RESUMO: A relação entre o Poder Judiciário e a arbitragem sempre foi tema de grande relevância na doutrina nacional e internacional. A edição da Lei nº 13.129/2015, que alterou a anterior Lei nº 9.307/96 (Lei de Arbitragem), e o advento do novo Código de Processo Civil de 2015, com significativas mudanças no que tange ao regime das tutelas provisórias, instigam os operadores do direito a buscar um equilíbrio sistêmico que permita a adequação de conceitos e procedimentos, se e quando o Poder Judiciário é convocado a analisar tutelas provisórias de urgência prévias à arbitragem. O presente trabalho pretende analisar a possibilidade de o Judiciário conferir tutelas provisórias prévias à arbitragem, suas limitações e adequações procedimentais diante, sobretudo, da nova sistemática adotada pelo Código de Processo Civil de 2015 e Lei nº 13.129/2015.
ABSTRACT: The relationship between the judiciary and arbitration has always been one highly relevant topic in national and international doctrine. The edition of Law 13.129/2015, which amended the previous Law 9.307/96 (Arbitration Act) , and the advent of the new Civil Procedure Code 2015, with significant changes in relation to the system of the preliminary injunctions, instigate the operators to seek a systemic balance that allows the adequacy of the concepts and procedures, if and when the judiciary is called to analyze preliminary injunctions previously to an arbitration procedure. This essay intends to address and to examine the possibility of the judiciary grant preliminary injunctions prior to arbitration, its limitations and procedural adjustments on, above all, the new system adopted by the Civil Procedure Code of 2015 and Law 13.129/2015.
SUMÁRIO: Introdução; 1. As Tutelas Provisórias e o Novo CPC. Considerações Gerais; 1.1. Tutelas de Urgência (antecedente ou incidente / cautelar ou antecipada); 2. A Lei 13.129/2015 (artigo 22, “A” e “B”) e a afirmação de uma possibilidade; 3. Tutela Provisória Cautelar Antecedente (arts. 305 e seguintes do NCPC); 4. Tutela Provisória Antecipada Antecedentes à Arbitragem; 5. A Fungibilidade prevista no artigo 305, parágrafo único, do NCPC; 6. Conclusão.
INTRODUÇÃO
Há quem diga que o regime do Código de Processo Civil não se comunica com a arbitragem; que haveria uma estanqueidade entre o processo judicial estatal e os procedimentos arbitrais. Não é o que se via na prática forense quando da vigência do Código de Processo Civil de 1973 e não é o que se vê atualmente.
Aliás, é importante que se diga, e essa é uma das humildes pretensões deste trabalho, qual seja, demonstrar que o novo Código de Processo Civil dialoga muito bem com a arbitragem, embora algumas lacunas ainda requeiram comentários por parte da doutrina especializada.
O tema tutelas provisórias talvez seja um daqueles que mais aflige a doutrina especializada no momento, tamanhas foram as alterações introduzidas pelo novo Código de Processo Civil. Os operadores do Direito ainda debatem inúmeros temas relacionados às tutelas provisórias, sua estabilização, eventuais recursos e impugnações. Começam a sair as primeiras decisões judiciais definitivas a respeito do tema, o que mostra que o Poder Judiciário também é desafiado a equilibrar as novas teorias sobre esse novo e desconhecido sistema.
Pretender-se-á neste artigo trazer um resumo das alterações havidas e, ao final, identificar pontos de contato com a arbitragem, notadamente no que tange à concessão, pelo Poder Judiciário de tutelas provisórias antes da instauração da arbitragem, sejam elas cautelares ou antecipatórias.
Isso porque haverá significativa alteração no que se refere à prática que vinha sendo adotada pela comunidade jurídica em relação às ações cautelares prévias à instituição da arbitragem, principalmente pela alteração do rito procedimental previsto no novo Código de Processo Civil. Há que ser analisada, igualmente, a possibilidade ou não de obtenção de tutelas antecipadas pré-arbitragem, diante, sobretudo, da nova sistemática adotada pelo Código de Processo Civil de 2015 e Lei nº 13.129/2015.
Passemos, então, em revista às tutelas provisórias do novo Código de Processo Civil, suas características e inovações para que, ao final, possamos deduzir uma conclusão acerca de sua utilização vis a vis a prática anterior e as especificidades da prática arbitral.
1. As tutelas provisórias no Novo CPC. Considerações Gerais.
Indicado o propósito do presente artigo, convém trazermos algumas considerações gerais sobre as tutelas provisórias e o seu regramento no novo Código de Processo Civil, numa tentativa, não de esgotar o tema, mas apenas de lastrear as ideias que se busca desenvolver.
O novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015), alterado na sua vacatio pela Lei nº 13.256 (“NCPC”), de 04 de fevereiro de 2016, trouxe todo um novo regramento no que tange às tutelas provisórias, uma mudança bastante radical no que se refere não só às denominações, mas também ao procedimento.
Muito do que antes se discutia sobre as tutelas antecipadas e cautelares na vigência do Código de Processo Civil de 1973, agora, de acordo com a Lei nº 13.256/2016 ficou reservado ao Livro V, intitulado “Da Tutela Provisória”. Não que se tenha posto fim às discussões anteriores, até porque as inovações processuais alvoroçam a doutrina especializada, mas, ao que tudo indica, houve uma tentativa de sistematizar as tutelas provisórias num mesmo ambiente dentro do novo Código de Processo Civil, sejam elas tutelas cautelares, antecipadas, ou de evidência.
O presente artigo não pretende exaurir todas as questões problemáticas que envolvem a disciplina das tutelas provisórias, e que não são poucas, mas sim traçar um panorama geral das suas principais características no sentido de verificar como (e de que forma) essa novel sistemática se relaciona com o instituto da arbitragem.
O intérprete mais desatento poderia afirmar que as regras do NCPC tangenciam o instituto da arbitragem e, portanto, as mudanças, quaisquer que tenham sido elas, não interfeririam na prática arbitral, por se tratar de jurisdição distinta da jurisdição estatal, na qual não se aplicam as regras processuais que tratam do processo judicial estatal.
