Criminologia

Penas Perdidas – Hulsman

 

 

 

 

HULSMAN, L. H. C; BERNAT DE CELIS, Jacqueline. Penas perdidas : o sistema penal em questão. 2. ed. Niteroi: Luam, 1997. 180p

 

 

Que abolição?

 

A perspectiva abolicionista: apresentação em dois tempos

 

 

Opinião Pública

 

Os discursos políticos, a mídia e estudiosos da política criminal criaram o “homem comum”, covarde e vingativo, que representa o criminoso contra o qual o sistema penal deve atuar para que não possa perturbar a sociedade.

Na verdade este homem comum não existe e nada mais é do que um meio de legitimação do sistema vigente. Ele é moldado por números que acabam dizendo o que não expressam, reforçados pela opinião pública e a idéia de um só homem comum, quando há vários homens e mulheres com seus erros e suas humanidades.

A maior parte da população ignora como funciona o sistema penal, embora sintam que há algo de errado nesta política criminal atual. Quando eles entenderem o papel que esta máquina de punir e excluir tem reivindicarão sua abolição.

 

 

Os bons e os maus

 

A mídia e as produções dramáticas perpetuam a idéia simplista de que há bons de um lado e maus de outro – o maniqueísmo. Apesar disso, as pessoas e situações são cheias de nuances que não obedecem a essa simplificação.

Há pessoas que são críticas em relação a este maniqueísmo das instituições que caem no erro de acharem que as leis e as estruturas promoverão a paz social. Então mantêm-se os símbolos da justiça (policiais, juízes e legisladores) contra os “delinqüentes” (os anormais sociais, que seriam facilmente identificáveis).

 

 

A máquina

 

A defesa do sistema se dá de várias formas: o Código Penal limitaria as condutas puníveis; o Código de Processo Penal garantiria a não-arbitrariedade das prisões; os juízes são independentes do Executivo; os processos são públicos etc. Além disso, a quem servem o princípio da igualdade perante a lei e a regra da intervenção mínima da máquina repressiva (tribunais e direito penal apenas como último recurso). Na prática, como se sabe, não há uma justiça serena e limpa.

Na prática são condenadas pessoas que não têm laços sociais sólidos, de maneira rápida com base em inquéritos policiais simples. Existe também aqueles que são presos antes mesmo de terem seus processos iniciados ou por um suposto desacato a autoridade. A eles a justiça é eficiente?

 

 

Burocracia

 

A imagem passada pelo discurso oficial (político, jurídico, científico etc.) de que o sistema penal é racional e controlado pelo homem é uma falácia. As instituições estão tão compartimentalizadas em estruturas independentes e voltadas para si mesmas que não se preocupam com o que passou antes e com o que passará depois delas.

O resultado disso é que, por causa da burocracia, estes órgãos se voltam mais para a sua estrutura interna do que externa. Cada um segue uma ideologia, o que muitas vezes os fazem entram em choque uns com os outros, uma cultura própria que não os permitem compartilhar valores em comum, a não ser referências vagas à lei penal. O sistema penal fica, portanto, desalmado.

 

 

Um filme espantoso

 

Um filme produzido pelo Ministério da Justiça dos Países Baixos demonstrou como funciona o sistema de justiça repressiva. É surpreendente como há uma compartimentação de funções de forma que nem mesmo na etapa policial não havia qualquer possibilidade de existir uma responsabilização pessoal pelo que se passava.

A frieza e a mecanização marcam todas as etapas. De forma genérica, nenhum dos agentes do sistema parece ter vontade de humilhar o acusado. O que causa o sentimento de degradação pessoal é o papel entregue a cada um somado à sucessão destes mesmos papéis. Muitos dos agentes não acreditam no sistema e gostariam de não punir, mas são profissionais.

“É como se estivéssemos numa linha de montagem, onde o acusado vai avançando: cada um dos encarregados aperta seu parafuso e, ao final da linha de montagem, sai o produto final do sistema – de cada quatro pessoas, um prisioneiro” (p. 61).

 

 

Olhando de dentro

 

Em nome da defesa dos valores sociais é-nos passada a idéia de que, para nos proteger das empreitadas criminosas, é suficiente colocar os criminosos atrás das grades. A prisão para todos é uma abstração. Na realidade, mais do que privar alguém de sua liberdade, ela representa um castigo corporal: degrada-se o corpo com a privação de ar, de luz, do espaço etc.

