Hermenêutica

Constituição, Lei e “Ilícito Legal”

Constituição, Lei e “Ilícito Legal”

 

Atahualpa Fernandez *

Atahualpa Fernandez Bisneto **

 

 

“O objetivo da boa interpretação não é conseguir que os intérpretes admirem e reproduzam uma legislação já feita, senão fazê-los capazes de valorá-la e de corrigí-la; interpretar/aplicar o direito é acima de tudo uma virtuosa responsabilidade ética: podemos admirar o estilo de um discurso jurídico ou a habilidade do sujeito-intérprete, mas ainda assim devemos julgar tanto a um como ao outro pelos resultados de sua atividade.”

 

 

Interpretação (constitucional) e força normativa da ConstituiçãoÆ

 

O pensamento revolucionário do século XVIII, fundado no projeto da ilustração e que primeiro passa das ideáis básicas de autonomia, de universalidade, de igualdade inegociável de direitos e de democracia até um robustecimento da idéia de lei geral e, seguidamente, a de uma pretensão de regulamentação mediante leis sistemáticas e completas – tanto da ação do poder como da ordem social liberal -, veio a concluir em um resultado inesperado e  “absoluto”: de que todo o direito deve encerrar-se em leis e de que os juizes devem limitar-se a inquirir da norma legal a solução devida,  isto é, de que fora da lei não há critérios jurídicamente válidos.

 

Hoje, a pergunta sobre como interpretar corretamente a lei recorre toda a história do direito moderno. O que varia é a intensidade com que se coloca o problema e a índole das respostas. Nos começos do movimento codificador, desde fins do século XVIII, era tal a confiança na racionalidade imanente dos códigos que se confiava em que a interpretação sequer seria necessária. Entre as virtudes taumatúrgicas do legislador e sua obra, o código, se contava com a da claridade e se aplicava o velho brocardo in claris non fit interpretatio[1].

 

Estamos, pois, nos antípodas da contemporânea consciência de que a interpretação comparece sempre antes de que um enunciado jurídico possa converter-se em norma aplicável ao caso. A metodologia da interpretação jurídica da maior parte do século XIX veio a ser, em conseqüência, relativamente simples. Em uns casos, consistiu em remeter a solução de toda dúvida interpretativa à averiguação da vontade do autor da norma, tal como havia proposto em França a Escola da Exegese. Em outros, se confiava em que o emprego simultâneo de vários cânones da interpretação conduziria inevitavelmente à determinação do mais exato e correto sentido próprio da norma. Assim foi como Savigny deu na Alemanha de princípios do século XIX sua forma “canônica” à teoria dos cânones da interpretação jurídica.

 

Sem embargo, muito embora essa concepção do direito e, sobretudo, este mecanismo de ordenação e regulação social tenha vindo a predominar uma vez instaurada a codificação  -concluída ao longo do século XIX -, ela veio a ser posta em causa desde uma perspectiva teórica e, a sua vez, desde a própria experiência judical que, pouco a pouco, começou a intuir a insuficiência desse intento de reduzir a função do juiz a um problema puramente mecânico de subsunção automática do caso concreto ao enunciado geral da norma pré-estabelecida pelo legislador. Ao final desse século XIX se vai impondo a consciência do papel criativo do juiz e da inevitabilidade (e a dificuldade) da interpretação que sempre há de se levar a cabo.

 

Daí que toda a primeira metade do século XX contemplou um movimento de amplo debate crítico frente ao positivismo jurídico, nomeadamente com relação à redução do direito  a uma lei formal e casuística que não admitisse sequer processos interpretativos. O finalismo, o sociologismo, a escola livre do direito, o renascimento do jusnaturalismo, o realismo, o jurisprudencialismo, o principialismo, a tópica, a nova retórica, entre muitas outras, ensaiaram suas armas para aquebrantar, desde a teoria do direito, esse dogma central do sistema que, em última análise, não permitia uma solução “justa” dos conflitos sociais. E a grande objeção ao positivismo jurídico era, simplesmente, a justiça, valor sem o qual o direito não pode  sequer ser concebível.