Contudo, os operadores mais familiarizados com o tema sabem perfeitamente que a sistemática das tutelas provisórias pode sim afetar o dia a dia da comunidade arbitral, seja antes, durante, ou após o procedimento arbitral. Eram comuns, perfeitamente aceitas pela doutrina e jurisprudência, as cautelares ajuizadas previamente à arbitragem, já na sistemática do Código de Processo Civil de 1973. Nesse sentido Selma Lemes[1], Paula Costa e Silva[2], Pedro A. Batista Martins[3], Carlos Alberto Carmona[4] e outros.
Pois bem, de acordo com o artigo 294 do NCPC a tutela provisória pode ter fundamento na urgência ou a evidência. A tutela provisória de urgência, por sua vez, pode ser cautelar ou antecipada, concedida em caráter antecedente ou incidental.
1.1. Tutelas de Urgência (antecedente ou incidente / cautelar ou antecipada)
Quanto ao fundamento, de acordo com o artigo 294 do Código de Processo Civil, as tutelas provisórias podem ser de urgência ou de evidência. A tutela provisória de urgência vem descrita em inúmeros artigos, particularmente entre os artigos 300 a 310, ao passo que a tutela de evidência encontra regramento no artigo 312 do Código de Processo Civil.
O presente trabalho abordará apenas as tutelas de urgência (cautelares e antecipadas), porque quer nos parecer que a tutela de evidência (artigo 311 do Código de Processo Civil) traz hipóteses não aplicáveis ao período que antecede a arbitragem. Isso porque, ausente a urgência, poderá a parte perfeitamente requerer a instituição da arbitragem para então, ver apreciado eventual direito fundado na evidência, pedido esse que deverá ser formulado diretamente ao tribunal arbitral (ou árbitro).
Assim, o presente trabalho terá como foco principal as tutelas de urgência que eventualmente podem ser concedidas pelo Poder Judiciário antes de instituída a arbitragem, sendo a urgência o fundamento principal que não permite à parte aguardar a constituição do tribunal arbitral, ou a assunção do encargo pelo árbitro único.
Pois bem, de acordo com o Código de Processo Civil, a tutela de urgência, por previsão expressa do caput do artigo 300 será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano, ou o risco ao resultado útil do processo.
Embora haja diferenciação terminológica os requisitos acima mencionados revelam pequena variação do que se consagrou pelas expressões latinas do fumus boni iuris e periculum in mora.
Importante observação pode ser feita em relação aos requisitos acima mencionados e que decorre justamente dessa tentativa, constante do Código de Processo Civil, de sistematizar as tutelas de urgência. Ao unificar os requisitos para sua concessão, sejam as tutelas de urgência de natureza cautelar ou antecipada, o Código de Processo Civil afasta aquela discussão existente na vigência do Código de 1973 de que a aparência do direito para o deferimento de tutelas antecipadas seria mais exigente do que aquele exigível para as cautelares.
Assim, parece-nos correto afirmar, agora, de acordo com o que dispõe artigo 300 do Código de Processo Civil, que há uma equivalência em relação aos requisitos para concessão de tutelas provisórias de urgência, sejam elas antecipadas ou cautelares. Sua diferenciação se dará, portanto, no objetivo a ser alcançado pela parte, ou melhor, na análise efetiva do que a parte pretende com aquela tutela provisória.
Estar-se-á, portanto, diante de uma tutela antecipada de caráter antecedente se a parte pretender satisfazer o direito do autor, isto é, se o autor pretende antecipar para o início do processo os efeitos pretendidos com a tutela final de mérito.
Outro aspecto interessante que decorre da leitura do artigo 300 do Código de Processo Civil se refere à possibilidade de designação de audiência de justificação prévia (§2º), justamente para aqueles casos em que a petição inicial não logrou êxito em demonstrar a presença pujante dos requisitos constantes do caput do referido artigo.
O Código de Processo Civil também reproduz aquele alerta de que a tutela de urgência de natureza antecipada não será concedida quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão, numa reprodução em muito semelhante ao que se via no anterior artigo 273, §2º, do Código de Processo Civil de 1973. Aqui houve uma melhora na redação ao falar em efeitos da decisão, porque o provimento antecipado pode ser revertido mediante recursos próprios, mas a importância está realmente nos efeitos da decisão, tal qual nova redação, que podem alterar irreversivelmente uma situação fática existente.
Já o artigo 301 do Código de Processo Civil trata das tutelas de urgência de natureza cautelar, ao elencar algumas de suas hipóteses, tais como arresto, sequestro, arrolamento de bens, registro de protesto contra alienação e bens e qualquer outra medida idônea para asseguração do direito.
Estar-se-á diante de uma tutela de urgência de natureza cautelar se a parte pretende a asseguração do direito, ou provimento judicial que pretenda auxiliar para o resultado prático de uma futura execução forçada, impedindo a dispersão dos bens que poderão ser objeto dela. (ex.: sequestro conservativo e execução provisória, em que pretende não satisfazer antecipadamente o credor, mas conservar, enquanto pende o juízo e apelação, os objetos da futura execução forçada.)
Embora haja certa relutância da doutrina em identificar, neste artigo, o que se convencionou chamar de poder geral de cautela, parece-nos que o legislador andou bem na parte final do dispositivo, pois é ela que realmente importa. Ali está, ao nosso ver, a possibilidade de o magistrado conceder cautelares atípicas, ou, na exata literalidade, qualquer outra medida idônea para a asseguração do direito (cautelar). Ali está o denominado poder geral de cautela.
Causa estranheza, apenas, ter o legislador reproduzido alguns dos tipos existentes na legislação anterior para, ao final, ampliar o espectro das cautelares. Pior ainda é verificar que no Código de Processo Civil não há conceituação de arresto, sequestro e arrolamento de bens, o que havia no Código de Processo Civil de 1973. Os atuais operadores do Direito deverão buscar os conceitos e aplicações de cada uma dessas medidas cautelares na doutrina e na legislação anterior.