A degradação não acaba aí. A vida pessoal do encarcerado também é afetada. Antes ele tinha um emprego que o permitia sustentar sua família. Agora a prisão obriga sua família a trabalhar de forma que não só ele, mas ela também, são obrigados a lidar com o estigma de ter um ente familiar preso ou que esteve na prisão.

A prisão é um meio alienante por meio do qual tudo se torna negativo: é um sofrimento estéril. Ela não tem sentido porque é um sofrimento que não leva a nenhum crescimento. Tanto o preso, como a sua família e a sociedade não extraem benefícios dela. Há, ainda, a despersonificação do preso que influencia na sua auto-estima e impede uma comunicação autentica com outro preso.

 

 

Relatividade

 

A antipatia por quem é preso é justificada pela idéia de que ele fez por merecer, ou, em termos jurídicos, de que foi julgado por um fato punível com pena de prisão. Não se questiona sobre o que pode ser considerado crime.

Hoje em dia, ser homossexual ou bígamo são condutas que, a depender dos países, podem ou não ser punidas. Por isso “não há nada na natureza do fato, na sua natureza intrínseca que permita reconhecer se se trata ou não de um crime – ou de um delito [com penas mais graves]” (p. 63).

Condutas como arrombar uma violência, tentar dar um golpe de Estado ou obter favorecimento pessoal só tem em comum a artificialidade de terem sido criadas, formalmente, pelo sistema de justiça criminal. Caracterizá-la ou não como crime depende de uma decisão humana modificável. “É a lei que diz onde está o crime; é a lei que cria o ‘criminoso’” )p. 64).

 

 

 

Cifra negra

 

A cifra negra representa crimes que não foram perseguidos. “Se um grande número de vítimas não denuncia os fatos puníveis à policia, esta também não transmite todos os fatos que lhe são comunicados ao Parquet, o qual, por sua vez, longe de mover processos em relação a todos os fatos que lhe são submetidos, arquiva a maior parte. Isto quer dizer que o sistema penal, longe de funcionar na totalidade dos casos em que teria competência para agir, funciona em um ritmo extremamente reduzido” (p. 65).

Isto faz a noção de crime ser revista: os fatos enquadrados na lei penal não são encarados como tal pelas vítimas ou por agentes que deveriam fazer denúncias concretas, de forma que eles não são sentidos pela população como se fossem de natureza diferente.

Portanto, não é normal um sistema que age de forma tão baixa na vida das pessoas. “A cifra negra deixa de ser uma anomalia para se constituir na prova tangível do absurdo de um sistema por natureza estranho à vida das pessoas” (p. 66).

 

 

O culpado necessário

 

O sistema nada mais faz do que fabricar culpados. E isto não é uma exclusividade do direito penal. Em alguns países, por exemplo, só é concedido o divórcio quando for comprovada uma má conduta de um dos cônjuges. Assim como o direito penal, “um sistema desta natureza favorece falsidades e simulações bem pouco elogiáveis. Por outro lado, tende a exacerbar os conflitos, na medida em que só oferece soluções se uma das partes tiver errado e se este erro tiver sido reconhecido e condenado” (p. 67).

O direito atua assim a partir do momento em que afirma a culpabilidade de um dos protagonistas. O sistema sempre atua contra alguém: o culpado que vai ser condenado. Quando é impossível determinar a culpabilidade, como em casos de doença mental ou em função da idade, o sistema se torna impotente.

 

 

Filha da escolástica

 

Por ter sido concebido num clima de teologia escolástica, o sistema penal absorve uma visão religiosa do mundo. Continua, embora o Estado seja considerado laico, a idéia de que as instituições são expressão de uma justiça eterna.

Existe também a moral maniqueísta herdada da tradição escolástica, responsável pela dicotomia inocente-culpado. Muitas pessoas superaram esta visão em sua vida, mas mantêm-na no entendimento do sistema penal.

 

 

O estigma

 

Não é a existência do sistema penal que faz as pessoas sentirem culpa pelo que fizeram e reverem sua atitude, como prega a justificativa do atual sistema. O encarceramento produz um estigma que pode se tornar profundo. Estudos demonstram que a percepção de uma pessoa presa muda, de forma que ela passa a ser ver com uma imagem de marginal, um desviante. Os etiquetamento legal e social criam, também no nível interno, o delinqüente.

 

 

Exclusão

 

O pensamento burocrático a que estamos acostumados tem um poder repressivo que está presente em todos os aspectos da vida. Um grupo de junkies, utilizadores de heroína, queixaram-se da política de drogas e, para solucionar o impasse sustentavam a criminalização de quem vendesse a droga, e não mais a deles. Ou seja, eles passariam para o lado bom ao impor aos vendedores o lado mau da política anti-drogas.

