do poder econômico. Maior justiça na flexibilidade da lei, na maleabilidade dos institutos, na possibilidade de adaptação das decisões concretas às necessidades reais da vida. E, sobretudo, maior equidade na proteção concedida ao contratante socialmente mais fraco, como se faz mister para salvaguarda da igualdade substancial entre as partes e da independência econômica dos indivíduos, que constituem os esteios mais fortes da autêntica liberdade negocial.

Muito bem, é esse ponto de vista — hipossuficiência de quem contrata com o banco, portanto, a necessidade do reequilíbrio entre os contratantes segundo a justiça contratual e a boa fé objetiva — que deve nortear o julgamento da lide, o exame de todas as questões discutidas pelas partes.

3. Juros. Anatocismo.

a) Juros.

Primeiro, antigamente, antes do instituto da correção monetária, as altas taxas de juros justificavam-se pela perda do poder aquisitivo da moeda e pela falta de um instrumento adequado para contornar o problema.

Nesse sentido:

Os juros bancários procuram, de certa forma, tendo em vista que a mercadoria dos bancos é o dinheiro, obviar a desvalorização monetária. Assim, a taxa bancária inclui, além dos juros normais, outras despesas, que os estabelecimentos bancários dispendem para atendimento do público, como uma parcela representativa da depreciação monetária, sendo, dessa forma, complexa em sua constituição (Álvaro Villaça Azevedo, Teoria Geral das Obrigações, p. 232, n 3, Editora Revista dos Tribunais, 1987, 4ª edição).

Existindo hoje um indexador que evita essas perdas não mais se justifica a manutenção de taxas elevadas, acima de 1% (um por cento), a não ser como forma de aumentar o lucro dos bancos em detrimento do consumidor. Tendo perdido o seu objetivo, os atos administrativos do Conselho Monetário Nacional que regulam as taxas dos encargos financeiros, se não fossem ilícitos e inconstitucionais por outros motivos, violariam o chamado princípio da razoabilidade, que tem fundamento constitucional. Esse princípio impede que o administrador adote, ao editar o ato administrativo, comportamentos ou soluções contrárias ao sentido da lei e mais amplamente ao do sistema; em outras palavras, “ninguém poderia aceitar como critério exegético de uma lei que esta sufrague as providências insensatas que o Administrador queira tomar; é dizer, que avalize previamente condutas desarrazoadas, pois isto corresponderia a irrogar dislates à própria regra de direito” (Celso Antonio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, p. 54, n 16, Malheiros Editores, 1994, 5ª edição). A falta de razoabilidade, no caso dos juros bancários, decorre do esvaziamento da finalidade básica destes, sendo agora fonte de injustiças na medida em que importa em um desequilíbrio na economia do contrato ou entre prestação e contraprestação (a respeito do due process of law substancial, Carlos Roberto de Siqueira Castro, O Devido Processo Legal e a Razoabilidade das Leis na Nova Constituição do Brasil, Forense, 1989); e faltando razoabilidade, são, sob esse ponto de vista, as circulares e resoluções do Conselho Monetário, atos administrativos inconstitucionais.

Também não é desarrazoado falar em uma lacuna axiológica, que ocorre “quando há lei aplicável ao fato, mas ante a injustiça ou inconveniência, que sua aplicação traria, deve ser afastada” (Maria Helena Diniz, Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, p. 417, n c. 3.2.2, Saraiva, 1992. 4ª edição)

Segundo, a Lei 4.595 de forma alguma liberou o Conselho Monetário Nacional para fixar taxas de juros, mas somente para limitá-las.

Nesse sentido:

A Lei 4.595/64 – Lei da Reforma Bancária – não revogou o art. 1.062 do Código Civil, nem os arts. 1º e 13 do Dec. N 22.626/33 – Lei de Usura. Limitar não é sinônimo de liberar e muito menos de majorar: exegese iníqua e equivocada do art. 4º, inc. VI e IX, da Lei 4.595/64, consagrada na Súmula 596 do STF. Em 15 de setembro de 1976, vem à lume a Resolução n 389 do Conselho Monetário Nacional, pela qual os políticos representantes não da população, mas dos donos dos grandes conglomerados financeiros, com a assessoria prestimosa dos burocratas daquele egr. Colegiado, interpretando a lei, ordenaram que o resto do Brasil lesse o berbo limitar, contido no art. 4º, inc. IX, da Lei 4.595/64, com sinônimo de liberar. Naquele instante, abriu-se a porta oficial à agiotagem, e a usura ganhou sua carta de corso, instalando-se na vida econômica do País e se constituindo em poderoso agente inflacionário, embora não seja o único, por certo. Na realidade, em nenhum momento de seu texto de sessenta e cinco artigos, a Lei 4.595/64 permite a graduação dos juros, pelos bancos e instituições financeiras, acima da taxa legal ou do limite convencional permitido, e em nenhum momento se encontra algum dispositivo que revogue, sequer implicitamente, o art. 1º da Lei de Usura e o art. 1.062 do Código Civil. A referida lei autorizou, isto sim, o Conselho Monetário Nacional a limitar, sempre que necessário, as taxas de juros, mas a partir da malfadada Resolução nº 389, por influência e coerção de quem efetivamente ganha alguma coisa com a inflação – que certamente não é o assalariado -, o verbo passou a significar também liberar…Sem necessidade de grande esforço hermenêutico, mas lançando mão apenas de uma razoável memória histórica, cumpre proclamar, modo hialino e desassombrado, que a Súmula 596, nos dias atuais, revela-se anacrônica e destoante da realidade jurídica e social do País. Com isso, não se está afrontando a autoridade da Corte Maior, mas apenas examinando um precedente jurisprudencial assentado há vária décadas, com olhos de atualidade. Com efeito, o Enunciado nº 596 surgiu, principalmente, porque naquela época não havia correção monetária nos mesmos moldes de hoje e com isso o sistema financeiro nacional não lograva repor o valor real da moeda no mesmo passo em que obtinha a remuneração do capital mutuado. Sem correção monetária, efetivamente, o limite de juros de 12% ao ano levaria o sistema financeiro à mais completa inviabilidade, à falência. Com a construção pretoriana que redundou na edição do Enunciado nº 596. A taxação dos juros acima do permissivo legal cumpria finalidade dúplice, vale dizer, repunha a perda inflacionária e remunerava o capital emprestado pelos bancos. Hoje, data vênia, isso não acontece mais, porque a indexação da economia e a larga utilização da correção monetária afastaram, pelo menos em grande parte, as perdas com a inflação. Em consequência, a conclusão lógica e jurídica só pode ser uma: se além da correção monetária as instituições financeiras ainda pretendem cobrar juros acima de 12% ao ano, tal comportamento revela cupidez e ganância desmedidas, ou seja, puramente usura. Se no resto do mundo os bancos podem sobreviver, aliás folgadamente, com juros que não ultrapassam 5% ou 6% ao ano, não é possível entender por que os bancos brasileiros não possam (TARS, ADV 73497).

Terceiro, indaga-se, no entanto, se os órgãos do Poder Executivo podem estabelecer taxas de juro. Pode argumentar-se com a Lei 4.595 e com a autorização conferida por essa mesma lei àqueles órgãos para legislarem a respeito. Entretanto, entra aqui um complicador — o artigo 25 das Disposições Constitucionais Transitórias. Mas e a Lei 8.392/91, que prorrogou indefinidamente os dispositivos legais que delegam a órgãos da Administração poderes para regulamentar matéria de competência do Congresso Nacional? Fala-se hoje em ativismo judicial, o que quer significar o poder-dever do Juiz de, sempre e sempre, verificar a constitucionalidade das leis, agindo criticamente (o que parece absurdo é falar na recente descoberta do ativismo judicial, como se l Juiz devesse permanecer inerte, desrespeitando o princípio da supremacia da Constituição). Pois bem, por força dessa nova visão: se o artigo 25 das Disposições Constitucionais Transitórias estabeleceu a revogação de todos os dispositivos legais que atribuíam ou delegavam a órgãos do Poder Executivo a normatização de matéria exclusiva do Congresso Nacional e se entre as matérias de competência do Poder legislativo está a “financeira, cambial e monetária, instituições financeiras e suas operações “(artigo 48, XIII, da CF), pode uma lei ordinária prorrogar indefinidamente o prazo indicado na norma constitucional, tal como ocorre com a Lei 8.392/91? As delegações legislativas são excepcionais, porque contrariam “normas e princípios, como (i) o da separação de Poderes, (ii) o da representação política, (iii) o da supremacia da Constituição, e (iv) o do devido processo legal “(Luis Roberto Barroso, O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas, p. 417, Renovar. 1996, 3ª edição), e sendo excepcionais não podem, sob pena de aqueles princípios serem irremediavelmente violados, perpetuar-se. De outro lado, como entender e conciliar a vontade da norma constitucional, que limitou no tempo as delegações, com a lei ordinária que prorrogou por tempo indeterminado? Não está ocorrendo aqui um flagrante desrespeito à norma constitucional, na medida em que o legislador constituinte quis fixar um prazo certo para a vigência das delegações? Sendo assim, a referida lei é inconstitucional. E sendo inconstitucional, a Lei 8.392/91 não revigorou a autorização ao Conselho Monetário Nacional para regularem a matéria.