 

Como resultado de todo esse movimento crítico, deixou-se de admitir como legítima a teoria tradicional segundo a qual, em qualquer caso, é possível aplicar a lei sem interpretá-la, ou seja, de que a interpretação possa reduzir-se ao muito limitado esquema do silogismo formal interpretativo do direito positivo. Pelo contrário, para essa concepção revisada, em toda interpretação se reproduz necessariamente o processo valorativo material que se conclui na lei, operação esta que, por força, pressupõe o manejo dos valores que articulam e animam as estruturas normativas e a própria idéia do direito. Afinal, se a comunidade subsiste na sua existência histórico-cultural, a tarefa de realizar concreta e historicamente a explicitação constituinte do direito e do projeto axiológico que a sociedade a si mesma se põe será sempre uma intencionalidade críticamente valorativa e espiritual.

 

Assim que o intento de separar em dois planos distintos e incomunicáveis a estrutura do direito, um material e político (onde se efetuariam as valorações dos interesses e valores que se incorporam em uma norma legal determinada) e outro formal e puramente lógico-dedutivo (que, sem ter que retornar para nada ao processo restrito ao legislativo, estaria reservado ao juiz) resultou definitivamente rompido, sendo que com esta ruptura se fragilizaram também as bases mesmas do positivismo jurídico que, confundindo direito com o “direito posto” (pelo Estado), a legalidade vigente com a legitimidade jurídica e sobrevalorizando não só o método algoritmo[2] como também a segurança em detrimento do comunitário projeto axiológico-jurídico, foi (e ainda é) responsável  por graves aberrações que acabaram por atentar contra a dignidade da pessoa humana. Nas palavras de Wezel, o positivismo destruiu a razão (a faculdade das ideáis, para lembrar Kant), convertendo-a em intelecto técnico e instrumental.

 

Decerto que se pode argumentar que esta situação é excepcional e não deve, por isto, ser tomada em consideração. Mas engana-se quem assim pondera. A vida social despenca do normal para o excepcional com mais facilidade do que se pensa e com maior rapidez do que seria imaginável. E a história (e as ciências da vida) está aí para demonstrar a necessidade de uma adequada preparação do juiz para tratar com valores, normas e princípios jurídicos, e, muito especialmente, para fazer frente ao emocional e ao imprevisto, advindos tanto do hemorrágico processo de elaboração de leis quanto do subjetivismo que afeta a tarefa de realização do direito  e do ensandecido entorno sócio-cultural. Entre estas duas dimensões não há, por certo, diferença qualitativa essencial. Ao contrário, o que se verifica é sua permeabilidade de nenhum modo estranhável, uma vez que a atividade legislativa, por vezes desviada dos objetivos maiores de uma adequada convivência ético-social, acaba por resultar em um reflexo de insteresses corporativos e políticos insustentáveis. Essa a razão pela qual o objetivo da boa interpretação não é conseguir que os intérpretes admirem e reproduzam uma legislação já feita, senão fazê-los capazes de valorá-la e de corrigí-la.

 

Por outro lado, a consideração da Constituição como norma jurídica – norma invocável em juízo pelos cidadãos e não somente organizadora dos poderes superiores do Estado – foi outro dos fatores que serviu para pôr em xeque um dos dogmas basilares do positivismo jurídico: o da superioridade irresistível e absoluta da lei e a correlativa proibição de indagar, no processo de realização (de interpretação e aplicação) do direito, sobre as razões de suas  regras, impostas como mandamentos inexoráveis. Some-se a isso o fato de que um modelo institucional desenhado a partir de uma concepção republicana democrática, com seu peculiar talante de modelo ético-político aberto, acabou por aportar valores de cidadania e de metodologia jurídico-política essencialmente úteis para tomar o direito (e consequentemente a lei) como um instrumento de construção social e, muito particularmente, para assimilar os câmbios formais e materiais no processo de tomada de decisões ante a dinâmica fluída (e por vezes enlouquecida) do “mundo da vida” cotidiana.