 

 

Impasse

 

“Mostrar os condenados à prisão como culpados que merecem castigo alimenta a seu respeito o espírito de vingança” (p. 71). A visão que se tem do presidiário é piorada sob vários aspectos, com a idéia que se tem de que ele nada mais seria do que um veranista às custas do Estado. Soma-se à isso a repulsa ao trabalho dos presos que, segundo a população em geral, não trabalhar e muito menos ter qualquer tipo de qualidade de vida. Ou seja, quem foi condenado é culpado para o resto da vida.

 

 

Repercussões

 

Espera-se que quem causou mal a outrem se arrependa e tenha compaixão pelo outro. Só que isto não vai acontecer com um sistema que o despreza e lhe impõe um castigo desmedido. “O sistema penal endurece o condenado, jogando-o contra a ‘ordem social’ na qual pretende reintroduzi-lo, fazendo dele uma outra vítima” (p. 72).

 

 

Acidentes?

 

Para a reparação de danos não é necessário que pessoas sejam definidas como culpadas – ao menos para danos a que as leis se referem, que não ultrapassam prejuízos materiais. A responsabilidade pessoal não precisa desaparecer: ela pode permanecer quando os responsáveis acusados puderem, assim como em regras civis de indenização, pagarem os prejuízos.

“Já existem casos, mesmo casos ‘graves’, eventualmente mortes de pessas, que não são legalmente tratados pelo sistema penal. A seu respeito, falamos em ‘acidentes’: os acidentes do trabalho, por exemplo. Neste campo, procura-se a indenização dos danos causados às vítimas; aqui, não se pensa em punir um culpado…” (p. 73).

Prova de que isto é possível é a existência de homicídios que não são punidos por causa da posição do autor, como policial, e que são enquadrados como acidentes. Os problemas são deixados de fora do sistema penal. Mesmo nas leis penais, há atos que não são punidos com resposta repressiva, por causa do entendimento de que eram inevitáveis por causa das circunstâncias, como estado de necessidade e cumprimento do dever legal.

“Isto talvez signifique que, na medida em que se encara um acontecimento com um a priori de simpatia, quando de vêem as coisas de perto, quando se recoloca um ato em seus ambientes próximo e distante e no significado que tem para o autor, torna-se bastante difícil – e parece injusto – apontar um culpado, para fazê-lo suportar sozinho uma situação que, geralmente, lhe transcende” (p. 74).

 

 

Poucos remanescentes

 

“Na verdade, a maioria dos conflitos interpessoais se resolve fora do sistema penal, graças a acordos, mediações, decisões privadas dos interessados” (p. 74). Como isto se dá? No Brasil? Em um ano, nos Países Baixos, apenas 600 abusos de confiança foram julgados. Isto mostra que, no seio das famílias, empresas, estabelecimentos de ensino, organizações profissionais etc., foram encontradas outras formas de resulução de conflitos.

No sistema penal dificilmente um fato punível chega a ele. Por que só alguns chegam ao sistema penal? E por que justamente estes?

 

 

Pré-seleção

 

São sempre os despossuídos que vão presos: “pessoas que têm problemas com a lei e não têm ninguém a seu lado para resolver as coisas amigavelmente… os marginalizados, os ‘casos sociais’. O sistema penal visivelmente cria e reforça as desigualdades sociais” (p. 75).

 

 

Deixa pra lá

 

Hulsman propõe uma auto – reflexão de todos para com o sistema penal. Ao se contentar com as idéias e noticiários sobre esse sistema que é marcado pela violência, mortes, motins e, ao mesmo tempo, os homens que conhecem essa realidade se dizem impotentes, estão todos consentindo e se comprometendo com o sistema penal que os mesmos criaram.

 

 

Distâncias siderais

 

Indaga-se: Você acha a prisão um meio normal de castigar e excluir alguns de seus semelhantes? Entretanto você não quer na sua linha ética de conduta que o sofrimento seja evitado. Há ai uma contradição. Os diversos burocratas anônimos que decidem ou contribuem para que seja ditada a condenação de alguém têm poucos contatos sociológicos com os que irão sofrê-la. O policial intervém no começo da linha criando desde já um sentimento de autoridade na relação agora “vencedor- vencido”. Os políticos que fazem as leis agem no abstrato. Se uma vez visitaram a prisão foi como turistas. Os juizes de carreira estão psicologicamente distantes dos homens que condenam, pois pertencem a uma camada social distinta. E para aquele que circula livremente, a prisão e o preso são coisas mais distantes.