Quarto, se não bastasse isso há o artigo 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor. De fato, os juros altos e cobrados capitalizadamente sobrecarregam em demasia o mutuário, fazendo com que ele pague muito mais do que tomou emprestado. Falta aqui a Justiça contratual substancial, criando-se uma situação extremamente iníqua e demasiadamente desvantajosa ao consumidor, pois os juros altos e capitalizados elevam em muito o valor da dívida, comprometendo desnecessariamente, sem uma razão justificável, o consumidor.

Quinto, existe ainda o artigo 192, parágrafo 3º, da Constituição Federal.

Esse artigo estabelece, peremptoriamente, a taxa de juro nos contratos bancários, 12% (doze por cento) ao ano. A controvérsia reside na natureza desse dispositivo, se de eficácia plena, ou de eficácia contida e aplicabilidade imediata ou de eficácia limitada.

Normas constitucionais de eficácia plena “são as que receberam do constituinte normatividade suficiente à sua incidência imediata. Situam-se predominantemente entre os elementos orgânicos da constituição. Não necessitam de providência normativa ulterior para sua aplicação. Criam situações subjetivas de vantagem ou de vínculo, desde logo exigíveis” (José Afonso da Silva, Aplicabilidade das Normas Constitucionais, p. 262, Malheiros Editores, 1998, 3ª edição), contendo a respectiva fattispecie os elementos necessários à sua imediata incidência. O suporte fático das normas constitucionais de eficácia plena é suficiente, completo o bastante, para o intérprete subsumir o caso concreto à hipótese normativa.

Adotando esse conceito, pergunta-se se aquele artigo define os elementos que compõem a hipótese de incidência da norma, sem necessidade de outro ato normativo subsequente.

Fala-se em juros reais (e esse é precisamente o termo que aqueles que negam a auto aplicabilidade reputam indefinido). O que são, afinal, juros reais? O seu conceito é dado pelo Professor José Carlos Barbosa Moreira, anteriormente citado, nos seguintes termos:

Só na hora de interpretar a Constituição é que não se sabe o que é; não se sabe porque não se quer saber. É claro que a taxa de juros reais é tudo aquilo que se cobra, menos a correção monetária. Se sabemos o que é boa fé, conceito muito mais vago; se sabemos o que são bons costumes, o que é vaguíssimo, se sabemos o que é mulher honesta, para aplicarmos o dispositivo legal que define o crime de estupro, por que é que não podemos saber o que são taxas de juros reais? Isso faz parte da tarefa quotidiana do Juiz; interpretar textos legais e definir conceitos jurídicos indeterminados; e este aqui é tão indeterminado. Acho até que é bastante determinado (ob. c, p. 229).

Quer dizer: todos sabem o significado do termo, bastando ao intérprete preencher o conceito com dados colhidos em outra Ciência, a Economia, e com isso aplicar a norma constitucional, norma que, como qualquer outra, foi instituída para ser efetiva.

O argumento ordinariamente empregado prende-se exclusivamente à posição da regra no contexto do artigo, mero parágrafo, inferindo-se daí que o parágrafo não pode contrariar, pois o complementa, o caput; logo, se a cabeça do artigo 192 fala em lei complementar, o parágrafo não poderia conter uma norma de eficácia plena. O argumento é resistência dos setores econômica e politicamente influentes, pois, primeiro, quem assim interpreta o dispositivo vale-se de um só e único método de interpretação, e o mais falível de todos, colocando de lado os outros, principalmente o teleológico (e sabe-se que todos os métodos de interpretação, e não apenas um, devem ser empregados para se chegar ao sentido aproximado da norma, cfe. Carlos Maximiliano, Hemenêutica e Aplicação do Direito, p. 127, n 129, Forense, 1980, 8ª edição); segundo relega a segundo plano o próprio conceito de norma de eficácia plena e outros conceitos científicos.

No sentido do equívoco de tal interpretação:

Todo parágrafo, quando tecnicamente bem situado (e este não está, porque contém autonomia de artigo), liga-se ao conteúdo do artigo, mas tem disciplina normativa. Veja-se p. e., o parágrafo 1º do mesmo art. 192. Ele disciplina assunto que consta dos incs. I e II do artigo, mas suas determinações, por si, são autônomas, pois, uma vez outorgada qualquer autorização, imediatamente ela fica sujeita às limitações impostas no citado parágrafo.

