Direito Internacional

Resenha crítica da obra História do Direito Internacional

 

Misael Torquato Souza*

 

 

Em se tratando de uma obra histórica atenho-me absolutamente na crítica dos fatos históricos e pensamentos que permeavam esses fatos, aqueles que mais chamaram atenção por, na minha concepção, terem sido pensamentos e fatos chaves no curso da história em questão. Divido a resenha na mesma divisão de clareza literária escolhida pelo autor, comércio e moeda na primeira etapa, cidadania e nacionalidade na segunda.

 

 

Comércio e Moeda

 

                   A primeira parte assevera que o primeiro tratado internacional data de 3.000 a.C. e ocorrera entre os reinos da Assíria e de Ebla, tratando-se, porventura, de um acordo de comércio. O comércio sempre fora caminho das avenças e desavenças entre os povos, nada mais inesperado do que as primeiras formas de contato entre os homens de diversas nações terem ocorrido em função do comércio. Abrimos uma pequena ponderação para altercarmos a possibilidade de já existirem tratados não escritos inter-tribos há mais tempo do que há a escrita, pois se houvera um tratado registrado em 3.000 a. C. como símbolo de relações comerciais, as relações comerciais em si são ainda mais antigas. Logo qualquer contato comercial entre tribos em 10.000 a. C. que perdure de forma a criar uma interdependência é a semente dos futuros acordos internacionais.

 

                   Interessante salientar uma constatação do autor, ao enumerar os povos que realizavam suas transações comerciais usando lingotes de ferro ou de ouro, esquecera o autor de ater-se ao fato de que povos guerreiros inevitavelmente estarão propensos a realizarem seus negócios tendo o ferro como padrão, enquanto povos opulentos o farão com riqueza e ostentação.

 

                   A proteção do comerciante nacional enfatizada pelo autor remete-nos aos problemas do século XX, quando as grandes nações em sua eterna luta pela hegemonia comercial sufoca os menos aptos à guerra comercial. O fato descrito no livro remonta um ocorrido na Grécia Antiga, mas o mesmo fato repete-se no desenrolar da história. Fragilidade do comércio local em vencer as vantagens de preço e qualidade do concorrente externo tem sido de grande relevância nas relações internacionais. As nações mais poderosas lutam para que os subsídios contrários aos seus produtos sejam suprimidos, todavia não desejam que o mesmo ocorra em relação ao seu produto interno, Adam Smith em sua obra A Riqueza das Nações já fizera relato da proteção interna do mercado Britânico, ao mesmo tempo que a política de Imperialismo Mercantilista Inglês fazia questão de romper as barreiras protecionistas no exterior. Smith assevera que:

 

“Na Grã-Bretanha, é freqüente que sejam solicitados- e, por vezes, concedidos- subsídios à exportação do produto de alguns ramos da atividade interna, alega-se que tais subsídios permitirão a nossos comerciantes e manufatores vender suas mercadorias por preço idêntico ou inferior ao de seus rivais no exterior.” (SMITH, 2003, p.636.)

 

                   Da mesma forma o autor trabalha com as questões de comércio internacional e seus tratados, na mesma obra ele faz referência a um acordo entre Portugal e Grã-Bretanha que tivera, em seu entendimento, benesses unilaterais em proveito de Portugal.

 

                   O autor da obra que resenhamos enfatiza o surgimento do Jus Gentium no Direito Romano, como forma de melhor regular o comércio internacional. Faço minha crítica com as considerações do autor no que concerne à estrutura organizacional do Império Romano, uma vez que o autor transmite uma idéia de contigüidade ao longo da História Romana do Modus Operandi da civilização Latina, usando de fatos que ocorreram em diferentes épocas do Império. O uso de mercenários só ocorrera no apagar da luzes da civilização Romana, a agricultura só ocorrera exclusivamente com uso de mão de obra escrava a partir da segunda guerra Púnica, o uso de instrutores Gregos na educação dos jovens Romanos ocorrera a partir da conquista da Grécia, levada a termo por Paulo Emílio, de qualquer forma, como consta Tito Lívio, sempre houvera uma resistência por parte da sociedade tradicional Romana à introdução da cultura grega.