 

 

O jogo de propostas discordantes

 

Os agentes do sistema alimentam o monstro sem mesmo querer. Nos países baixos existe um conselho consultivo que é chamado a opinar sobre os diferentes órgãos do sistema penal. Hulsman fazia parte desse grupo e cita um caso do problema de heroína. Mas, cada um dos presentes tomava a palavra sem levar em conta às observações do vizinho. Um médico fez sua leitura mostrando que os dependentes de heroína eram doentes e precisavam ser curados através de um programa de ajuda, fornecendo uma substância substitutiva. Veio então um juiz e disse que era possível evitar a detenção se eles aceitassem se tratar, mas como eles jamais respeitam as condições, não haveria outro jeito senão a prisão. Hulsman propôs a descriminalização da heroína. Da mesma idéia compartilhou um psiquiatra. Mas cada um ficou com sua visão e nada foi resolvido, como sempre. No ímpeto de solucionar, nesse jogo de idéias, querem que as suas preponderem.

 

 

A reinterpretação

 

Quando o papa João Paulo II sofreu uma tentativa de homicídio em 1981, dias depois desculpou seu agressor o chamando de irmão. Estava ele, num universos distinto daquele da justiça criminal

 

 

Os filtros

 

No sistema penal não se escutam realmente as pessoas envolvidas. Não se registra o que elas dizem com suas próprias palavras. São feitos formulários que refletem uma das subculturas do sistema penal. Nos autos que chegam aos que vão proferir a sentença há documentos semelhantes. São tantos filtros que estereotipam o individuo, seu meio e seus atos.

 

 

O foco

 

O sistema focaliza um momento a um ato. Estreitam as visões extremamente visando e debatendo apenas um ato por um dos protagonistas, sem levar em consideração o contexto geral.

 

 

À margem do assunto

 

O sistema penal rouba o conflito das pessoas diretamente envolvidas nele. Quando o problema cai no aparelho judicial deixa de pertencer àqueles que o protagonizaram etiquetados como o “deliquente” e “a vítima”.

A vítima não pode parar mais a ação pública, não lhe é permitido oferecer ou aceitar um procedimento de conciliação que poderia assegurar uma reparação aceitável. Mas foi seu assunto o que esteve na origem da engrenagem do processo penal. Quando o sistema se apropria de um assunto que não é seu, ignora o caráter evolutivo das experiências interiores. Assim, nada tem a ver com o que vivem e pensam os protagonistas no dia do julgamento e o sistema penal trata de problemas que não existem.

 

 

Estereótipos

 

Muitas vítimas desejariam ter um encontro com seus agressores, saber o porquê foram atacadas, o que poderia significar uma libertação. A intervenção estereotipada do sistema penal age tanto sobre a “vitima”, como sobre o “deliquente”. Todos são tratados da mesma maneira. Supõe-se que as vítimas têm as mesmas reações.. o sistema não leva em conta pois age em abstrato.   

 

 

Ficções

 

O sistema penal impõe um único tipo de reação: a reação punitiva. Mas é muito mais raro que essa pessoa atingida realmente queira punir pelo acontecimento. Portanto, ao decretar-se uma pena burocrática o sistema penal esquece da pena real, uma pena relacionada com a emoção e o dano que a pessoa sofreu, condenando-se desde então a sofrer por razoes impessoais e fictícias.

 

 

A pena legítima

 

Hulsman pretende não abolir a pena, mas sim àquela concebida e aplicada pelo sistema penal, ou seja, por uma organização estatal investida do poder de produzir um mal sem que sejam ouvidas as partes interessadas. Não é rejeitar uma medida coercitiva, nem de suprimir a responsabilidade pessoal.

A “pena” parece ter dois elementos.

uma relação de poder entre aquele que pune e o que é responsável;

em determinados casos a pena é reforçada por elementos de penitência e de sofrimento impostos em virtude daquela relação de poder.

 

O funcionamento burocrático do sistema penal não permite um acordo satisfatório entre  as partes. Nesse contexto os riscos de uma punição desmedida são elevados. É uma organização estatal contra um indivíduo. Ao nível macro, estatal, as noções de pena e de responsabilidade individual resultam fictícias, traumatizantes.