O artigo 302 do Código de Processo Civil, último artigo das Disposições Gerais aplicáveis às tutelas de urgência, trata da responsabilização da parte que efetivou a tutela de urgência e causou prejuízos à parte contrária, além dos danos processuais.
O referido artigo traz quatro hipóteses e, para o que importa ao presente estudo, é importante mencionar que será aplicável tanto às tutelas incidentais ou antecedentes, como às cautelares ou antecipadas. Assim, num esforço de unificação o Código de Processo Civil amplia os efeitos do anterior artigo 811 do Código de 1973, que tratava, apenas, das cautelares.
Importante que se tenha em mente, até mesmo para aquelas tutelas de urgência requeridas antes e durante a arbitragem, que a sua efetivação pode dar azo à responsabilização daquele que a efetivou, que poderá ser chamado a reparar os prejuízos daí decorrentes (efetivação), nas hipóteses trazidas pelos incisos I a IV do referido artigo 302.
2. A Lei 13.129/2015 (artigo 22, “A” e “B”) e a afirmação de uma possibilidade.
Quando da edição da Lei nº 13.129, de 26.05.2015, com alterações à anterior Lei nº 9.307/96 (“Lei de Arbitragem”) a Lei nº 13.105, de 16.03.15 já estava em sua vacatio legis e, portanto, deveria a Lei nº 13.129/2015 já ter feito referência aos artigos do Código de Processo Civil.
Infelizmente, por uma falha legislativa, a Lei nº 13.129/2015 foi editada e publicada com referência à sistemática do Código de Processo Civil anterior, sem se atinar que meses depois entraria em vigor o Código de Processo Civil de 2015.
Assim, as referências feitas pela Lei nº 13.129/2015 ao Código de Processo Civil ainda têm correlação aos artigos e à sistemática do Código de Processo Civil de 1973, tais como, por exemplo, os §§ 1º e 3º do artigo 33 da Lei nº 13.129/2015.
O legislador perdeu a oportunidade de solucionar dúvidas a respeito dessa importante interligação entre a arbitragem e as tutelas urgentes requeridas, no Poder Judiciário, previamente à instituição da arbitragem.
No entanto, no que tange especificamente ao objeto do presente estudo, cumpre destacar que a Lei nº 13.129/2015 acresceu os artigos 22-A e 22-B à Lei de Arbitragem, afirmando a possibilidade da concessão, pelo Poder Judiciário, de tutelas cautelares e de urgência antes de instituída a arbitragem, nos seguintes termos:
DAS TUTELAS CAUTELARES E DE URGÊNCIA
Art. 22-A. Antes de instituída a arbitragem, as partes poderão recorrer ao Poder Judiciário para a concessão de medida cautelar ou de urgência.
Parágrafo único. Cessa a eficácia da medida cautelar ou de urgência se a parte interessada não requerer a instituição da arbitragem no prazo de 30 (trinta) dias, contado da data de efetivação da respectiva decisão.
Art. 22-B. Instituída a arbitragem, caberá aos árbitros manter, modificar ou revogar a medida cautelar ou de urgência concedida pelo Poder Judiciário.
Parágrafo único. Estando já instituída a arbitragem, a medida cautelar ou de urgência será requerida diretamente aos árbitros.”
Os artigos em comento consolidam o entendimento doutrinário e a prática que era, de há muito, verificada nos Tribunais: a possibilidade de uma das partes recorrer ao Poder Judiciário para obter tutelas de urgência antes de instituída à arbitragem.
O que os artigos não disseram, e ao meu ver não precisariam mesmo ter dito, era a limitação da abrangência da análise, pelo Poder Judiciário, da matéria a ele carreada antes da instituição da arbitragem. A esse respeito importa destacar elucidativo acórdão de lavra da Ministra Nancy Andrighi, no Agravo Regimental interposto na Medida Cautelar 19.226-MS, julgamento em 21.06.2012, confira-se:
“Ainda que, na pendência da constituição do Tribunal Arbitral, se admita que a parte se socorra do Poder Judiciário, por intermédio de medida de natureza cautelar, para assegurar o resultado útil da arbitragem, sua atuação ficará limitada à apreciação da tutela de urgência, sendo vedada a incursão no mérito da controvérsia.
Ao comentar o tema, Francisco José Cahali observa que “a ação principal a ser indicada pela parte [nos termos do art. 806 do CPC] deverá ser aquela a ser proposta no juízo arbitral”, ressalvando que, uma vez instaurado o Tribunal Arbitral, “a jurisdição sobre o conflito passa a ser do árbitro, e, assim, a ele deve ser encaminhada, também, a questão cautelar envolvendo o litígio. O juiz estatal perde, neste instante, a jurisdição, e as decisões a respeito passam a ser de exclusiva responsabilidade do árbitro” (Curso de arbitragem. São Paulo: RT, 2011, pp. 231-232).
No mesmo sentido o entendimento de Carlos Alberto Carmona, para quem “a competência do juiz togado ficará adstrita (…) à análise da medida emergencial, passando a direção do processo na sequência aos árbitros, tão logo seja instituída a arbitragem (ou seja, tão logo os árbitros aceitem o encargo)” (Arbitragem e processo, 3ª ed., São Paulo: Atlas, 2009, p. 327).”
No entanto, poderiam os artigos 22 “A” e “B” fazer referência à nova terminologia utilizada pelo Código de Processo Civil de 2015, ao invés de se referir às tutelas cautelares e de urgência, já que, como vimos, houve significativa alteração terminológica. Ao assim fazer deixa de esclarecer a dúvida acerca da possibilidade de o magistrado estatal conferir tutelas antecipadas antecedentes e prévias à instituição de arbitragem.
Assim compete ao intérprete buscar nas origens do instituto a sua conceituação para saber se o magistrado poderá (ou não) analisar e deferir tutelas antecipadas antecedentes e em qual abrangência, em qual profundidade, notadamente quando se está diante de uma relação jurídica cujo mérito, ou melhor, cujas controvérsias dela oriundas, devam ser decididas por arbitragem.