 

De pronto, o quadro dos direitos fundamentais formulados pela norma constitucional em uma república democrática deixaram de ser meros enunciados finalistas (que somente e quando os assumisse o legislador passariam a ter alguma eficácia e na medida em que o próprio legislador livremente assim o quisesse) e passaram a ser diretamente operativos, sem necessidade da intermediação legal e ainda por encima da própria intermediação, quando existente. Por incorporar sempre determinadas opções políticas e sociais profundas, a aplicação direta da Constituição, com todo o seu sistema de princípios e de valores, a sua  indiscutível  superioridade normativa e a iniludível interpretação de todo o ordenamento em conformidade com as normas que estabelece, fez com que o processo de realização do direito, longe de poder conceber-se como uma operação puramente mecânica, passasse a ser algo cuja tarefa levanta necessária e rigorosamente ao menos três questões fundamentais:  de ordem epistemológica,  de ordem axiológico-política e de ordem  subjetivo-individual do jurista-intérprete.

 

E isso porque nem princípios nem regras regulam por si mesmos sua aplicação no âmbito do comportamento humano. Eles representam apenas os pilares passivos do sistema jurídico. Para obter um modelo completo é imprescindível agregar aos pilares passivos um ativo, quer dizer, um procedimento de interpretação, de justificação e de aplicação das regras e princípios jurídicos. Portanto, os níveis das regras, dos princípios e do comportamento humano têm que ser completados por um quarto: o de um processo de concreta realização do direito e a correspondente dimensão subjetiva, isto é, a participação (pessoal, subjetiva, neuronal) do operador do direito[3]. 

 

Seja como for, a questão da interpretação constitucional parece estar no centro da teoria jurídica. As razões são, cremos, bastante óbvias. Uma delas reside no caráter de  supralegalidade que se reconhece às constituições contemporâneas: a interpretação constitucional é, assim, uma interpretação  superior  a das outras normas, ou, dito de outra maneira, a interpretação constitucional  marca os limites de possibilidade da interpretação de todas as demais normas e  estabelece para todos os níveis da ordem jurídica a obrigação  de interpretar de acordo – ou em conformidade – com a Constituição. A outra razão deriva da peculiaridade que têm as constituições (em relação com os demais materiais jurídicos) no sentido de que aqui predominam enunciados de princípios ou enunciados valorativos, que se invocam com uma alta carga emotiva e cuja interpretação apresenta uma  maior complexidade – dá lugar a maiores disputas – que a das demais normas (entendida a expressão em seu sentido mais amplo) do resto do ordenamento jurídico.

 

Com efeito, desde o momento em que, por esses motivos, resultou claro que há que operar diretamente com princípios e valores, a atividade hermenêutica, para além de sua função mecanicista, acabou por restituir aos juízes o seu papel essencial de assegurar a validade substancial, a legitimidade e a efetividade da ordem jurídica (como instrumentos qualificados e imprescindíveis desta), não mais reduzidos a mera função burocrática de “despachar processos”, prontos para homologar e dar execução a todo e qualquer  ditame do poder.

 

E embora não se trate de oferecer aqui uma teoria acerca das regras, valores e princípios jurídicos, bastará por notar que, segundo Alexy, os princípios são mandatos de otimização, que pertencem ao âmbito deontológico, enquanto que os valores estão incluídos em uma dimensão axiológica: o que no modelo dos valores é o melhor, no modelo dos princípios, é o devido. Para o que aquí nos interessa, a distinção essencial parece ser a seguinte: as regras nos proporcionam o critério de nossas ações, nos dizem como devemos,  não devemos, ou podemos atuar em determinadas situações específicas previstas pelas regras mesmas; os princípios, diretamente, não nos dizem nada a este respeito, mas nos proporcionam critérios para  tomar posição ante situações concretas que a priori aparecem indeterminadas. Os princípios geram atitudes favoráveis ou contrárias, de adesão e apoio ou de discenso e repulsa a tudo o que pode estar implicado em sua salvaguarda em cada caso concreto.