 

 

O impacto

 

O sistema penal é especificamente concebido para fazer mal. Ele é estigmatizante, ou seja, gera perda de dignidade. Uma pesquisa realizada nos Países-Baixos revela tal impacto. O serviço estatístico levantou o prontuário judicial e mostrou que deduzido tudo, de dez pessoas uma havia sido condenada a uma pena de prisão. Se você acha isso inverossímil é porque você pertence a uma camada social menos exposta. Na categoria mais desfavorecida, de cada 5 uma foi presa, já na mais favorecida somente uma a cada 70. Mais de 120 mil pessoas passaram pelas prisões em um ano. E o sistema penal afeta ainda as famílias.

 

Noutro lugar e de outra forma

 

Hulman demonstra que é fácil a abolição do sistema penal. Ele é mesmo um dos poucos “ordenamentos sociais” que poderiam desaparecer sem causar maiores problemas. Até porque as organizações que o compõem nada dependem dele. A idéia é a seguinte.

O papel da polícia seria convertido em assistencialismo, retirando suas funções atuais, ganhando assim a respeitabilidade. Os Juízes e o MP, como passaram pelo mesmo ramo, poderiam passar de um para outro. Suprimir o sistema penal não implicaria uma reforma na magistratura, pois se dedicariam às questões cíveis. O parlamento, o governo e os ministérios permitiria uma nova mentalidade, já que não é unicamente a produção de normas repressivas. A administração penitenciária seria diretamente alcançada  direcionada para os serviços de assistência.

Se fosse abolido o sistema penal, a maior parte dos que hoje participam de seu funcionamento continuaria tendo suas atividades asseguradas.

 

 

A libertação

 

É preciso abolir o sistema penal. A abolição do sistema será um sinal de renascimento do tecido social. Trata-se de dar vida às comunidades, às instituições e aos homens.   

 

 

Qual Liberdade?

 

 

Solidariedades

 

Existem movimentos que buscam “humanizar” as prisões, estes, por mais benevolentes que sejam, por muitas vezes apenas conseguem resultados irrisórios. Isso ocorre principalmente pois estes movimentos estão agindo no foco errado do problema, não basta procurar se solidarizar com a situação dos que já estão no cárcere, mas sim, se situar no início do processo, na seleção dos detentos.

As quatro solidariedades que deveriam existir são: a com os condenados, com os vitimizados; para com a sociedade, para que esta mude sua maneira de ver as crenças relacionadas ao sistema penal; e com os operadores do sistema. Com a assimilação destes quatro tipos de solidariedades não seria possível se contentar apenas com a reforma das prisões, ou com a abolição destas, mas somente com a abolição do Sistema Penal.

 

 

Círculo Vicioso

 

Não foram poucas as escolas que tentaram por outra idéia ao fim da pena privativa de liberdade, no entanto, é claro que sua suposta função, o retorno à sociedade, de fato não ocorre, o sistema penal permanece extremamente repressivo.

Outros métodos de pena estipulados, como a intervenção médica ou pedagógica, nunca deixaram de ter seu enfoque sobre o “autor”, sempre colocando o ser humano como o causador do fato deplorável. Para ser possível sair destas premissas seria necessário repensar a noção de “crime” e de “autor”, quebrar este tabu.

 

 

Vocabulário

 

Palavras como crime, criminoso ou criminalidade, teriam que ser retiradas do nosso vocabulário, pois, essas já passam à idéia do homem como transgressor do sistema penal repreensivo estatal, parte dos maus.

Um novo tipo de vocabulário seria essencial para a abolição do sistema em vigor, a palavra crime por si só já pressupõe um autor culpado, enquanto que pessoa envolvida, por exemplo, aborda o fato de maneira totalmente diferente. A linguagem mais aberta facilitaria novos enfrentamentos diante da situação.

 

 

Uma Outra Lógica

 

Não seria o bastante substituir as palavras se seus significados permanecerem os mesmos, é necessário que exista uma total reformulação ideológica na sociedade e no Sistema atual, substituir o Sistema Penal por soluções sobressalentes, não seria o suficiente, precisar-se-ia olhar a realidade com outros olhos.

A descriminalização de um fato típico, por exemplo, não pode vir sem todo um amparo social, como a lei do aborto na França que foi suportada por uma série de campanhas sociais alertando os jovens de métodos contraceptivos.

A descriminalização também significa a exclusão de alguns grupos e parcelas da sociedade como criminosos. Para tanto seria necessária a descentralização e desinstitucionalização do sistema penal, abrindo caminha para um sistema jurídico civil.