Para tentar responder a essa pergunta mister recorrermos ao que tem dito a melhor doutrina, para sabermos qual é a abrangência da análise e dos efeitos inerentes às tutelas antecipadas, numa tentativa de identificarmos se a satisfação do direito que se busca não está no campo de cognição inerente exclusivamente à arbitragem, ou se o magistrado estatal pode, ainda que preliminarmente, conceder tutelas que antecipem os efeitos do mérito.
3. Tutela Provisória Cautelar Antecedente (arts. 305 e seguintes do Código de Processo Civil)
Faremos aqui uma inversão à ordem trazida pelo Código de Processo Civil para tratar, primeiro, das tutelas provisórias cautelares e sua possibilidade de ajuizamento pré-instituição de arbitragem para, após, verificarmos se o mesmo entendimento pode ser aplicado para as tutelas provisórias antecipadas antecedentes.
Ao fazermos essa análise não podemos olvidar, no entanto, da natureza jurídica dos provimentos cautelares. O Código de Processo Civil, sua nova sistemática e nomenclatura não devem iludir a doutrina para chegar a uma conclusão, falsa e equivocada, de que houve uma mutação de tudo o que se construiu acerca da natureza jurídica dos provimentos cautelares.
Justamente por isso que aqui se adota o conceito clássico segundo o qual os provimentos cautelares objetivam assegurar a efetivação de um direito futuro e, por sua natureza, revelam cognição sumária, não exauriente e provisória.
Com efeito, o provimento cautelar tem por fim assegurar a viabilidade da realização de um direito, não podendo realizá-lo, não podendo ser satisfativa, pois a tutela que satisfaz, por estar além do assegurar, realiza tarefa inerentes às tutelas antecipadas, com finalidade completamente distinta da cautelar.
Nas palavras de DONALDO ARMELIN a tutela cautelar não pode antecipar a tutela de conhecimento, pois segundo ele “uma das formas de distorção do uso da tutela cautelar verifica-se sempre que se dá ao resultado de uma prestação de tutela jurisdicional cautelar uma satisfatividade que não pode ter.”[5]
Para CARLOS AUGUSTO DE ASSIS:
“De fato, como deixamos transparecer nos parágrafos acima, somos da opinião de que a atividade cautelar não se coaduna com a satisfação. Quem acautela assegura, não satisfaz. Ainda que, para efeitos de raciocínio, se admita, como entendem certos autores, a possibilidade de um provimento acautelatório acabar por se revelar satisfativo (o que, segundo nos parece, desnaturaria a atividade cautelar), estaríamos, no mínimo, diante de uma atividade cautelar atípica”[6]
ADROALDO FURTADO FABRÍCIO salienta:
“Ao passo que a função cautelar se exaure na asseguração do resultado prático de outro pedido, sem solucionar sequer provisoriamente as questões pertinentes ao mérito deste, a antecipação de tutela supõe necessária uma tal solução, no sentido de tomada de posição do juiz, ainda que sem compromisso definitivo, relativamente à postulação do autor no que se costuma denominar ‘processo principal’ (no caso o único existente). Em sede cautelar certamente se faz algum exame dessa pretensão, mas com o fito único de apurar se ela é plausível (presença do fumus boni iuris) e se a demora inerente à atividade estatal pode pôr em risco o seu resultado prático (periculum in mora). Não assim na hipótese de antecipação da tutela: aí, o sopeso da probabilidade de sucesso da postulação ‘principal’ (e única) se faz para outorgar desde logo ao postulante o bem a vida, que, a não ser assim, só lhe poderia ser atribuído pela sentença final” (“Breves notas sobre os provimentos antecipatórios, cautelares e liminares”, Ajuris 66/16-17).
Dito isto, é digno de nota que o procedimento cautelar no NCPC sofreu significativa mudança, não no que se refere especificamente aos requisitos para a concessão da cautelar (perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo), mas no que tange à unificação do procedimento, pois agora o autor, efetivada a cautelar, deverá deduzir o pedido principal nos próprios autos, sob pena de cessação de eficácia da tutela concedida em caráter antecedente.
A prática havia demonstrado que, antes da vigência do Código de Processo Civil de 2015, era perfeitamente possível que a parte propusesse ação cautelar perante o Judiciário para que, efetivada a medida, requeresse a instauração do procedimento arbitral no prazo de 30 (trinta) dias, conforme anteriormente previa o artigo 806 do Código de Processo Civil de 1973.
Após a efetivação da medida cautelar deveriam os autos do processo estatal ser remetidos à arbitragem para que o(s) árbitro(s) reavaliasse(m) a medida urgente concedida à parte, podendo manter, revogar ou alterar sua abrangência.
Discutia-se se o prazo de 30 (trinta) dias a que fazia alusão o anterior artigo 806 do Código de Processo Civil de 1973 findava com a constituição do tribunal arbitral, aceitação pelo(s) árbitro(s) do encargo, ou mero pedido de instituição da arbitragem. Prevaleceu o entendimento, ao nosso juízo acertado, de que o prazo seria para a parte requerer a instituição da arbitragem, ou seja, protocolar pedido hábil suficiente a dar início ao procedimento arbitral.
Como se viu acima, a posterior Lei nº 13.129/2015 estancou as dúvidas a respeito, ao trazer a previsão de que “cessa a eficácia da medida cautelar ou de urgência se a parte interessada não requerer a instituição da arbitragem no prazo de 30 (trinta) dias, contado da efetivação da respectiva decisão.” (Parágrafo Único do artigo 22-A)
Houve, no entanto, um descompasso do legislador, pois a reforma introduzida, mesmo posterior à promulgação do Código de Processo Civil de 2015, desconsidera a inovação nele contida no que se referem às tutelas provisórias.
Ocorre que, de acordo com o Código de Processo Civil de 2015, não haverá 02 (dois) “processos” (cautelar e principal) no Poder Judiciário, mas apenas um, no qual deverá ser deduzido o pedido cautelar e, acaso deferido, o pedido principal. Assim, o que antes se dividia em dois autos distintos (processo cautelar e processo principal), agora, de acordo com o artigo 308 do Código de Processo Civil de 2015, deve ser cumprido nos mesmos autos, salvo se o processo principal tiver que ser submetido à arbitragem, como se verá a seguir.
