Processo Civil

Matéria com conteúdo de ação de conhecimento ou de ordem pública deve ser conhecida pelo julgador apesar da intempestividade dos embargos do devedor

* Luiz Cláudio Barreto Silva

A intempestividade dos embargos do devedor não é motivo para que o Julgador deixe de apreciar matérias com conteúdo de ação de conhecimento e de ordem pública. Em tais circunstâncias, as matérias de ordem pública devem ser apreciadas de ofício e as de conhecimento examinadas como ação autônoma (art. 486 e 267, § 3º do CPC).  Esse é o entendimento predominante em sede doutrinária e jurisprudencial.

É certo que são numerosos os casos de extinção do processo de embargos por intempestividade em evidente alheamento à legislação federal e aos princípios da instrumentalidade das formas e da economia processual, conduzindo o executado ao socorro da ação autônoma do artigo 486 do Código de Processo Civil.

Sobre o assunto, expressivos são os conceitos emitidos por Maria Helena Rau De Souza:

“Assim, se houver fluído o trintídio legal sem a interposição de embargos, ou, acaso opostos, tenham sido extintos sem julgamento do mérito (v.g., irregularidade processual não sanada no prazo legal), seria admissível, posteriormente, a ação anulatória para desconstituição do crédito exequente? A resposta, parece-nos, há de ser afirmada, pela inexistência da res judicata“.[i]

É também a lição de Humberto Theodoro Júnior comparando o decurso de prazo para os embargos com o do mandado de segurança e chamando a atenção para o fato de que nada impede o debate em ação autônoma:

“A perda do prazo para opor os embargos é apenas um fenômeno interno do processo executivo. A preclusão que daí decorre produz efeito sobre o processo dentro do qual se deu a não utilização da faculdade de agir. Nunca fora dele, de modo a impedir o exercício de qualquer outra ação acerca do título obrigacional exequendo.

(…).

Dá-se com o devedor que não se vale dos embargos, ou deles não pode se valer o mesmo que ocorre com o interessado que não afora o MS no prazo decadencial de 120 dias (L.1533/51, art. 18). Extinto o direito de defender-se por via do writ, restará à parte o direito de ação a ser exercido pelas demais vias processuais, e nunca lhe será trancado, por aquela decadência, o exercício genérico do direito de ação.

Convém lembrar que os embargos à execução se apresentam como o único meio de questionar em juízo a pretensão do credor. Outros meios igualmente adequados para solucionar o conflito de interesses já existiam antes mesmo do processo executivo e continuam a existir durante a execução e até mesmo depois de extinta esta sem oposição dos embargos.

Está previsto no texto expresso da lei processual que “o credor ressarcirá ao devedor os danos que este sofreu, quando a sentença, passada em julgado, declarar inexistente, no todo ou em parte, a obrigação, que deu lugar à execução”.

“É evidente, pois, que a responsabilidade civil do exequente pode ser apurada em processo posterior ao encerramento da execução forçada. O que demonstra que, para o sistema de nosso direito processual positivo, não é vedada a legitimidade e, consequentemente, o processo desconhecimento acerca do título executivo mesmo após a extinção da execução forçada, com pagamento em favor do credor” (HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, ob. Cit., p. 472; HAROLD PABST, Natureza jurídica dos embargos do executado, SP, Ed. RT, 1986).

Em suma: “em razão de execução injusta e não embargada, ao executado está facultada a possibilidade de propor demanda cognitiva autônoma, visando à obtenção de provimento jurisdicional declaratório ou desconstutivo do título executivo” (PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON, Embargos à Execução, SP, Saraiva, 1996, n.º 107, p. 255 – 256). No mesmo sentido: ALCIDES DE MENDONÇA LIMA, “A revelia nos embargos do devedor”,  Rev. de processo, v. 33, p. 195; LIEBMAN, Embargos do Executado, 2ª Ed. SP, Saraiva, n.º 140, p.211).

Em outras palavras: “Não há uma obrigação do executado de oferecer embargos, mas apenas uma faculdade” (SANTOS LUCON, ob. cit., p. 257). Mesmo pagando o débito ajuizado, sem embargar, não estará o devedor impedido de promover ulteriormente ação ordinária de repetição do indébito (SATTA, L’escuzione forzata, 4ª Ed., Torino, Utet, 1963, n.º 168, p.232; COUTURE, Fundamentos del derecho procesal civil, Buenos Aires, 1974, n.º 310, p.475)”. [ii]

No campo jurisprudencial a matéria já é por demais surrada, em especial no Superior Tribunal de Justiça, o que se extrai de precedentes da relatoria do Ministro Peçanha Martins, com a seguinte ementa:

“PROCESSO DE EXECUÇÃO. PRECLUSÃO ‘PRO JUDICATO’. COISA JULGADA MATERIAL INEXISTENTE. Inocorre preclusão, e portanto a validade e eficácia do título executivo extrajudicial podem ser objeto de posterior ação de conhecimento, quando na execução não forem opostos embargos do devedor, e igualmente quando tais embargos, embora opostos, não foram recebidos ou apreciados em seu mérito. Inexistência de coisa julgada material, e da imutabilidade dela decorrente”.[iii]

“Não se confundem os embargos do devedor, que visa a extinguir o processo de execução ou a desfazer a eficácia do título executivo, com a ação anulatória cujo escopo é o reconhecimento da inexistência da dívida fiscal.