 

 

Cinco Estudantes

 

A metáfora dos cinco estudantes retrata de maneira mais concreta as interpretações do crime partindo do ponto de vista dos indivíduos e não o sócio-estatal:

“Cinco estudantes moram juntos. Num certo momento um deles se atira contra a televisão e danifica esta e alguns pratos. Seus companheiros reagem de formas diversas: o primeiro se enfurece e exige a expulsão do que causou o estrago; o segundo exige a compra de uma nova TV e pratos sendo que estes seriam pagos pelo causador dos danos; o terceiro fica chocado e pede que seu amigo seja levado ao médico; o último dos companheiros pensa em analisar todo o convívio dos estudantes e ver que atitudes acusaram a reação de seu amigo.”

Esta metáfora aborda os cinco estilos, o punitivo, o compensatório, o terapêutico e o conciliador. Se o fato ocorrido fosse diretamente tratado como crime, o único estilo abordado seria o punitivo. Ao ver do autor não existe crime, como a metáfora confirma, mas existem situações problemáticas, as quais se m a presença de diversas pessoas não podem ser resolvidas de forma humana.

 

 

O que é a Gravidade?

 

A gravidade pode ser classificada de diversas formas, com o prejuízo causado ou a intenção de fazer o mal do autor. De qualquer maneira é a gravidade que determina a ação do sistema penal, e tal argumento deve deixar de ser o fator para a reação social, saindo desta visão atrelada é possível buscar reações sociais mais satisfatórias.

 

 

Chaves de Leitura

 

A opção do encontro cara-a-cara com os envolvidos na situação problema tem que ser levada em consideração, para que sejam possíveis as tomadas de soluções realistas para os confrontos. A lei agiria apenas definindo uma linha de reação uniforme e definido as situações de aplicabilidade de cada linha. Essas linhas teriam de mudar a cada instante considerando e nunca esquecendo que cada situação é única. O mais importante é que o termo crime não será mais utilizado.

 

 

Boa Saúde

 

È impossível ter como objetivo uma total erradicação das situações problemas, mas faz parte da conduta humana normal passar por dificuldades.

Não será possível que em uma comunidade todos pensem e ajam de forma igual, sempre existirá o choque de mentalidades, o abolicionismo não busca suprimir as tensões ou acabar com as diferenças, ele busca aprender com essas, mas sem acreditar que vamos impedir todos os acontecimentos dolosos ou todos os enfrentamentos desagradáveis.

 

 

Uma Melhor Escolha

 

Com o desaparecimento do sistema penal será melhor para a sociedade tratar de seus problemas, a ação dos próprios interessados será a que irá incitar a ação do Estado.

 

 

Estruturas Paralelas

 

Para descriminalizar é necessário retirar parte da vida social do Sistema Penal, retirando-se uma conduta do Sistema e criando-se outros métodos de controle da situação é mais possível a reversão destes, como no caso da lei de maus tratos nos Países Baixos: “o governo instaurou o ‘médico de confiança’ responsável por cuidar discretamente dos casos de agressão contra as crianças com a ajuda de assistentes sociais, as medidas do Sistema Penal, através do juiz da infância, só são tomadas em ultimo caso”.

O sistema utilizado é o mais puro exemplo da descriminalização eficaz, se a ordem das ações fosse invertida, com o juiz atuando primeiro, o dano causado seria irreparável.

A solução usada foi a correta, a solução mais humana.

 

 

E a Violência?

 

Alguns afirmam que a abolição do sistema penal resultaria no aumento da violência, da ação dos malfeitores.

Em reposta a tal afirmação o autor expõe duas afirmações:

A primeira, as agressões, homicídios e roubos constituem a parcela menor de infrações; a segunda é que para isso acontecer teria que se provar que o sistema penal de fato protege a sociedade, que ele é o único capaz de prover proteção.

A repressão do sistema penal de forma alguma diminui a criminalidade ou a violência. A visão certa seria procurar outros meios de proteção, adaptados aos problemas concretos, porem é difícil imaginar que um dia exista um método de eficácia absolta.

 

 

Liberdade e Segurança

 

A liberdade e a segurança, não seriam perdidas com a abolição do sistema penal. A adoção de critérios mais humanos para solucionar os conflitos aproximaria as pessoas, e também, não se pode abolir também os sistemas de urgência, como por exemplo proibir a polícia de prender um indivíduo que está provocando iminente agressão. A polícia teria que ser rigorosamente controlada pelo poder judiciário afim de impedir abusos.