Se o texto, em causa, fosse um inciso do artigo, embora com normatividade formal autônoma, ficaria na dependência do que viesse a estabelecer a lei complementar. Mas, tendo sido organizado num parágrafo, com normatividade autônoma, sem referir-se a qualquer previsão legal ulterior, detém eficácia plena e aplicabilidade imediata. O dispositivo, aliás, tem autonomia de artigo, mas a preocupação, muitas e muitas vezes reveladas ao longo da elaboração constitucional, no sentido de que a Carta Magna de 1998 não aparecesse com demasiado número de artigos, levou a Relatoria do texto a reduzir artigos a reduzir artigos a parágrafos e uns e outros, não raros, a incisos. Isso, no caso em exame, não prejudica a eficácia do texto (José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, ppl 692 e 693, n6 Editora Revista dos Tribunais, 1989, 5ª edição).

Um outro argumento merece repúdio, o da existência de coisa julgada material resultante do julgamento da ADIN 04-DF. O PDT, nessa ação declaratória de inconstitucionalidade, impugnou, taxando-o de inconstitucional, o Parecer SR 70, de 06 de outubro de 1998, da Consultoria Geral da República. O Supremo Tribunal Federal pronunciou-se estabelecendo a constitucionalidade do mesmo parecer, e apenas isto. Mas se o parecer é constitucional porque o artigo 192, parágrafo 3º, da Constituição Federal, para aquela alta Corte, não é autoaplicável, a res judicata alcança apenas esse parecer, não a afirmação da auto aplicabilidade, razão de decidir, ou premissa de julgamento, expressamente imune à autoridade da coisa julgada (artigo 470 do CPC); consequentemente, como o Supremo Tribunal Federal não afirmou, com autoridade de res judicata, a não auto aplicabilidade, qualquer juiz ou tribunal pode, sem estar vinculado àquela decisão, questionar a matéria. Com isso afasta-se o argumento sempre empregado pelos bancos, os quais, sistematicamente, e mesmo compreensivelmente, defendem a tese da não auto aplicabilidade do dispositivo.

De outro lado, a boa doutrina adere à tese da auto aplicabilidade:

É autoaplicável o disposto no art. 192, parágrafo 3º, da nova Constituição, ao fixar a taxa de juros em 12% a .a (Nagib Slaibi Filho, Anotações à Constituição de 1988, Aspectos Fundamentais, Forense, 1992, 3ª edição, e também, entre outros, Luís Roberto Barroso, ibidem)

Outrossim, algumas Câmaras do Tribunal de Alçada do Paraná Vêm decidindo reiteradamente no mesmo sentido:

O art. 192 parágrafo 3º da Constituição Federal é autoaplicável e não depende de regulamentação (Apelação Cível 0114656-3, de União da Vitória, Relator Juiz Ruy Cunha Sobrinho).

Por isso, a taxa de juros a ser considerada é a de 1% (um por cento) ao mês, conforme planilha de análise de transações financeiras apresentada.

b) Anatocismo.

O embargado não impugnou a capitalização dos juros.

E a Lei de Usura veda o anatocismo mesmo para as instituições financeiras.

Nesse sentido:

Não se discute que continua em vigor o artigo 4º do Decreto 22.626/33, aplicável mesmo às operações realizadas por instituições financeiras (STJ, ADV 74488)

De acordo com o nosso Direito, impõe-se lei necessária a fim de permitir a capitalização (Arnaldo Rizzardo, Contratos Bancários, p. 277, n 3, Editora Revista dos Tribunais, 1994, 2ª edição).

Diante de todo o exposto Eméritos Julgadores, pelo que o notório conhecimento desta C. Câmara certamente suprirá, respeitosamente requer, pelo recebimento do presente recurso de apelação, requerendo, ainda, pelo seu provimento, inicialmente, para acolher a preliminar levantada e extinguir o feito e, sendo ultrapassada, para dar provimento ao apelo para declarar a ilegalidade da taxa de juros cobrada além do que a Constituição Federal permite, na forma apresentada pelo Relatório de Análises Financeiras, excluir a capitalização dos juros e incluir como índice de correção o IGP-M, excluindo, consequentemente, a TR e invertendo o ônus de sucumbência.

Pede Deferimento.

[Local], [dia] de [mês] de [ano].

[Assinatura do Advogado]

[Número de Inscrição na OAB]

Como citar e referenciar este artigo:
MODELO,. Modelo de Recurso – inexistência de título extrajudicial nos autos. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2014. Disponível em: https://investidura.com.br/modelos/direito-do-consumidor-modelos/modelo-de-recurso-inexistencia-de-titulo-extrajudicial-nos-autos/ Acesso em: 19 abr. 2024