 

                   De outra forma a natureza das relações internacionais, observadas sob a ótica comercial, estão eivadas de critérios belicistas, como o autor fizera alusão à lex julia de maiestate, que dispunha de mecanismos para entravar o progresso bélico dos povos conquistados através da limitação do comércio de armas, bigas, cavalos, metais e afins. A guerra econômica talvez tenha surgido empiricamente nesse período histórico, uma vez que as legiões romanas pareciam invencíveis e o poderio romano nos séculos I e II da era cristã parecia não ter mais fim, só restava às nações conquistadas as vias do boicote econômico. Carl Schmitt faz menção ao uso extravagante, ainda hoje, da guerra econômica que, no seu conceito, teria obnubilado o conceito de paz e de guerra. No dizer de Schmitt:

 

“foi abolida não só a distinção de combatentes e não-combatentes, mas até mesmo a distinção de guerra e paz.” (SCHMITT, 1992. p. 134)

 

                   Esses aspectos apresentados por Schmitt, tão criteriosamente utilizados hoje, já o foram utilizados contra o Império Romano, como bem assevera Edward Gibbon em sua reconhecida obra. O que o autor da obra que ora resenhamos faz correta ênfase do desastre econômico que fora para o Império, a desvalorização do denário. O aspecto comercial nas relações internacionais não findam com as questões econômicas, o comércio exerce forte influência nos costumes e tradições dos povos, nesse sentido a obra História do Direito Internacional faz uma feliz menção à Agostinho de Hipona que não situa na Cidade de Deus um local para o comércio. Os portos são a entrada de mercadorias, costumes e valores, ou desvalores, pensamento comum da Antiguidade era o fato do comércio facilitar a corrupção dos costumes, não era exclusividade do Cristianismo, muito menos de Agostinho. Nesse sentido a fundação de Roma à distância do mar fora feita por Rômulo na esperança de manter longe os costumes dos estrangeiros, para existir comércio fora fundada a cidade de Óstia, um verdadeiro porto subsidiário de Roma.

 

                   No transcorrer da obra evidenciamos as concepções diversas a respeito de taxas cobradas dos mercadores estrangeiros, primeiro como pagamento por proteção do Rei, ou senhor feudal, pela passagem por suas terras sem serem molestados. Posteriormente a fonte de renda que daí surgira dera ênfase ao entendimento de que a taxa tratava-se de uma indenização paga pelo mercador pela concessão do direito de comércio nas terras do Rei. A assertiva do autor permite-nos minudenciar detalhes históricos como o fato de que fora bastante interessante para o Rei e os mercadores o fortalecimento das monarquias nacionais, o Rei lucraria mais e os comerciantes pagariam menos ao tirarem do caminho a Nobreza, verdadeiros “atravessadores” do comércio medieval, e, uma vez mais, apresenta-se-nos o peso decisivo do comércio não somente nas relações internacionais, como também nas relações de poder em geral.

 

                   Nesse comenos, corroboramos com a assertiva da obra à respeito de Francesco Accursio, ao localizar no Direito Romano e não no Direito Canônico a condenação à usura, o fato de que tendo o comércio peso decisivo nas relações políticas, sejam elas nacionais ou supranacionais, nada mais interessante para um império do que impedir a opulência do poder comercial entravando seus exacerbados lucros tirados da prática da usura.

 

                   As guerras comerciais, termo utilizado na obra em questão, possuem facetas, como retaliações e sanções as mais diversas, de caráter cruel como dissera Carl Schmitt no texto já citado. A elevação de impostos deixou de ser mero pagamento da concessão D’El Rey para tornar-se instrumento na guerra constante entre as nações, como bem demonstra a obra, não há melhor exemplo que o Navigation Act inglês. A maneira como estão ligadas as instituições financeiras aos Estados plenipotenciários do comércio mundial faz-se sentir em todo o aparato internacional, nos trades, accords e outros instrumentos que corroboram com declarações do tipo “os interesses da General Motors são os interesses dos Estados Unidos da América.”