 

E uma vez que carecem de “suposto de fato”, aos princípios, em maior grau do que sucede com as regras, somente se lhes pode atribuir algum significado operativo fazendo-lhes  “reacionar” ante algum caso concreto – ou seja, de forma muito mais acentuada que as regras, seu significado não pode determinar-se em abstrato, senão somente nos casos concretos, e somente nos casos concretos se pode entender seu alcance (Zagrebelsky, 1995). Em resumo, aos “princípios” falta a determinabilidade dos casos de aplicação e apresentam uma dimensão que as “regras” não têm: uma dimensão de peso ou importância, que se revela a propósito do seu modo específico de colisão. Ademais disso, os “princípios” não são hierarquizáveis em abstrato, conseguindo cada um a prevalência face ao outro à luz das razões determinantes do caso concreto ou de determinado círculo (hermenêutico) problemático.

 

Assim que parece estar mais além de toda e qualquer dúvida razoável o fato de que os operadores do direito que primam pelos princípios e valores jurídicos tendem a ser mais rigorosos  e construídos do que aqueles que insistem em desconhecê-los em aras de um culto formal e dogmático à lei e a uma ortodoxa exegese interpretativa. Trata-se de um processo interpretativo que não gera por si só instabilidade alguma, que obriga os operadores do direito (designadamente os magistrados) a uma preparação mais profunda, sofisticada e matizada do fenômeno jurídico, e  por meio do qual a segurança jurídica não é, de nenhum modo, menor a que possa resultar de um positivismo ideológico ou de uma estrita observância da norma jurídica – isto é, daquela concepção de que o direito positivo, pelo fato de sê-lo, é ademais justo.

 

E para não correr o risco de situar-nos na mais pura e cômoda elucubração teórica, referimo-nos, aqui, às obras de Esser, Dworkin e Alexy, assim como grande parte das propostas hermenêuticas e  argumentativas contemporâneas, segundo as quais a vinculação do juiz à lei não se vulnera nem se reduz pelo emprego de valores e princípios jurídicos no processo interpretativo, sempre e quando tais princípios e valores se utilizem por operadores virtuosos e qualificados, e se insertem no sistema normativo como o “óleo” que facilita seu funcionamento e não como uma “alternativa”, uma exceção ou uma ruptura do mesmo.

 

O juiz que aplica princípios e valores jurídicos é, pois, um arquiteto com instruções bem precisas acerca de quais são os parâmetros do estado de coisas que deve desenhar, mas com apenas instruções a respeito do desenho concreto. A possibilidade, e ainda a necessidade, de se aprofundar no conteúdo dos valores e princípios lhe vem dada pelos próprios elementos do moderno direito constitucional ao que já fizemos referência. Primeiro, o caráter normativo direto das constituições modernas que faz com que, ao tratar-se de normas cuja configuração axiológico-política é mais freqüente, os juízes não tenham mais remédio que trabalhar com estes novos materiais para resolver casos concretos que, em um contexto legalista, se apelava unicamente à aplicação de regras mais ou menos claras. Segundo, o princípio de supremacia constitucional que exige que a interpretação do direito infraconstitucional deva fazer-se agora desde a Constituição, o qual obriga igualmente a levar a cabo uma tarefa de explicitação do conteúdo dos valores e princípios constitucionais, a raciocinar desde seu interior e a ir mais além do explicitado pelo próprio texto constitucional, pois não é possível precisar conceitualmente seu conteúdo de uma vez por todas, muito menos em um texto com as características linguísticas que possuem os textos legais e,  a fortiori, a Constituição.

 

Daí que a própria Constituição – desenhando uma moldura de contornos vagos, de uma estrutura normativo-material aberta e indeterminada –, com pleno valor normativo, ocupando uma posição central no ordenamento jurídico e desempenhando, para além de sua condição de superioridade e supremacia, a função de irradiação e controle substancial sobre todas as demais normas do sistema, insta a uma jurisprudência de valores. Conceitos, valores e normas (princípios e regras) indeterminados, abertos ou disjuntivos através dos quais o legislador pretende fazer apelo aos elementos não exclusivamente lógico-formais ou algorítmicos que intervêm na tarefa interpretativa, desde que, por óbvio, sejam adotados e aplicados a partir da premissa de serem mais humanamente operativos em virtude de suas conseqüências, conteúdo e rendimento ético-comunitário. Dito de outro modo, de que o conteúdo normativo não se esgota no texto, no puro enunciado normativo, de que a tarefa interpretativa é uma mediação irrenunciável para  a concreção do enunciado constitucional, a fim de poder aplicá-lo aos casos que com ele hão de resolver-se, e de que essa interpretação, que tem um componente sempre criativo, contextual e pessoal, é constitutiva ou co-constitutiva da norma jurídica mesma, da própria Constituição.

