Teoria Constitucional

Mutação Constitucional

Rafael Cataneo Becker*

 

 

ZANZONADE, Adriana. Mutação constitucional. Revista de Direito Constitucional e Internacional. Ano 9. Abril-Junho 2001, N.35. IBDC. Ed. RJ.

 

 

1. Introdução

 

            Mutação constitucional é o processo informal de alteração da Constituição, ou seja, meio de modificação não por ela previsto que se envolve em um dilema, o dilema da modificabilidade, visando à coerência social, sem perda de estabilidade.

 

2. Modificabilidade da Constituição

 

2.1 A Supremacia da Constituição e a rigidez constitucional

 

            Do Constitucionalismo como movimento surge a idéia da Constituição em sua superioridade hierárquica e como regulamentação exaustiva do Estado. James Bryce, no século XIX, cunhou a classificação das Constituições em rígidas – cuja modificação formal é lenta e difícil – e flexíveis – cujas regras são tão modificáveis quanto as outras leis -. O ponto de suporte da rigidez são a estabilidade e segurança jurídicas, numa proteção da norma muito mais rigorosa àquela dada para com as normas infraconstitucionais.  Rigidez não significa imobilidade. Muito pelo contrário, sabe-se que a rigidez absoluta evita aperfeiçoamentos necessários pelas mudanças sociais podendo levar somente a uma ruptura radical e a uma desvalorização do pensamento constitucional.

 

2.2 O caráter aberto da Constituição

 

            Toda Constituição pode apresentar dois vazios: a incompletude – falta de disposições – e a indeterminação – caráter genérico de disposições -. Eles decorrem do repasse de tarefas à legislação infraconstitucional ou da impossibilidade de detalhamento dentro do corpo constitucional. Disso se extrai a abertura constitucional que se envolve em um dilema: coexistir com a  rigidez em que se escoram a certeza e segurança jurídicas e conservar-se para não se tornar indiferente à realidade.

 

2.3 A modificabilidade da Constituição

 

            A modificabilidade constitucional tem dois caminhos: o formal, representado pela reforma – por emenda ou revisão – e o informal, representado pela mutação.

 

3. Mutação Constitucional

 

3.1 Considerações introdutórias – Natureza, conceito, nomenclatura

 

            Zanzonade trata do termo ‘’mutação constitucional” desprovido de axiologia, ou seja, de consideração sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade que dele podem derivar. Encontram-se, ressalva feita, na mutação constitucional, duas características básicas:

 

1)      é um processo informal de alteração constitucional posto que não se encontra prevista nas normas constitucionais

2)      a alteração constitucional que promove não atinge o texto da norma constitucional, mas apenas o seu significado, sentido ou alcance

 

3.2 Fundamento

 

            Do poder constituinte originário nasce uma Constituição e dela um poder constituinte derivado para possíveis reparos ao passo em que, paralelamente, um poder constituinte difuso é responsável pela promoção de mutações constitucionais.

            Zanzonade, numa separação conceitual, critica a nomenclatura ‘’poder constituinte derivado”, por se tratar de poder, na realidade, constituído. Em termos de causa, está certa, pois que o poder constituinte derivado é, sim, poder constituído e previsto  em dados moldes. Tem-se, contudo, que o poder constituinte derivado, em termos de efeitos, age analogamente a um poder constituinte genérico, em uma palavra, do qual derivam composições constitucionais.

            Em outro caso, numa junção conceitual, Zanzonade relaciona diretamente o poder constituinte da mutação constitucional ao poder constituinte originário, posto que além deste só há poder constituído e, como a mutação é informal, de processo não-definido, ela corresponderia integralmente àquele poder constituinte originário.

            Não vejo razão em nenhuma das duas assertivas nos seguintes campos: em se destacando efeitos, cada um dos três poderes tem um efeito constituinte, o que torna a separação e a não concessão do termo ‘’constituinte” ao ‘’poder constituinte derivado” uma cisma terminológica; e não há por que unir o poder primeiro que coloca a Constituição (poder constituinte originário) ao responsável pela mutação constitucional, tendo em vista suas diferenças circunstanciais efetivas e também substanciais, uma vez que os limites do poder da mutação se dão pelos parâmetros constitucionais, de sorte que não caberia a um poder  num primeiro momento dar as cartas para a sua subtração, num segundo  

            Disso, concluo que a secção do poder constituinte genérico em três ramos, o originário, o derivado e o difuso, em se tratando de circunstância e efeitos, é coerente e útil.

 

3.3 Limites

 

            O limite maior da mutação constitucional é o próprio texto da Constituição, ficando, sua atuação, restrita no tocante à inflexão de sentido, alcance ou significado do mesmo, em suma, a possibilidades de interpretação.