 

                   Uma vez mais voltamos ao relato de Schmitt sobre as questões sujas que envolvem o uso do poder de guerra econômica para levar as nações ao desespero. O Barão de Baependi, Ministro da Fazenda do Império, no Primeiro Reinado, de Dom Pedro I, já altercara que:

 

“a desconsolação pública e a extinção do patriotismo andam a par da miséria pública; de que a ruína dos Estados, a queda dos Impérios são conseqüências das desordens das finanças.” ( BARROSO, 1935, p. 11)

 

                   As formas de imperialismo mudaram, a apoteose do poder permanece como bem descreve Gustavo Barroso ao enfatizar a passagem do Imperialismo Militar para o Imperialismo Econômico. O autor faz devida menção ao asseverar a inóxia de levar um exército para a conquista, quando o envio de banqueiros é mais eficaz, tal a escalada do poder comercial assim ocorreu no âmbito das relações internacionais. Simples boicotes ao Império Romano, colaboradores do estabelecimento das monarquias nacionais, fautores da Revolução Burguesa de 1789, verdadeiros detentores do poder das atuais nações “liberal-democráticas” plenipotenciárias.

 

                   O Brasil deve à mesma família desde sua independência política da Nação Portuguesa, o empréstimo feito com o banqueiro Nathan Mayer Rotschild abriu nosso eterno relacionamento com a casa dos Rotschild e seus empréstimos a perder de vista, demonstrando o quão grande é o poder fático do comércio nos acontecimentos do direito internacional. Essa mesma casa dos Rotschild que efetuara empréstimos à aliança de Inglaterra, Prússia e Áustria para vencer Napoleão Bonaparte na batalha de Waterloo, sem esse empréstimo mesmo essas nações poderosas não teriam condições de vencer Bonaparte, tamanho o interesse e o investimento econômico que se alçara na guerra militar, segundo consta Gustavo Barroso. O autor cearense, membro da Academia Brasileira de Letras e condecorado como Gran Oficial do Mérito Aeronáutico do Brasil, esclarece a ascensão de uma casa de banqueiros ao ponto de terem peso nas decisões internacionais:

 

              “Nathan Mayer Rotschild! Este nome está preso a toda a engrenagem financeira mundial do começo do século. Seu portador assiste, de longe, à batalha de Waterloo, vê a derrota de Napoleão, corre à costa belga, paga a peso de ouro o barco dum pescador, atravessa a Mancha em pleno temporal, arrebenta cavalos até alcançar Londres e surge na Bolsa com a mais tranqüila fisionomia deste mundo. Sorri e começa a vender seus títulos. Todos pensam que deve estar ao par de novas terríveis de guerra, pois nada ainda transpirava do fatal encontro de Napoleão com Wellington e Blûcher. Só ele o conhecia e de visu. O pânico ganha os portadores de ações, de bônus e de apólices. Baixa pavorosa! Os agentes de Nathan compram tudo por dez reis de mel coado. Mais tarde, chega a notícia da estrondosa vitória e todos aqueles papéis, como é natural, sobem vertiginosamente. Estão na quase totalidade em mãos da casa Rotschild, que realiza um ganho colossal e, à sombra dessa formidável riqueza começa a dominar a Europa. Caíra o império militar de Napoleão, a maior potência política da época, e nascia o império argentário de Rotschild, a maior potência financeira dos novos tempos.” ( BARROSO, 1935, p. 26 e 27)

 

                   Eis aí uma demonstração do poder econômico e suas imbricações com os acontecimentos internacionais e a política voltada para o comércio muito mais por um controle do comércio sobre a política do que o contrário. Passemos à próxima parte.

 

 

Cidadania e Nacionalidade

 

                   Antes de adentrarmos na resenha da segunda parte do livro em questão, será interessante distinguirmos os conceitos de Cidadania e Nacionalidade. A Enciclopédia Saraiva do Direito define Cidadania como sendo “o vínculo político, apropriado ao nacional no gozo dos direitos políticos”, enquanto a nacionalidade representa “o vínculo jurídico pessoal que prende um indivíduo a um Estado-membro da comunidade internacional” (ENCICLOPÉDIA SARAIVA DO DIREITO, 1977-, p. 338). O termo sofrera uma grande alteração ao longo da história, hoje para nós ele pode ser resumido como nacionalidade o objeto de origem e vínculo do sujeito ao indivíduo e cidadania a capacidade plena de participação política do indivíduo em um Estado-Nação.