 

 E uma das consequências imediatas de tal fenômeno reside precisamente na potencialização de modelos hermenêuticos e critérios argumentativos capazes de confrontar  permanentemente as disposições legais e administrativas com os valores e princípios constitucionais e a interpretá-las desde estes últimos, operando deste modo um câmbio fundamental na teoria da validade jurídica, que agora não se determina exclusivamente pela legitimação do orgão produtor da norma e em função da correção no procedimento, senão que aparece integrada necessariamente também pela adequação material, a legitimidade substancial e a correção moral das normas jurídicas. 

 

Assim que quando os operadores do direito encontram-se (e não são raras as vezes que isso ocorre) diante de normas que, a princípio, parecem recusar a dignidade de personalidade moral a qualquer pessoa, grupo ou classe (isto é, que lhes excluem a qualidade de sujeitos autônomos de direito – com os direitos e deveres implicados pela sua válida integração na comunidade – para os reduzirem a meros objetos de coação política, econômica ou administrativa), convivendo com outras tão ou mais importantes que garantem a justiça social, a igualdade ou a liberdade humana, e em meio a essas regras tem-se os fatos que as desafia, é razoável que aqueles que não se limitam a ser apenas simples instrumentos de reposição e aprofundamento das desigualdades sociais mas sim a consicência ética da comunidade, sintam a tormentoza necessidade de buscar “em meio das sombras, claridade” (Dante).

 

Por certo que essas diferentes tendências de diretrizes normativas acabam por levar a soluções contraditórias, muitas vezes difíceis de aplicar na prática sem passar por cima de um ou outro preceito constitucional, ou sem buscar, pela via da interpretação, o princípio que deve prevalecer no caso de supostas contradições. Nestes casos, parece razoável admitir que a melhor postura a ser adotada pelo sujeito-intérprete deve consistir já não no fato de ponderar e aplicar um ou outro dos princípios que protagonizam a colizão, senão em tratar de alcançar um estado de coisas onde todos os princípios em questão alcançem seu mais alto grau de vigência e eficácia possível. Supera-se, dessa forma, a simples letra da norma mediante um processo de “cedência recíproca”, no sentido de congraçar os preceitos normativos aparentamente contraditórios, desde que abdiquem da pretensão de serem interpretados de forma absoluta.

 

Dito de outro modo, a atuação do operador jurídico (e nomeadamente do juiz), dizendo o direito in concreto, consiste em tratar de alcançar um estado de coisas que se aproxime das expectativas culturais e das intuições e emoções morais (jurídico sociais de validade e de  legitimidade substancial) de uma comunidade de indivíduos ante a qual seu discurso deve apresentar-se justificado, traduzindo e compondo em termos de razão e em fórmulas apropriadas de ordenada convivência essa instintiva e mesmo indisciplinada aspiração de justiça que a move para o futuro. Tal tarefa se perfaz na flexibilidade cognitiva (axiológica e fática) do processo interpretativo das normas constitucionais e do caso concreto, e, ultima ratio, na realidade “viva”, a que aderem, como notas valorativas, os princípios, os valores e as regras de tutela dominantes.

 

A inserção da atividade interpretativa constitucional, formando e conformando o sistema jurídico, repousa no caráter visceralmente artesanal  da produção do provimento judicial, cuja característica principal radica no fato de que a aplicação deixa de ser vista como uma etapa derradeira e eventual do fenômeno da compreensão e passa a ser concebida como um elemento essencial que a determina desde o seu princípio e no seu conjunto.E da particular consideração da tarefa interpretativa, em seu aspecto metodológico, como uma  atividade “simultânea” à aplicação do direito  (no sentido de considerar a  interpretação/aplicação do direito como  operações que não operam autonomamente e, por conseguinte, de que o resultado da tarefa de realização do direito decorre de um contínuo “ir e vir” do fato ao direito e do direito ao fato, que condiciona tanto a reconstrução jurídica do fato como a constituição da norma a ser aplicada ao caso concreto), resulta constituir também ela e a sua especial forma de atuação, um  importante dado a ser considerado na apreensão de métodos criteriais que resolvam o problema da passagem da iniludível e provisória antecipação do resultado (da pré-compreensão) a sua definitiva motivação.