 

3.4 Alterações produzidas por mutação constitucional

 

            3.4.1 Identificação

 

            Somente pode-se identificar a mutação constitucional mediante cuidadoso exame comparativo do entendimento de um mesmo texto constitucional em épocas distintas.  Constata-se que quanto mais rígida a Constituição, mas proliferam-se os processos informais de alteração. Tais processos, em ritmo de ocorrência, variam na proporção das transformações sociais de cada comunidade e podem modificar substancialmente a realidade constitucional.

 

            3.4.2 Mutações constitucionais inconstitucionais

 

            Mutações constitucionais inconstitucionais são anomalias do procedimento informal de alteração da Constituição em decorrência de conflitos com o sistema constitucional em si.  Têm sua causa num conjunto de razões intimamente ligadas ao sistema de controle de constitucionalidade manifestando-se sobretudo em decisões judiciais e atividades legislativas portadoras de desvios. Sobre o controle constitucional, destaca-se a importância de grupos de pressão da opinião pública.

 

            3.4.3 Meios de realização

 

            Próximo capítulo.

 

4. Meios de realização de mutação constitucional

 

4.1 Considerações preliminares

 

            O assunto não pode ser estudado senão exemplificativamente, de um ponto de vista mais prático.

 

4.2 O papel da interpretação

 

            Da norma geral, por interpretação – método dedutivo -, chega-se à norma concreta e à aplicação; da norma concreta, por generalização – método indutivo -, chega-se à norma geral. Com isso entende-se interpretação pela conexão entre signo e significado, entre Constituição formal e realidade, de modo a se caracterizar como via de realização da mutação constitucional por excelência.

            A interpretação é favorecida pela expressão da norma em linguagem, sobretudo em disposições imprecisas ou sintéticas. Cada expressão terá significação influída por circunstância histórica.  Especialmente as normas constitucionais absorvem riqueza de conceitos não-jurídicos (morais, filosóficos, econômicos, políticos) cujo significado, sentido ou alcance variam constantemente.

            Um exemplo disso era o artigo 153, parágrafo oitavo da CF/67 que assegurava liberdades diversas permitindo, ao final, restrições com base na moral e bons costumes e na ordem pública. Ora, a disciplina restritiva será diretamente proporcional à interpretação dada pelo disciplinador no que entende por ‘’moral”, ‘’bons costumes” e ‘’ordem pública”.

            A interpretação pode se individualizar em vias específicas de obtenção de mutações constitucionais.

 

4.3 Vias de obtenção de mutação constitucional

 

            4.3.1 Lei

 

            Cabe ao legislativo, como uma de suas tarefas, a concretização da Constituição atuando como complementação legislativa. Tal ato extensivo é inexoravelmente precedido de interpretação responsável pela definição de alcance, de sentido ou de significado pelos quais se fixa o conteúdo concreto de uma norma. Qualquer eficácia de norma constitucional é passível de mutação: a de eficácia contida (alcance limitado), a de eficácia limitada (dependente de lei infraconstitucional) e mesmo a de eficácia plena.

 O veículo da mutação constitucional pelo viés legislativo é, pois, a promulgação de leis. A isso se destina a coerência com a letra e o espírito da Constituição, sendo atribuído ao controle de constitucionalidade as questões de uso impróprio e pernicioso de tal via informal de alteração.

            Exemplo: Dispunha-se na CF-46, art. 157, os atributos da previdência social; o parágrafo único proibia qualquer distinção entre o trabalho técnico e o intelectual. Tendo origem nesse dispositivo, em 1960, o Congresso editou uma Lei de Previdência Social (Lei 3.807, de 26.08.1960) excluindo trabalhadores rurais e empregados de outra natureza. Vieram as Constituições de 67 e 69, que não modificaram o texto nessa substância e, em 1972 (Lei 5.859, de 11.12.1972), os empregados domésticos seguidos dos trabalhadores rurais, em 1973 (Lei 5.889, de 08.06.1973), foram alcançados pela mesma Lei de Previdência.

 

            4.3.2 Decisão judicial

 

            Decisões judiciais abarcam a maior freqüência, entre os demais processos, de mutações constitucionais, sobretudo porque a interpretação é função maior do juiz, a quem cabe aplicar o que há de abstrato na Constituição ao caso concreto.

            Nesses casos, o controle de constitucionalidade se dá no seio do próprio Poder Judiciário, fundamentalmente pela apreciação de certa matéria em instâncias superiores. Caso esgotados os recursos, há ainda procedimentos alternativos de revisão. Nos EUA, há o recall, controle popular capaz de cassar decisões judiciais. Na Suíça, o referendum, caso semelhante em que o Poder Judiciário pode delegar ao povo a deliberação acerca de lei pressuposta inconstitucional. Por fim, as emendas constitucionais também são possibilidade de controle: nos EUA, a Corte Suprema passava por dificuldade sobre a cobrança do imposto de renda, dificuldade esta superada pela Emenda XVI à Constituição de 1787.  

            No Brasil, as mutações constitucionais por decisão judicial são de pouca expressão devido a três fatores: a) predominância do Poder Executivo sobre a Corte Suprema; b) freqüentes reformas constitucionais; e c) instabilidade institucional.