De fato, quando se tratar de ação cautelar antecedente à arbitragem deve a parte que efetivar a cautelar requerer, no prazo de 30 (trinta) dias, a instituição da arbitragem, nos exatos moldes do que prevê o artigo 22-A, da Lei de Arbitragem.
Não deve causar maiores dificuldades ou surpresas o fato de o Código de Processo Civil de 2015 prever o aditamento nos mesmos autos, pois bastará mera adaptação ou acomodação para que esse novo modelo se adeque à prática, com a remessa dos autos da cautelar à arbitragem após constituição do tribunal, ou, se árbitro único, aceitação do encargo.
Assim, instaurado o juízo arbitral, a jurisdição do conflito passa a ser do árbitro (ou do tribunal arbitral), para onde serão remetidos os autos da cautelar para que a medida seja mantida ou revista, mesmo de ofício, pelo árbitro ou tribunal, conforme artigo 22-B da Lei de Arbitragem, pelo qual “…instituída a arbitragem, caberá aos árbitros manter, modificar ou revogar a medida cautelar ou de urgência concedida pelo Poder Judiciário”.
Interessante questão se coloca quando a tutela de urgência ainda pende de revisão perante o Tribunal Estatal, vale dizer, se ainda pende de julgamento agravo de instrumento tirado da decisão que concede a cautelar e, nesse meio tempo, já fora constituído o tribunal arbitral ou efetivamente instituída a arbitragem. Devem os autos aguardar a confirmação da cautelar pelo Tribunal Estatal, ou devem os autos ser remetidos à arbitragem ainda que penda revisão, pelo Tribunal Estatal, da cautelar deferida? Acreditamos que, nessa hipótese, cessa a jurisdição do Tribunal Estatal se e quando instituído o tribunal arbitral, nos termos do artigo 19 da Lei de Arbitragem.
Assim, devem os autos ser remetidos à arbitragem tão logo seja instituída a arbitragem, até porque, como vimos, poderá(ão) o(s) árbitro(s) árbitros manter, modificar ou revogar a medida cautelar ou de urgência concedida pelo Poder Judiciário (caput art. 22, B). Esvai-se, nesse momento, a competência do Poder Judiciário para apreciar o assunto, uma vez constituído o tribunal arbitral ou aceito o encargo pelo árbitro único.
Vejamos, agora, se o mesmo se aplica às tutelas provisórias antecipadas antecedentes, tal qual previsão nos artigos 303 e 304 do Código de Processo Civil de 2015.
4. Tutela Provisória Antecipada Antecedente à Arbitragem.
Antes da vigência do Código de Processo Civil de 2015, quando ainda vigente a sistemática diferenciadora das tutelas antecipadas e das cautelares, cada qual com seu regramento e requisitos próprios, a doutrina se dividia ao analisar se se admitiam as primeiras (antecipadas) quando se estivesse diante de uma relação jurídica com convenção arbitral.
Entendiam alguns que as tutelas antecipadas, pela própria satisfação temporária do direito, não poderiam ser utilizadas previamente à arbitragem, diferentemente das cautelares que, por sua natureza assecuratória, permitiam fossem utilizadas previamente à instauração da arbitragem, como forma de assegurar o resultado útil/prático da sentença arbitral final.
DONALDO ARMELIN[7], ao discorrer sobre a tutela de urgência e arbitragem assim assevera:
“Assume, então, a antecipação pré-arbitral dos efeitos da tutela, de certa forma, nestas hipóteses, sob a óptica procedimental, figura análoga à antiga e questionada cautelar satisfativa geradora de efeitos acautelatórios e satisfativos. Por isso mesmo, à míngua de disciplina processual própria, tornam-se aplicáveis a ela determinadas regras atinentes á cautelar pré-arbitral. Assim é que a inicial veiculadora do pedido de antecipação deve deixar patente o pedido a ser formulado na arbitragem a ser incoada. Sem isso não poderá o juiz aferir cuidar a espécie de antecipação de efeitos de um pedido a ser apresentado em arbitragem futura (…)
O princípio básico que governa a antecipação pré-arbitral dos efeitos decorrentes de arbitragem a ser instituída é o da prevalência das decisões que a respeito forem prolatadas pelos árbitros após essa instituição. Também não se pode desconsiderar que essa antecipação, por envolver decisão a respeito de parte do mérito da arbitragem, somente deve ser concedida em casos excepcionais, em que ela se faz mister para evitar perecimento de direito.”
Assim, embora excepcionalmente, entende o autor acima mencionado que era possível, sob a égide do Código de Processo Civil de 1973, a concessão de tutelas antecipadas pré-arbitrais, quando da necessidade de evitar risco de dano irreparável ou de difícil reparação, considerando que o seu impedimento causaria um hiato temporal prejudicial à parte que precisasse resguardar seu urgente direito enquanto ainda não constituído o tribunal arbitral.
Mas será que esse entendimento subsiste agora, na vigência do NCPC? Será que, numa relação jurídica com convenção arbitral, pode uma das partes lançar mão, previamente à instituição da arbitragem, das tutelas provisórias antecipadas antecedentes, uma vez que elas antecipam os efeitos do mérito, mérito esse que só poderia ser apreciado pelos árbitros?
A busca de respostas às questões acima ganhou um novo tempero diante da nova sistemática processual adotada para essa modalidade de tutela provisória, da previsão de aditamento da inicial, da complementação de argumentação, da estabilização da tutela etc. À primeira vista poderia parecer que a sistemática adotada pelo Código de Processo Civil de 2015 afastou ainda mais a arbitragem daquelas tutelas antecipadas requeridas em caráter antecedente.
No entanto, parece-nos não ser o procedimento aquele aspecto inviabilizador da adoção das tutelas antecipadas prévias à arbitragem, até porque as cautelares também apresentam aspecto desafiador no que se refere ao procedimento, mas especificamente a finalidade que se pretende com a tutela.