 

Quer dizer, que funcionem como mecanismos fiáveis e eficazes de controle e garantia da racionalidade dos discursos jurídicos: que estejam racionalmente justificados e coerentes com o sistema jurídico global, isto é, que em favor dos mesmos se aportem argumentos que façam com que, sendo produto de uma (peculiar e limitada) racionalidade plasmada no diálogo de reconhecimento e compreensão intersubjetiva dos conceitos e termos fixados na norma positiva escrita, possam ser discutidos e controlados, e, em igual medida, tratem de impedir um perfil de operador jurídico (nomeadamente do juiz) proclive a um desvairado  e irracional subjetivismo.

 

Com efeito, neste manufaturar da norma judicial (da decisão) importa para o operador do direito, como agente mediador e no exercício de seu papel conformador ativo, o discernimento preciso dos múltiplos ângulos comprometidos com a controvérsia. A sua atuação conformadora (produtora, constitutiva) e reguladora, fixando a movimentação dos valores, dos princípios, das normas e dos fatos, tem como principal objetivo a lideração de constrições informativas pertinentes ao caso (isto é, da escassez de conhecimento fiável sobre as circunstâncias do caso decidendo) e a adequada articulação dos vínculos jurídicos relacionais nele (no caso) envolvidos, tudo com vistas a produção de um resultado de justo acertamento no que diz respeito à garantia da plena cidadania. Por meio desse resultado, a ordem jurídica constitucional se realiza como sistema completo e aberto e, com ela, o conteúdo substancial e a eficácia dos princípios, valores e regras de tutela nela inseridos.

 

Por conseguinte, a adoção de um adequado processo de realização do direito obriga o jurista-intérprete a considerar a Constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão entre os fatos, as normas constitucionais e infra-constitucionais a concretizar, de tal forma que se deva sempre considerar as normas não como  regras isoladas e/ou dispersas, mas sim como preceitos integrados em um sistema unitário e aberto de normas, princípios e valores, sob pena de destruição da tendencial unidade axiológico-normativa do ordenamento jurídico. Carecem de legitimidade as decisões que considerem as normas isoladamente e imponham o comando emergente da mera interpretação gramatical. Nunca é dispensável a interpretação dos textos legais no sistema da própria ordem jurídica positiva em consonância com os princípios e garantias constitucionais e, sobretudo, à luz dos valores comunitariamente aceitos e compartidos.

 

O desempenho da virtuosa tarefa prudencial de concretização da norma jurídica constitucional aplicável aos conflitos de interesses implica na necessidade de interpretar e decidir de tal modo que os textos normativos, tomados como uma unidade aberta aos valores comunitários, acabem por determinar a realização do justo concreto, isto é, de que corresponda a uma práxis social destinada a desenhar um modelo sócio-institucional que, garantindo uma certa igualdade material, permita, estimule e assegure que a titularidade e o exercício de direitos de todo ponto inalienáveis não sejam sacrificados em função de arbitrários interesses e injustificadas interferências por parte do Estado ou de qualquer outro agente social. E por meio deste empenho de “extrair justiça” a partir da atividade interpretativa, nada mais se estará fazendo do que submeter as normas jurídicas em seu conjunto a um critério de justiça material, de interpretá-las e aplicá-las de forma a atender aos fins sociais a que se dirigem e às exigencias do bem comum.