 

                   É de nosso agrado a asserção da obra ao situar no mundo clássico antigo a semente da cidadania. Ora o conceito de cidadania vem de encontro ao conceito de súdito, uma vez que o súdito não possui participação política, enquanto o cidadão exerce sua cidadania na participação política. Em que melhor momento o homem fez uso de sua real e efetiva participação na vida política que não entre os povos da antiguidade clássica? Portanto está mais do que correta a assertiva em questão, a própria oposição do conceito bárbaros à gregos estabelece-se pelo participação política dos gregos em oposição à submissão dos bárbaros aos seus senhores. A participação do homem político na existência da polis grega outorgava-lhe todos os direitos e deveres imanentes ao cidadão atual e muito se aproximava da concepção romana de civitas. A participação plena dava-se pela defesa da cidade pelo meio das armas, participação nos conselhos e assembléias que definiam os rumos da política interna e externa da polis, e a vivência nos negócios públicos. Acima de tudo, porém, estava a participação do sujeito na vida religiosa, a cidade era acima de tudo o santuário religioso onde o estrangeiro não era bem-vindo. Diferente das religiões prosélitas de hoje, a religião primitiva Européia não aceitava a presença de não-iniciados em seus locais sagrados de liturgia, sendo a polis em si um grande templo em adoração ao deus local, o estrangeiro não poderia adentrar nos conselhos políticos da cidade sem profaná-la, sem fazê-la de forma sacrílega, assim nos assevera Fustel de Coulanges em sua Cidade Antiga.

 

“Era reconhecido como cidadão todo aquele que tomava parte no culto da cidade, e dessa participação lhe derivavam todos os seus direitos civis e políticos.” ( COULANGES, 2002, p. 213)

 

                   Para Coulanges o cidadão antigo seria melhor definido como o “homem que segue a religião da cidade” (COULANGES, 2002, p. 213). E isso é de inferência ilativa, uma vez que sendo a cidade ambiente sagrado, justificava-se a exclusão do estrangeiro dos negócios e decisões públicas, ao mesmo tempo em que tornava sacrílego o homem da religião da cidade, ou seja, o cidadão antigo, que se afastasse dos seus deveres e obrigações para com a polis. O caráter religioso e o caráter cívico do homem grego eram, portanto, inseparáveis, tornando infactíveis as aberrações holywoodianas de apresentar cidadãos gregos blasfemos e profanadores daquilo que era a essência de sua própria civilização. As concessões de cidadania aos estrangeiros eram extremamente dificultadas e quando aceitas, movidas por um caráter de liturgia religiosa onde um juramento se fazia necessário por parte do novo cidadão, e ainda assim qualquer veto de qualquer um dos cidadãos era o suficiente para impedir que o estrangeiro adquirisse cidadania. O quão dificultoso o processo era se analisarmos a situação, o estrangeiro era submetido à uma liturgia religiosa repleta de juramentos e, a qualquer momento, um único cidadão que clamasse em meio a assembléia contra sua participação na polis, era o suficiente para que o rito se interrompesse e o estrangeiro estivesse impedido de adentrar na polis. Portanto o ingresso do estrangeiro no âmbito de cidadania dava-se com extrema dificuldade, sendo necessário ser um homem de valor reconhecido por toda a sociedade. Podemos citar como exemplo o Rei Numa Pompílio em Roma, que sendo estrangeiro fora chamado de sua terra para reinar em Roma, uma vez que era um homem sábio e invejado no meio de seu povo, os sabinos, os Romanos o chamaram para governar após a morte de Rômulo, mas, segundo Tito Lívio, os senadores alternaram-se no poder por um ano após a morte de Rômulo para editarem leis que limitassem os poderes da realeza, concentrando o poder na mão do senado a fim de evitar uma ingerência estrangeira.

 

                   Podemos demonstrar uma situação mais próxima, na Grécia Antiga, para elucidarmos a participação do estrangeiro na política pública por reconhecimento popular. Heródoto conta como um adivinho dos deuses foi aceito em Esparta como cidadão mesmo não sendo de origem Espartíata e a história de um médico que extorquira metade do reino dos Árgios para curar as mulheres daquela terra, segundo Heródoto:

 

“Tendo as mulheres de Argos sido tomadas de loucura furiosa, os Árgios ofereceram a Melampo uma recompensa para transferir-se de Pilos para Argos, a fim de curá-las. Melampo exigiu a metade do reino. Os Árgios consideraram absurdo a exigência e recusaram-se a atendê-la; mas, como o número de mulheres doentes aumentava cada vez mais, cederam às circunstâncias e enviaram novamente emissários a Pilos, dizendo-se dispostos a aceitar as condições impostas por Melampo.” (HERÓDOTO, 2001, p. 1012)