Vimos acima que as tutelas antecipadas objetivam satisfazer o direito do autor, melhor dizendo, pretendem antecipar determinados efeitos no mundo real que seriam obtidos somente com a prolação da decisão final do processo (no caso, da arbitragem). Não nos parece ser à toa que o artigo 303 do Código de Processo Civil de 2015 prescreva que a parte deve, na petição inicial, indicar o pedido de tutela final, com a exposição da lide, do direito que busca realizar e do perigo de dano, ou do risco ao resultado útil do processo[8].
Convém lembrarmos que a tutela antecipatória stricto sensu confere um bem da vida ao autor sem a realização plena do contraditório e, justamente por isso, possui uma repercussão na esfera jurídica do réu muito maior do que a simples cautelar. É importante lembrar que o Código de Processo Civil de 1973 foi alterado ao final de 1994 para que fosse atribuído ao juiz o poder/dever de outorgar tutelas antecipatórias, exatamente porque, naquela época, inúmeros doutrinadores não admitiam a tutela sumária satisfativa via cautelar inominada[9].
ATHOS GUSMÃO CARNEIRO, em 1998, já afirmava que “Uma coisa é proteger, mediante processo autônomo, a eficácia da sentença a ser proferida em outro processo, dito ‘principal’. Coisa substancialmente diversa é realizar desde logo, embora provisoriamente, a pretensão contida no processo ‘principal’” (Da Antecipação da Tutela no Processo Civil, Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 6-7).
Para KAZUO WATANABE:
“A tutela antecipatória é satisfativa, parcial ou totalmente, da própria tutela postulada na ação de conhecimento. A satisfação se dá através do adiantamento dos efeitos, no todo ou em parte, do provimento postulado. Já na tutela cautelar, segundo a doutrina dominante, há apenas a concessão de medidas colaterais que, diante da situação objetiva de perigo, procuram preservar as provas ou assegurar a frutuosidade do provimento da ‘ação principal’. Não é dotada, assim, de caráter satisfativo, a menos que se aceite, como fazemos, a existência de direito substancial de cautela, que é satisfativo pelo provimento concessivo da tutela cautelar”[10]
Então, parece-nos que as tutelas antecipadas, tais quais previstas no Código de Processo Civil de 2015, revigoram as hipóteses dos anteriores artigos 273 e 461 do Código de Processo Civil anterior, e se adequam aos casos em que o autor da ação pretende efetivamente satisfazer ou realizar um direito de forma antecipada, não apenas assegurar a efetivação de um direito futuro.
Mas, para tanto, mister que o magistrado avalie o mérito de forma que identifique a probabilidade do direito, conferindo ao autor parte do bem da vida inerente ao mérito da causa. Ocorre que adentrar no mérito, ainda que em sede de cognição sumária, lhe é vedado pela convenção arbitral, já que o mérito da disputa somente poderá ser analisado e decidido em arbitragem.
Num sentido extensivo no que se refere à adoção das tutelas antecipadas, interessante opinião traz FRANCISCO JOSÉ CAHALI:
“Considerando que são em regra provisórias as medidas na forma apresentada (tutelas provisórias de urgência), sendo incisivo e fora de dúvida a sua incorporação pelo pedido definitivo, que se ausente leva à extinção do processo sem resolução do mérito, e ainda, a impossibilidade de deferimento se irreversível a providência, quer nos parecer que será sim possível o deferimento de tutela de urgência antecipada antecedente (provisória e reversível). Na ponderação entre valores e regras, voltada a previsão processual exclusivamente a assegurar o direito da parte, excepcionalmente, a urgência se sobrepõe (sempre momentaneamente), à reserva de jurisdição do árbitro; porém, na utilização deste instrumento, a medida emergencial deverá no quanto mais possível limitar-se à tutela cautelar, evitando-se ao máximo, com extraordinário cuidado, a antecipação da tutela em nome da urgência.”[11]
Não se pode negar que a hipótese antecipatória deve albergar situações excepcionais, em que a urgência determina que o magistrado estatal ponha fim àquela situação de perigo de dano, ou do risco ao resultado útil do processo[12], mas tangenciando o núcleo (o mérito) da controvérsia, sem nele adentrar, sob pena de se arvorar indevidamente em temática de competência exclusiva da arbitragem.
MARCOS GOMES DA COSTA, em dissertação de mestrado[13] apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo afirma ser possível, embora em excepcionais hipóteses, que o Poder Judiciário conceda tutelas antecipadas prévias à instituição da arbitragem, ao sustentar que “Por essa razão, pode-se afirmar que a antecipação de tutela pré-arbitral deve ser uma exceção, cabível somente nas hipóteses em que haja real e efetivo risco de perecimento do bem da vida a ser tutelado na arbitragem, sendo plausível e viável, também, a exigência de caução para o seu deferimento.”
Contudo, afigura-nos vedada ao magistrado a hipótese de conferir tutelas antecipadas prévias à arbitragem quando se adentra à cognição da probabilidade do direito, quando se faz um juízo valorativo do mérito para, nestes casos, antecipar ao autor determinados efeitos que, em condições normais, só seriam produzidos / obtidos, na prática, ao final da arbitragem.
Deverá o magistrado, diante de um pedido de tutela antecipada prévia arbitragem, limitar-se a conceder medida tendente a afastar o perigo de dano, ou do risco ao resultado útil do processo, mas sem adentrar o mérito da controvérsia, valendo-se, se o caso, do § 6º do art. 303, do Código de Processo Civil de 2015 (determinação para aditamento da inicial, caso entenda que não há elementos para conceder a tutela), ou, então, adotando a fungibilidade para conferir ao autor um provimento cautelar adequado.
Nem se diga que o procedimento da tutela antecipada requerida em caráter antecedente seja empecilho para o seu deferimento, em razão da possibilidade de aditamento, estabilização da tutela, etc. Para superar essas especificidades do atual procedimento previsto no artigo 303 e seguintes do Código de Processo Civil de 2015 entendemos perfeitamente possível emprestar fungibilidade ao pedido do autor e assim atender aos reclamos da urgência, não pela via antecipada, mas pela via cautelar, com base na fungibilidade prevista no artigo 305, parágrafo único, do Código de Processo Civil.