 

Depois, em um Estado democrático de direito, alicerçado numa Constituição comprometida com a dignidade do homem, a tafera de todo operador jurídico deve consistir, fundamentalmente, em reconhecer que o direito não nos é dado feito: o direito existente não é redutível na sua integralidade a uma autoridade legiferante, mas é algo que deve ser reconstruído de modo contínuo e responsável, com a participação da personalidade integral do intérprete. Nesse contexto, uma Constituição democrática é fonte inesgotável de argumentos que podem ser utilizados no sentido de democratizar o direito, bem como para o fim de aplicá-lo de tal modo que se assegure a eficácia última dos valores e princípios protegidos pela Norma Fundamental.

 

Claro está que toda essa atividade interpretativa deve manter-se dentro de determinados limites, fora dos quais não nos parece razoável falar de interpretação, senão de “ativismo judicial”. Significa dizer com isso, se bem entendido, que se nos afigura inoportuna a livre criação do direito, a rebelião do juiz contra a lei ou o que os juristas alemães denominaram de “interpretação ilimitada da norma”. Não é verdade que as normas jurídicas admitam uma interpretação ilimitada (como pretendem alguns operadores do direito), como tão pouco que esteja aberta ao que certos juristas italianos chamaram há vinte anos (com mais êxito no Brasil que em seu próprio país, por certo) de uso alternativo do direito, que pretende, em última análise, justificar qualquer interpretação desde criterios ideológicos.

 

Decerto que se a lei (essa ferramenta cultural e institucional “cega”, virtualmente neutra e com potencial capacidade vinculante para predizer e regular o comportamento humano) não é mais o único instrumento útil  para a regulação social, não menos certo é que segue sendo um meio ou instrumento insubstituível e indispensável para assegurar, em sociedades pluralistas e complexas, corroídas pelo empirismo e subjetivismo relativista, um dos valores fundamentais do direito: a segurança jurídica. Normas capazes de sentar as regras de convivência com relação ao poder, a distribuição e o uso da propriedade, a estrutura da família ou de alguma outra entidade comunitária, a distribuição do trabalho e a regulação das trocas em geral. Normas que, por resolver determinados problemas adaptativos, plasmam no entorno coletivo e historicamente condicionado nossa capacidade e necessidade inatas de predizer o comportamento dos demais, de controlá-lo e de justificar mutuamente nossas ações.

 

Daí que não pode depender o sentido e alcance da norma (constitucional ou infra-constitucional) do talante pessoal de seus intérpretes, em especial de magistrados pretendidamente redentores ou iluminados, autoinvestidos como representantes de qualquer ideologia, doutrina ou tradição histórica. A objetividade do direito, sem a qual não cumpriria nenhum de seus fins, descansa necessariamente sobre a objetividade e a racionalidade (ainda que limitada) da interpretação e aplicação da norma jurídica.

 

E torná-la possível vem a ser, justamente, um dos primeiros objetivos da tarefa concreta do jurista de realizar historicamente a verdadeira intenção do direito (a de, negativamente, impedir o homem do esquecimento de sí próprio e, positivamente, a de afirmá-lo no seu ser e, assim, no seu incondicional valor) e que é projetada em um determinado contexto econômico, político e social segundo as necessidades humanas de cada época, isto é, de expressar e realizar historicamente as expectativas normativas e culturais de uma comunidade de indivíduos. Dito de outro modo, de elaborar discursos jurídicos cuja qualidade será medida por sua humanidade, pela precisão de sua adesão à natureza humana e que sirva para iluminar, fundamentar e constituir determinado agrupamento social em uma comunidade verdadeiramente ética. Essa, aliás, a razão pela qual o princípio da segurança jurídica, que assegura a previsibilidade (formal e substancial) das normas como ordenadoras das condutas humanas, leva também à manutenção da preeminência da lei no trato de nossos vínculos relacionais.

 

 Contudo, da circunstância de que os cidadãos têm o direito de saber que uma conduta lhes compromete na medida em que o direito vá  a qualificá-la como tal, não parece legítimo que se possa deduzir que o juiz deva ser um orgão “cego” e “acéfalo” no processo de interpretação e aplicação da Constituição e das leis ou que se deva autoinvestir da suposta virtude que faz dos juízes “les bouches qui prononcent les paroles de la loi, des êtres imanimés qui n´em peuvent modérer ni la force ni la rigueur” (Montesquieu).