 

 

O Lado das Vítimas: Autodefesa

 

Alguns acreditam que a abolição do sistema atual resultaria no retorno de mecanismos como a vingança privada, no entanto esta é uma idéia um tanto errada, as pessoas não querem se vingar dos crimes causados contra elas, o que realmente buscam é a proteção contra estes, o que o sistema penal claramente não produz.

O enfoque abolicionista reconhece como o sistema penal não protege nem ajuda ninguém, por isso um reforço a este sistema já ineficaz de nada adiantaria, ao contrário do que o próprio sistema busca passar, pois, nele a vítima não encontra nenhum espaço.


Vítimas e Processo Penal

 

Os estudos realizados pelo Instituto Vera de Nova Iorque, provam que o sentimento de vingança e punitivos que acompanham as vítimas e as famílias no momento em que o fatos ocorrem tem tendência a desaparecer, muitos dos processos penais norte americano não são continuados por falta de testemunho das vítimas, algo essencial ao sistema de lá, isto, pois, as vítimas não buscam se submeter a um sistema penal, porque não sentem necessidade deste.

Nos casos onde já existia uma relação entre vítima e “autor” antes do fato passou a ser utilizado o mecanismo da conciliação, constatando-se que em boa parte as vítimas não queriam a persecução penal.

 

 

Vítimas: Suas Expectativas

 

Desde 1980 no Tribunal de Paris: Serviço de atendimento a vítimas e testemunhas

 

Desde 1980, funciona no Tribunal de Paris, um serviço de atendimento a vitimas e testemunhas. E com isso deu pra fazer uma análise do comportamento geral das vitimas.

As pessoas que comparecem a esse serviço não apresentam propósito vingativo

O que elas querem é obter reparação e reencontrar a paz, assim como alguém que as escute com paciência e simpatia. Essa talvez seja a revelação mais inesperada desse serviço. As pessoas na dificuldade e na dor têm, acima de tudo, necessidade de alguém que as escute.

Pessoas na dificuldade e na dor têm necessidade de que alguém as escute

 

 

 

Dimensão Simbólica da Pena

 

No nível micro das relações sociais pode ser encontradas formas punitivas humanas

 

Hulsman inicia dizendo que no micro das relações sociais, nas relações mais pessoais entre os cidadãos. Podem ser encontradas formas punitivas humanas. Na medida em que elas sejam aceitas e compreendidas entre os envolvidos. Sem precisar, assim, que recorrer ao aparelho estatal de justiça. Mas se elas quiserem recorrer à  justiça estatal, que seja no modo cível.

Na justiça macroestatal: modo cível

Porque no enfoque cível, o constrangimento, os sacrifícios, as soluções pecuniárias forçadas que esse tipo de procedimento propõe, pode sim ser satisfatório aos olhos do demandante.

Por que hulsman diz que a historia e a antropologia permite afirmar que não é a duração ou o horror do sofrimento que acalma aquele que ta pedindo por vingança, mas sim a dimensão simbólica da pena, que é a reprovação social daquele fato que ela sofreu.

Dimensão simbólica da pena: Reprovação social

 

 

E os Colarinhos Brancos

 

Evitar criminalização nos campos ainda não criminalizados

 

É comum e compreensível ouvir as pessoas falando: vamos botar na prisão aqueles que enganam o fisco, que enganam os consumidores, aqueles que remetem o seu capital para o exterior e etc… Mas a maquina penal continua sendo um mau sistema independentemente do julgamento moral e social da pessoa que teve determinado comportamento.

hulsman diz que nos campos ainda não criminalizados, deve-se evitar a qualquer preço a criminalização. Que se for pra buscar uma igualdade de tratamento entre todos, ele preferia que se estendessem aos pés-de-chinelo os tratamentos conciliatórios que existem pros grandes.

Extensão dos procedimentos conciliatórios dos “grandes” aos “pés-de-chinelo”

Pessoa Jurídica: Procedimento não penal

Ele exemplifica esse casos de colarinho branco com a Pessoa Jurídica. Porque instrumentos de regulamentação diferentes do penal já são utilizados e de forma bastante eficaz. Ele deu um exemplo de um lugar onde as empresas que desrespeitassem certa regra estavam impedias de fazer transações com o Estado.

Mas o que falta não são procedimentos não penais, mas sim uma vontade política clara e forte para aplicá-los. 