 

                   Porém essas concessões de cidadania eram raras, não sendo difícil imaginarmos a situação dos metóicos, uma vez que eram estrangeiros ou descendentes deles. Sua situação jurídica está claramente evidenciada pelo autor da obra objetivo de nossa resenha ao afirmar que os mesmos só poderiam agir em juízo “quando estavam em jogo os seus interesses privados.” (DAL RI JÚNIOR, 2004, p. 173)

 

                   Da mesma forma está correta a asserção feita pelo autor ao situar o status de cidadão grego no critério do jus sanguinis, uma vez que a fundação da cidade, segundo Coulanges, era na verdade a fundação de um altar e de um rito religioso, onde participavam os fundadores e ninguém mais poderia ser iniciado a não ser os descendentes deles. Todos os cidadãos verdadeiros estavam unidos por um laço sanguíneo aos fundadores dessa cidade, portanto inseridos no culto de fundação dela e dessa forma aptos a participarem da vida política da polis. Os que não tivessem ligação sanguínea com os fundadores da cidade, não podiam participar da religião da cidade,não poderiam sacrificar no altar que fundara a cidade, portanto estavam excluídos da vida social e política. A assertiva do autor sobre a cidadania ser outorgada também aos filhos ilegítimos do cidadão-grego não é absoluta, discordamos dessa constatação. Houve momentos na história grega que o critério de jus sanguinis fora de tão exasperada acrimônia que a lei dos mestiços em Atenas, promulgada por Péricles, excluía do direito de cidadania todo aquele que não fosse filho de pai e mãe ateniense, deixando àqueles que tivessem apenas pai ou mãe ateniense a qualidade de bastardos, portanto não-cidadãos. (PLUTARCO, 1991, p. 347)

 

                   Evidentemente isso não pode perdurar para sempre, na vida de Péricles, escrita por Plutarco, vemos que quando da epidemia que tomara conta da cidade que vitimara uma grande parcela da população, inclusive o próprio Péricles, essa mesma lei tivera que ser suspensa por não mais existirem cidadãos em número suficiente para lutar contra os Espartanos, sendo então outorgada aos bastardos o título de cidadania. Esse acontecimento, porém, fora um caso excepcional e não via de regra como pretendem alguns, na verdade o próprio Sócrates citado por Platão no diálogo Menêxeno faz alusão ao orgulho ateniense de serem helenos puros:

 

“Se os sentimentos de nossa cidade são tão generosos e independentes, tão firmes, sadios e, por natureza, hostis ao bárbaro, é que somos helenos puros, sem a menor mescla de bárbaro. Entre nós não vivem descendentes de Pélope, de Cadmo, de Egito, de Dânao e de tantos outros bárbaros por natureza e helenos pela lei; como helenos puros aqui vivemos, não como mestiços de bárbaros. Daí o ódio entranhado que nossa cidade vota a tudo o que é estrangeiro. Desse modo, tornamos a ficar isolados, por nos termos recusado a praticar o ato ímpio e vergonhoso de entregar helenos aos bárbaros.” ( PLATÃO, 2007, p. 301)

 

                   Esse orgulho nada mais é do que a oposição da civilização grega à participação do estrangeiro na religiosidade da cidade, como já vimos em Coulanges a entrada do estrangeiro ali é sacrílega. O estrangeiro estava excluído da participação política, porque estava excluído da religião da cidade.

 

                   Vemos essa ligação do elemento de cidadania ao elemento religioso ainda mais albinitente na civilização Romana. Segundo o dicionário Latim-Português da Editora Porto, civitas representa a condição de cidadão, o direito de cidadão. Voltando a Fustel de Coulanges evidenciamos ainda mais fortemente a vinculação de cidadania e religiosidade; uma vez que na primitiva urbe romana não existia a religião do panteão helênico, mas tão somente uma simples religião de adoração aos ancestrais. O ancestral em comum de todos os romanos era considerado o “autor” da etnia romana, portanto dele emanava toda “auctoritas” que a urbe romana exercia sobre seus cidadãos. Sendo uma religião de adoração aos ancestrais, o não-descendente estava excluído da religião, portanto excluso de participação política e excluso da civitas. Refuto, portanto, as considerações sobre as diversas formas de se adquirir a cidadania romana que não fosse o nascimento de pais romanos. Uma vez que as informações que temos da legislação de cidadania ter nos sido passada após Justiniano, não sendo ele nem Romano nem inserido na cultura Romana Republicana, parece-me mais viável atermo-nos à História que ao Direito para interpretarmos o costume romano. Ora sabemos que o costume era a verdadeira força no Direito Romano Clássico, o próprio Digesto é claro ao fazer referência ao Direito Consuetudinário como o melhor dos direitos:

 

“Immo magnae auctoritas hoc ius habetur, quod in tantum probatum est, ut non fuerit necesse scripto id comprehendere. (Ao contrário, este direito é tido de grande autoridade porque foi em tal medida aprovado que não foi necessário compreendê-lo por escrito)”. (DIGESTO DE JUSTINIANO, 2002, p. 53)

 

                   A maneira como fora apresentado um panorama de fins do Império deixa margem para interpretação no livro que a sociedade Romana sempre utilizara-se daqueles critérios para eleger seus cidadãos. O que vemos na civilização Romana primeva é a preocupação de não transferir ao estrangeiro as posses romanas, tanto que a obra que ora resenhamos deixa claro a impossibilidade do estrangeiro ser proprietário. Para entendermos o pensamento Romano dos primórdios da República e analisarmos o costume em relação ao estrangeiro devemos lançar mão dos Historiadores clássicos como Tito Lívio e analisar as leis primitivas que chegaram até nós. Alguns dos fragmentos das Leis das XII Tábuas chegaram até nós por diversos historiadores, entre eles Hotomano, seguem alguns artigos dessa lei que data de aproximadamente 450 a. C. para elucidarmos a questão casamento-herança e a aversão ao estrangeiro:

 

“Que a mulher sob o poder do marido seja a mãe de família (mater familias), que ela se associe às propriedades e aos sacrifícios religiosos, que se torne herdeira sua (necessária), e ele, herdeiro seu; Se uma mulher bebe vinho ou comete um ato vergonhoso com um estrangeiro, que o marido e a família dessa mulher a julguem e a punam; e se é surpreendida em adultério, que o marido tenha o direito de matá-la.” (LEI DAS XII TÁBUAS, 2002, p. 132)

 

                   Se o ato vergonhoso não é o adultério, como parecem ser bem distintos de acordo com o texto acima transcrito, fica para nós apenas a impressão, por enquanto sem comprovação, de que a presença do estrangeiro era funesta em si. Não há que se julgar viável que um pai de bom agrado daria sua filha em casamento a um estrangeiro. Vemos em Tito Lívio diversas situações que corroboram com nossa asserção, os Romanos eram apenas uma das cidades latinas e todos os latinos eram considerados descendentes de Enéias, no entanto isso não impedia o bairrismo entre eles mesmos. Esse bairrismo motivara uma guerra onde os demais latinos exigiam que se lhes fossem dadas em casamento, mulheres Romanas, para que os Romanos não se distanciassem deles em parentesco. Fora solicitado por uma embaixada dos latinos perante o Senado Romano que a cidadania Romana fosse estendida aos demais cidadãos do Lácio, uma vez que todos eram originários de Alba Longa, cidade fundada pelo filho de Enéias; mas a oposição Romana à entrega de jovens mulheres Romanas, ou mesmo da cidadania Romana aos seus irmãos reconhecidamente consangüíneos, fora capitaneada pelas palavras do cônsul Tito Mânlio Torquato, descritas no volume II da obra Ab Urbe Condita Libri de Tito Lívio. Mânlio prometera que mataria o primeiro latino que visse na cúria, mesmo após a embaixada latina ter lembrado aos senadores que também os Romanos eram latinos como as demais cidades do Lácio, e que os mesmos reconheceriam Roma como capital do Lácio, cessando as hostilidades. (TITO LÍVIO, 1989, p. 143-163, v II)

 