Assim, ao nosso sentir, pensamos ser melhor que o magistrado receba o pedido de tutela antecipada como se cautelar fosse, determinando eventual correção da inicial, ou, em casos excepcionais, adotar o art. 305, parágrafo único do Código de Processo Civil de 2015 para converter o procedimento, evitando ao máximo, com rigorismo necessário, adentrar ao mérito como justificativa para a concessão de antecipação da tutela em nome da urgência.
5. A fungibilidade prevista no artigo 305, parágrafo único, do Código de Processo Civil de 2015
O anterior §7º, do art. 273, do Código de Processo Civil de 1973 previa que “se o autor, a título de antecipação de tutela, requerer providência de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos pressupostos, deferir a medida cautelar em caráter incidental do processo ajuizado.”
Semelhante artigo foi mantido no Código de Processo Civil de 2015. Com efeito o novo Código previu que o magistrado poderá, ao receber a petição inicial com pedido de tutela cautelar antecedente, se entender que se trata de pedido de natureza antecipada, poderá conceder a tutela antecipada, com a determinação de efetivação da medida pleiteada.
Trata-se de fungibilidade do pedido cautelar em pedido de tutela antecipada, expressamente previsto no parágrafo único do artigo 305, do Código de Processo Civil de 2015. Ocorre que não há, no código, a fungibilidade reversa, vale dizer de tutela antecipada para cautelar, pelo que remanesce a pergunta se o magistrado poderá, ao receber pedido de tutela antecipada, converter dito pedido em cautelar se assim entender necessário.
CASSIO SCARPINELLA BUENO[14] entende que a fungibilidade possui mão dupla embora o Código de Processo Civil de 2015 não preveja expressamente tal possibilidade[15], confira-se:
“O parágrafo único evidencia a possiblidade de aplicação do art. 303 se o magistrado entender que o pedido tem natureza antecipada. Trata-se, não há por que negar, de um resquício da fungibilidade que, embora de forma invertida, deriva do § 7º do art. 273 do CPC de 1973 e que, tanto quanto no direito atual, merece ser interpretado amplamente para albergar, também, a hipótese inversa, qual seja a de o magistrado, analisando petição inicial fundamentada no art. 303 (“tutela antecipada”), entender que o caso amolda-se mais adequadamente à “tutela cautelar”, determinando, por isso, a observância dos arts. 305 e ss.
O entendimento é tanto mais correto porque, no CPC de 2015, nem sequer subsiste a diferença literal entre os requisitos de uma e de outra espécie de tutela, como se verifica da comparação entre os capi dos arts. 303 e 305, como já anotado por ocasião da análise do art. 294, a não ser o verbo “realizar” para a tutela antecipada e o verbo “assegurar” para a tutela cautelar. Também por causa da previsão do § 1º do art. 308, que admite a formulação do pedido principal conjuntamente com o pedido de tutela cautelar.”
Esse entendimento é bastante importante para as hipóteses em estudo no presente artigo, que permite que o magistrado adeque o provimento ao campo da análise do direito material ao qual está adstrito, evitando-se enveredar pelo mérito quando estivermos diante de relações jurídicas com convenção arbitral.
Assim, ainda que se trate de pedido de tutela antecipada em caráter antecedente, prévia à instituição de arbitragem, poderá o magistrado adequar o pedido, converter o procedimento em cautelar, e proferir provimento acautelatório, tomando o devido cuidado para não ingressar no âmago do direito material inerente à arbitragem.
Referida fungibilidade (reversibilidade) permite que o magistrado empreste efetividade à jurisdição estatal naqueles casos em que, diante da urgência, não pode a parte aguardar a instituição da arbitragem, devendo o magistrado, ao valer-se desta faculdade, limitar-se ao máximo à asseguração do direito, evitando imiscuir nas matérias cognoscíveis exclusivamente pelos árbitros.[16]
Deferida a tutela provisória em nome da urgência, após a sua efetivação, caberá a parte pleitear a instituição da arbitragem no prazo de 30 (trinta) dias a que alude o artigo 22-A, da Lei nº 13.129/2015, incumbindo aos árbitros manter, modificar ou revogar a medida cautelar ou de urgência concedida pelo Poder Judiciário.
Com isso emprestar-se-á efetividade às tutelas provisórias urgentes prévias à arbitragem, em especial atenção ao amplo acesso à justiça, por todos os meios e recursos a ela inerentes, conforme previsto no art. 5º XXXV e LXXVIII, da Constituição Federal.
6. Conclusão
O presente artigo pretendeu trazer uma acomodação interpretativa quanto ao regime das tutelas provisórias previstas no Código de Processo Civil de 2015, suas espécies e condições, adequando-as à prática arbitral em casos de urgência prévia à instituição da arbitragem.
Conclui-se, do acima exposto, que há uma inadequação conceitual entre as tutelas provisórias previstas no Código de Processo Civil de 2015 e as hipóteses tratadas na Lei nº 13.129/2015 e que alterou dispositivos da Lei de Arbitragem, incluindo os artigos 22 “A” e “B” e a expressa autorização para que o Poder Judiciário conceda medidas cautelares e urgentes prévias à instituição da arbitragem.
Tais diferenças conceituais não devem atrapalhar o operador do Direito que, na prática, se vê premido da urgência na obtenção de tutela provisória tendente a evitar perigo de dano, ou risco ao resultado útil do processo/procedimento arbitral e não pode aguardar o hiato temporal até a efetiva instauração do procedimento arbitral.
Continuam perfeitamente cabíveis, portanto, as cautelares fundadas no poder geral de cautela, mantido no Código de Processo Civil de 2015, com simples adequação do procedimento para que, uma vez efetivada a cautelar, seja pleiteada pelo autor da demanda a instauração da arbitragem, no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de perda de eficácia da medida.