 

 

Um Olhar Através da História

 

Paris (1671) – Regulamento: Assembléias para pacificar conflitos

 

A França antiga já conhecia procedimentos não penais de resolução de conflitos. Existia um regulamento datado de 1671, que mencionava assembléias encarregadas de pacificar os conflitos. Essas assembléias eram compostas por duques, membros da câmera alta, oficiais do rei, advogados, comerciantes, dos membros do clero …. Com a intenção de trabalhar na mediação de todos os processos e querelas.

Esse regulamento mostra que, tanto na ordem civil como na religiosa, existia uma preocupação de levar as pessoas a evitar as instancias oficiais.

Holsman fala que vendo esse regulamento ficou impressionado com a insistência com que se procurava o acordo amigável, com que se procurava evitar a justiça oficial.

Evitar instâncias oficiais

 

 

Leviatã e Sociedade

 

Sociedade não se confunde com Estado e instituições estatais

 

A sociedade significa, em primeiro lugar, seus vínculos pessoais, suas relações de trabalho, de vizinhança, de lazer, sua igreja, seu bairro, sua comunidade. Por que deixar ao Estado, poder frequentemente anônimo e longínquo, o cuidado exclusivo com a resolução dos problemas nascidos dos nossos contatos mais pessoais?

Talvez existam esferas de decisão e de ação que devam permanecer sob a direção do Estado. Mas em muitos campos percebe-se seria mais vantajoso que ….

Seria mais vantajoso que os problemas fossem tratados pelas próprias pessoas ou por organizações que lhes são próximas

Exemplo: nas sociedades de Magreb, as questões são discutidas nos “seios da aldeia” até que haja unanimidade sobre a melhor forma de solucionar o conflito.

Para nós, o “Seio da Aldeia” é o bairro, a comissão de pais de alunos de uma turma da escola, o conselho de uma empresa, uma associação de pescadores, a união local de consumidores, etc…

Aonde, de fato, uma serie de conflitos encontra decisões definitivas

 

 

 

Sistema Cível

 

Na falha das formas naturais de resolução de conflitos, recorre-se a mecanismos artificiais: o Aparelho oficial de justiça

Enfoque cível – pode intervir de maneira mais útil que o sistema penal

– pode constituir um elemento de coerção

Lutar com alguém num processo, faze-lo pagar perdas e danos e suportar as custas do processo, ouvir o julgador dizer que ele tinha razão. Estão ai meios de satisfazer a vitima, meios postos pelos mecanismos cíveis.

As desvantagens do enfoque cível são evidentemente menores que os pesados inconvenientes do sistema penal

 

 

A Organização de Encontros “Cara-a-Cara”

 

 

Confronto organizado pela polícia

 

Antes da questão ser encaminhada ao tribunal, as pessoa envolvidas são convidadas a se encontrar com seus adversários e se questionar se realmente querem que seu problema entre no sistema penal.

Holsman não acha que isso mude muita coisa no sistema penal, a não ser no sentido de desafogá-lo. Mas como isso leva os envolvidos e se encontrarem constitui uma espécie de apaziguamento de conflitos, e isso é válido

 

 

Arbitragem

 

Algumas questões são levadas diretamente a um conciliador, seja pq as pessoas assim decidiram, seja pq são encaminhadas por algum organismo de assistência social.

Os conciliadores recebem um treinamento que os prepara para intervir em conflitos.

O conciliador ouve as pessoas separadamente, prepara uma espécie de compromisso e apresenta a cada um dos interessados, eventualmente modificando-o ate que seja aceito por todos.

 

 

Community boards

 

Segundo Holsman essa é de longe a melhor. Os Community boards são formados por um grande numero de conciliadores totalmente daqueles da arbitragem.

Esses conciliadores formam comissões compostas de membros escolhidos de acordo com as pessoas que pediram a intervenção. Se o conflito se da entre um portoriquenho e um mexicano, há pelo menos um portoriquenho e um mexicano na comissão. Se foi entre um homem e uma mulher, deverá ter ali um homem e uma mulher. Se foi um comerciante e um jovem…

A idéia básica é que os membros da comisão sejam pessoas próximas dos envolvidos no conflito.

Outro fato importante é que eles não são preparados para resolverem os conflitos, são treinados para não propor soluções. Eles devem ajudar as pessoas a reconhecerem por si mesmas a natureza do conflito, e aí então chegarem a uma conclusão.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
ANÔNIMO,. Penas Perdidas – Hulsman. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/resumos/criminologia/penas-perdidas/ Acesso em: 28 mar. 2024