                   Parece que em uma primeira análise há uma margem à errônea interpretação mais do que um erro na obra objeto de nossa resenha, uma vez que a nota 363 faz menção à Lei Míncia que dava ao indivíduo nascido o status civilitate de seu genitor menos favorecido. Logo, isso exigiria pai e mãe romanos para sacramentar o status de cidadão romano ao nascituro nos tempos da República, não que isso assim tenha procedido para sempre, mas também não se poderá dizer que haviam fáceis janelas para a aquisição da cidadania Romana em todos os tempos da história de Roma. Podemos utilizar ainda em favor de nosso argumento não apenas as passagens de Fustel de Coulanges ao apontar o estrangeiro como um elemento sacrílego à religião da cidade, como também a questão do poder político envolvido em torno dos laços de parentesco. Pensando nisso, com o fim dessa guerra, os Romanos tomaram precaução para que os demais latinos não mais se sublevassem contra eles, impedindo inclusive um maior grau de parentesco entre os demais latinos, no mesmo volume II da obra Historia de Roma de Tito Lívio que “os demais povos latinos foram proibidos de unir-se entre si pelo matrimônio” (TITO LÍVIO, 1989, p. 162, v II). Os latinos somente adquiriram a plena cidadania Romana após o fim da Segunda Guerra Púnica. Poderíamos citar ainda inúmeros outros casos, como o da jovem patrícia romana que negara um pedido de casamento de um Rei Selêucida, à época o império dos Seleucos era o maior da terra, ainda assim ela rira-se da proposta pois não conseguia imaginar que seus filhos não fossem romanos, mas por ora basta passemos ao último assunto que nos chamara atenção no livro. Ainda para os céticos podemos citar o projeto de lei do Tribuno da Plebe Quinto Vocônio Saxa para impedir as mulheres de herdar, o projeto não vingara comprovando que ao contrário do senso comum teórico a “machista” sociedade romana outorgava às mulheres o direito à herança.

 

                   Esse conceito étnico de cidadania tende a desaparecer a partir da Revolução Burguesa de 1789, como bem assevera o autor da obra História do Direito Internacional, o conceito de jus soli começa a fazer sentido para os novos donos do estado,uma vez que é mais importante que os detentores do poder econômico também sejam os detentores do poder político, por conseqüência os valores do antigo regime devem ser substituídos pelos novos valores da nova classe dominante. Essa imposição dos novos valores acaba por sotopor os costumes e tradições dos povos, valores alienígenas são utilizados pelo direito positivado, dando continuidade à felonia burguesa de forma a profligar os antigos valores. É nesse âmbito materialista que o Direito Internacional conhece o jus soli, se o mesmo serve para impedir que os homens caiam no infortúnio de serem apátridas, também dá ele abertura para uma maior concentração de poder nas mãos de uma minoria, que terá ainda mais abertura para o exercício da tirania, uma vez que os que detêm o poder agora o detêm em todas as suas formas, seja econômica, política ou jurídica.

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

ATLAS DA HISTÓRIA DO MUNDO. São Paulo: Folha de São Paulo, 1995.

BARROSO, Gustavo. Brasil Colônia de Banqueiros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1935.

COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. São Paulo: Martin Claret, 2002.

DAL RI JÚNIOR, Arno. História do Direito Internacional: Comércio e Moeda; Cidadania e Nacionalidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.

DICIONÁRIO LATIM-PORTUGUÊS. Porto, Portugal: Editora Porto, 2001.

DIGESTO DE JUSTINIANO. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.

ENCICLOPÉDIA SARAIVA DO DIREITO. São Paulo: Saraiva, 1977-.

GIBBON, Edward. Declínio e Queda do Império Romano. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

HERÓDOTO. História. São Paulo: Ediouro, 2001.

LEI DAS XII TÁBUAS. In: Código de Hamurábi, Código de Manu, Lei das XII Tábuas. São Paulo: Edipro, 2002.

PLATÃO. Diálogos. Belém: Editora Universitária UFPA, 2007.

PLUTARCO. Vida de Péricles in Vidas Paralelas. São Paulo: Paumapé, 1991.

SCHMITT, Carl. O Conceito do Político. Petrópolis, RJ: Vozes, 1992.

SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. São Paulo: Martins Fontes, 2003. v. II.

TITO LÍVIO. História de Roma. São Paulo: Paumapé, 1989-90. vs. I a VI.

 

* Acadêmico de Direito da UFSC

 

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Como citar e referenciar este artigo:
SOUZA, Misael Torquato. Resenha crítica da obra História do Direito Internacional. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/resenhas/direito-internacional-resenhas/resenha-critica-direito-internacional-historia/ Acesso em: 28 mar. 2024