De modo diverso, afigura-nos extraordinário e, portanto, deve ser mitigado o poder dado ao magistrado para conferir tutelas antecipadas prévias à arbitragem quando, num juízo valorativo da probabilidade de mérito, adentra à cognição do direito material e, nesses casos, antecipa ao autor determinados efeitos que, em condições normais, só seriam produzidos / obtidos, na prática, ao final da arbitragem.
Alternativas há para essa limitação imposta pela arbitragem ao campo cognoscível por parte do magistrado estatal, e que a ele podem ser extremamente úteis, caso a caso, seja pela determinação de correção da petição inicial (art. 303, §6º do Código de Processo Civil de 2015), pela linha da fungibilidade reversa (art. 305, parágrafo único do mesmo Código), ou pela aplicação do poder geral de cautela (art. 301, in fine do Código).
Prestigia-se, com isso, a utilização do processo civil em benefício da pacificação social, lembrando OVÍDIO ARAÚJO BAPTISTA SILVA pelo qual “o preço que as épocas de crise têm de pagar aos desígnios insondáveis da História é a incômoda contingência de conviver com as incertezas, que prenunciam as grandes revoluções culturais. A consequência desse estado de coisas será sempre o aumento da criação judicial do direito e o crescimento da importância da ‘força normativa factual’ sobre a norma legal escrita.”[17]
Marcos Serra Netto Fioravanti
Mestrando em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Advogado, especialista em Contratos Empresarias e Arbitragem pela FGV/GVLaw e em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP (COGEAE).
[1] Lemes, Selma. A inteligência do art. 19 da Lei de Arbitragem (Instituição da Arbitragem) e as medidas cautelares preparatórias. Parecer ínsito na Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, v. 20, abril-junho de 2003, p. 418 et passim.
[2] Costa e Silva, Paula. A Arbitrabilidade de Medidas Cautelares nos Direito Português e Brasileiro. Revista Brasileira da Arbitragem, Ano I, n. 4, out-dez. 2004, p.66/67.
[3] Batista, Pedro. Da Ausência de Poderes Coercitivos e Cautelares do Árbitro, in Aspectos fundamentais da Lei de Arbitragem, Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1999, p. 357 et passim.
[4] Carmona, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo. 2. ed. São Paulo, Ed. Atlas, 2004, p. 268 e s.
[5] ARMELIN, Donaldo. “A tutela jurisdicional cautelar”, Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, 23/129.
[6] AUGUSTO DE ASSIS, Carlos. A Antecipação da Tutela, São Paulo: Malheiros, 2001, p. 129-130)
[7] ARMELIN, Donaldo. Tutela de Urgência e Arbitragem. Estudos em homenagem a Ovídio A. Baptista da Silva. São Paulo: Saraiva, 2010, v. 1, p. 360-378.
[8] CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO também afirma que as tutelas jurisdicionais antecipadas são “as medidas que oferecem ao sujeito, desde logo, a fruição integral ou parcial do próprio bem ou situação pela qual litiga”, enquanto que as medidas cautelares são “as medidas destinadas a proteger o processo em sua eficácia ou na qualidade de seu produto final.” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, vol. I. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 161)
[9] FLÁVIO LUIZ YARSHELL ressalta que a autonomia conceitual da “tutela antecipada” também constituiu garantia do sistema processual contra a denegação de justiça pelos juízes, os quais, muitas vezes, indeferiam medidas cautelares satisfativas urgentes sob o argumento de que elas seriam incompatíveis com a tutela cautelar (“Antecipação de Tutela Específica nas Obrigações de Declaração de Vontade, no Sistema do CPC”) in Aspectos Polêmicos da Antecipação de Tutela. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). São Paulo: RT, 1997, p. 172, nota 1).
[10] “Tutela antecipatória e tutela específica das obrigações de fazer e não-fazer”, in Reforma do Código de Processo Civil (coordenado pelo Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira), São Paulo: Saraiva, 1996, p. 38). No mesmo sentido Ovídio Baptista da Silva (Curso de Processo Civil, v. 3, São Paulo: RT, 2000), Donaldo Armelin (“A tutela jurisdicional cautelar”, Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo 23) e Luiz Fux (Tutela da Segurança e Tutela da Evidência, São Paulo: Saraiva, 1996).
[11] CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 299.
[12] Essa parte final do caput do artigo 303 do NCPC revela medida eminentemente cautelar / assecuratória, embora no artigo atinente às tutelas antecipadas.
[13] GOMES DA COSTA, Marcos. Dissertação de Mestrado apresentada na Universidade de São Paulo – USP, sob o nº USP 7124540, Tutela de Urgência e Processo Arbitral: São Paulo, 2013. p. 133-134.
[14] Bueno, Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil Anotado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. P. 285.
[15] Esse também é o entendimento de CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO ao comentar o anterior artigo 273 do Código de Processo Civil de 1973 e pelo qual “a redação do novo §7º do art. 273 não é suficientemente clara, porque dá a impressão de que somente autorizaria o juiz a receber como cautelar uma demanda proposta com o título de antecipação, e não o contrário. Essa impressão é falsa, porque é inerente a toda fungibilidade a possibilidade de intercâmbio recíproco, em todos os sentidos imagináveis. Não há fungibilidade em mão única de direção. Já é geralmente aceito, diante disso, que o novo dispositivo autoriza o juiz, amplamente, a receber qualquer pedido de tutela urgente, enquadrando-o na categoria que entender adequada, ainda que o demandante haja errado ao qualificar o que é cautelar como antecipação, ou o que antecipação como cautelar.” (DINAMARCO, Cândido Rangel. O regime jurídico das medidas urgentes” in A nova era do processo civil. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 60/61)
[16] A tese da mão dupla da fungibilidade também foi encampada pelos nossos Tribunais Superiores. A respeito cite-se voto proferido pela Ministra NANCY ANDRIGHI, em 11/10/2011, tendo ressaltado que “o §7º do art. 273 do CPC, acrescido pela Lei nº 10.444/02, reestruturou a sistemática de concessão das tutelas provisórias de urgência, autorizando que seja incidentalmente concedida tutela cautelar no âmbito do processo principal.”
[17] SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Jurisdição e Execução na Tradição Romano-Canônica, p. 210.