            Exemplo: A mais importante contribuição do Judiciário, no país, em termos de mutação, veio por meio da ampla interpretação do habeas corpus, um conceito constitucional genérico que assumiu proteção efetiva contra quaisquer lesões de direitos pessoais porventura praticadas por autoridade pública. Nenhum ouro país atribui ao habeas corpus tamanha consistência.

 

            4.3.3 Ato administrativo           

 

            Do Poder Executivo editam-se atos com potencial de provocar mutação constitucional pela discricionariedade de execução. É atribuída à Administração a tarefa de concretizar a Constituição na seguridade social, na educação, na cultura, na comunicação social, no meio ambiente entre outros tópicos. Em tais situações, ocorre o controle jurisdicional de constitucionalidade e legalidade.

            Exemplo: Dos artigos 179 e 180 da CF/67, constava ao Poder Público o cuidado com a pesquisa científica, a preservação de obras, documentos e locais históricos ou artísticos bem como monumentos e paisagens naturais notáveis e jazidas arqueológicas. É óbvio, assim, que a consecução – ou não – de tais dispositivos foi controlada pela interpretação e preferências administrativas.

 

            4.3.4 Costume

 

            Costume é toda prática repetida que toma para si ares de obrigatoriedade. Diversos costumes provocam mutações constitucionais, dividindo-se em: a) costume secundum legem – interpretativo -; b) costume praeter legem – integrativo -; e c) costume contra legem – derrogatório – (c.1: consuetudo abrogatoria – revoga disposições -; c.2: desuetudo – desuso -).

           

Exemplo:

 

a) – A maioria de membros das Câmaras, na Itália, calcula-se se subtraindo do número de participantes os parlamentares legalmente ausentes e os em missão oficial, sem prévia disposição constitucional.

–  O poder do Presidente dos EUA de distribuir cargos públicos é por costume feito em parte por cortesia senatorial, ou seja, por indicação dos senadores de seu apoio.

– A vedação de reeleição para o cargo de Presidente da República, na França, até 1939, é interpretação costumeira de uma norma constitucional que admite vários sentidos.

 

b) – Sem base constitucional, a  proibição de reeleição para Presidente, nos EUA, por mais de dois mandatos consecutivos, foi, por um século e meio, uma integração da temporariedade de mandatos.

– Sem base constitucional, a delegação legislativa, na Suíça, que se manifestou como interferência do Governo em adaptações de leis, realizada em circunstâncias excepcionais, foi praticada durante anos. 

 

c.1) – República Parlamentar, no Chile, até 1925, estabelecendo a Constituição o presidencialismo como forma de governo.

– Restabelecimento militar, do Japão, em detrimento da Constituição de 1946.

Criação de novo exército alemão, antes de 1954, que era vetada pela adesão à Comunidade Européia de Defesa.

Investidura do então Vice-Presidente Marechal Floriano Peixoto no cargo de Presidente da República, contra o art. 42 da CF/1891, que determinava nova eleição em caso de vaga ocorrida precedente a dois anos de mandato.

 

c.2) – Referendo legislativo e convocação de sessão extraordinária das Câmaras, duas possibilidades jamais utilizadas pela população.

O direito do Presidente francês de solicitar nova deliberação de lei aprovada pelas duas Câmaras jamais foi utilizado.

 

 

5. Conclusão

 

Toda Constituição, flexível ou rígida, apresenta modificabilidade por ser incompleta, inacabada e aberta ao tempo. A modificabilidade dá-se por mecanismos divididos em formais e informais. Mutação constitucional é o processo informal de modificação constitucional que ocorre, logo, somente em sentido, significado ou alcance – nunca em letra – e que apresenta as seguintes propriedades:

 

– Fundamento: exercício difuso do Poder Constituinte (para a autora)

– Limites:          – extrajurídico ou circunstancial.

– letra e espírito da Constituição (este último em se negando as mutações ‘’inconstitucionais”).

            – Freqüência:     quanto maior a dinâmica social, tão mais ocorrerão mutações.

Identificação: exame comparativo atribuído à mesma norma constitucional em momentos distintos.

– Mediador: a interpretação é mediadora por excelência da mutação pois normas constitucionais:

 

a)      expressam-se em linguagem

b)      abundam conceitos não-jurídicos

c)      comportam conceitos imprecisos ou sintéticos

 

Vias imediatas de realização: dividem-se em:

 

a)      ato legislativo

b)      decisão judicial

c)      ato administrativo

 

d)      costume

Controle: é necessário o controle das mutações constitucionais mediante sua análise cautelosa para que se impeçam usos impróprios realçando a possibilidade de atualizar e concretizar a Constituição.

           

 

*Acadêmico de Direito na UFSC

 

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Como citar e referenciar este artigo:
BECKER, Rafael. Mutação Constitucional. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/resumos/teoria-constitucional-resumos/mutconst/ Acesso em: 19 mar. 2024