Não sendo embargada a execução, inexiste sentença, não se podendo falar de coisa julgada capaz de impedir a propositura da ação anulatória do lançamento fiscal “. [iv]

No entanto, em nome dos princípios da instrumentalidade das formas e da economia processual, e a despeito da intempestividade dos embargos, o entendimento converge para o processamento da ação de embargos como aquela do artigo 486 do Código de Processo Civil sem a necessidade de nova ação.  

Sobre o assunto, a lição de José Miguel Garcia Medina, Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda Alvim Wambier, enriquecida com precedente do Superior Tribunal de Justiça:

“De acordo com o inc. I do art. 739, os embargos serão indeferidos “quando intempestivos”. Segundo pensamos, neste caso o juiz deverá ater-se ao conteúdo dos embargos, antes de, simplesmente indeferi-los liminarmente. Assim, (a) se os embargos intempestivos versarem matéria de ordem pública, que deve ser conhecida ex-officio pelo juiz da execução, a respeito da qual não se opere a preclusão, deverá o juiz conhecer de tal matéria, a despeito da intempestividade dos embargos; (b) se os embargos, embora apresentados intempestivamente, veicularem conteúdo de ação de conhecimento, deverá o juiz indeferir o seu processamento como embargos, admitindo tal demanda, contudo, como ação autônoma.

Nesse sentido decidiu, com acerto, o Superior Tribunal de Justiça, em acórdão relatado pelo Min. Teori Albino Zavascki:

“Embargos à execução, visando ao reconhecimento da ilegitimidade do débito fiscal em execução, têm natureza de ação cognitiva, semelhante à da ação anulatória autônoma. Assim, a rigor, a sua intempestividade não acarreta necessariamente a extinção do processo. Interpretação sistemática e teleológica do art. 739, I, do CPC, permite o entendimento de que a rejeição dos embargos intempestivos não afasta a viabilidade de seu recebimento e processamento como ação autônoma, ainda que sem a eficácia de suspender a execução. Esse entendimento é compatível com o princípio da instrumentalidade das formas e da economia processual, já que evita a propositura de outra ação, com idênticas partes, causa de pedir e pedido da anterior, só mudando o nome (de embargos para anulatória)”. [v]

Por conseguinte, e a despeito dos entendimentos em sentido diverso, nada impede que, intempestiva a ação de embargos, seja ela conhecida como a ação do artigo 486 do Código de Processo Civil em homenagem aos princípios da instrumentalidade das formas e da economia processual, dispensando-se a obrigatoriedade de propositura de nova ação.

* O autor é Advogado, Escritor, Pós-Graduado em Direito do Trabalho e Legislação Social, Presidente da Comissão de Direito e Tecnologia da 12ª. Subseção da OAB/RJ de Campos dos Goytacazes, ex-diretor Geral da Escola Superior de Advocacia da 12ª. Subseção da OAB de Campos dos Goytacazes e ex-Professor Universitário.



 Notas e referências bibliográficas

[i]  FREITAS, Vladimir Passos de. (Coord.) Execução Fiscal – Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 520, n. 4.1.

 [ii] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Tutela Cautelar e Antecipatória em Matéria Tributária. Porto Alegre. In: Revista de Estudos Tributários,  n.. 2, p. 24–25, jul./ago. 1998.

[iii] STJ. Agravo regimental no agravo de instrumento n. 8089-SP. Relator: Min. Athos Carneiro. In: DJU de 22.05.91, p. 6.537.

[iv] STJ. REsp. 9.401-0-SP. Rel: Min. Peçanha Martins. In: DJU de 25.10.1993, p. 22.469. 

[v] MEDINA, José Miguel Garcia, WAMBIER, Luiz Rodrigues e WAMBIER, Teresa Arruda Alvim In: Breves Comentários à Nova Sistemática Processual Civil, vol. 3, RT, 2007).

Como citar e referenciar este artigo:
SILVA, Luiz Cláudio Barreto. Matéria com conteúdo de ação de conhecimento ou de ordem pública deve ser conhecida pelo julgador apesar da intempestividade dos embargos do devedor. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2014. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/processo-civil/materia-com-conteudo-de-acao-de-conhecimento-ou-de-ordem-publica-deve-ser-conhecida-pelo-julgador-apesar-da-intempestividade-dos-embargos-do-devedor/ Acesso em: 16 abr. 2024