 

De fato, a importância da lei em uma sociedade onde a miséria e o desprezo pela dignidade humana ainda parecem ser a regra comum, a par de conviver com a preeminência das normas constitucionais, faz com que o papel do juiz, já não mais neutro, seja o de um vivo vigilante intérprete dos tempos, que tanto melhor sabe cumprir a sua função quanto melhor alcance sentir a exigência humana da história e traduzí-la em fórmulas apropriadas de ordenada convivência; o que não significa, evidentemente – já dissemos antes -, uma atividade “alternativa” à lei, senão uma qualificada tarefa de assegurar a sua legítima e devida efetividade. Aos destinatários das normas jurídicas não lhes interessa as opiniões pessoais dos que atuam como juízes, senão somente as suas respectivas capacidades para expresar as normas que a sociedade a si mesma se põe e pelas quais ilumina e fundamenta a solidariedade de sua ética convivência, depurando e afinando seu alcance e sentido e, na mesma medida, garantindo sua eficácia última.

 

 

O problema da “crise da lei”

 

Mas, como manter esse tipo de postura diante do fato de que não são poucas as vozes que insistem em afirmar a atual “crise da lei”?

 

É certo que as sociedades atuais, plurais e complexas, já não mais parecem aceitar lhanamente novos códigos gerais e globalizadores como os que alimentaram em seus dias os grandes dogmas do positivismo jurídico. Hoje, não só se fala abertamente de descodificação, inclusive com relação às matérias típicas dos códigos clássicos, como também as leis tendem a limitar-se, com frequência, a regulamentações fragmentárias e ocasionais e, por vezes, a formular disposições ou princípios muito gerais, confiando logo à interpretação e aplicação pelos operadores do direito a precisão casuística de seus enunciados.

 

O desgaste que vem sofrendo a generalidade e a abstração da lei em virtude do que se convencionou denominar de “pulverização” do direito legislativo produzida pela multiplicação de leis de caráter setorial e temporal, demonstra claramente a pressão de interesses corporativos, dando lugar a um tratamento normativo diferenciado e, em igual medida, provocando a explosão de legislações cambiantes, com a conseqüente crise dos mencionados princípios de generalidade e abstração. E a suposta conseqüência produzida por esse fenômeno é a de que a lei é, cada vez mais, transação e compromisso, tanto mais quanto a negociação se estende a forças numerosas e com interesses heterogêneos: cada um dos  agentes sociais, quando acredita haver alcançado força suficiente para orientar em seu próprio interesse os termos do “acordo”, busca a aprovação de novas leis que sancionem a nova relação de forças; se produz, assim, a cada vez mais marcada “contratualização” dos conteúdos da lei.

 

De fato, a atual experiência legislativa nos situa muito longe da racionalidade do legislador e da imagem da lei como ordenação abstrata, geral e permanente, como quadro estável cuja finalidade é distribuir direitos e deveres gerais e sobre o qual a sociedade vive a continuação de seu próprio dinamismo. É indiscutível, portanto, que a realidade dessas leis se ajusta mal ao esquema ilustrado e revolucionário da lex universales.

 

Não obstante, e em que pese todas essas circunstâncias, entendemos que as considerações até aquí articuladas não devem ser desconsideradas por completo. Se é certo que a legislação atual tende a ocasionalidade e a confusão, não menos certa é a constatação de que isso não nos permite deduzir que as sociedades modernas pretendam remeter aos magistrados os problemas últimos de seu livre – e por vezes defeituoso – ajuste social. Por muito que se ressalte a crise da lei nas sociedades atuais, tal crise não chega de modo algum a deslocar a lei do seu papel central e, até o momento, insubstituível.

 

Depois, as normas jurídicas não são simplesmente um conjunto de regras faladas, escritas ou formalizadas destinadas a constituir uma razão para o atuar dos indivíduos, que expressam ideologías dominantes ou que as pessoas se limitam a seguir. Em vez disso, as normas representam a formalização de regras de condutas sociais, sobre as quais uma alta porcentagem de pessoas concorda, que refletem as inclinações comportamentais e oferecem benefícios potenciais e eficientes aqueles que as seguem: quando as pessoas não reconhecem ou não acreditam nesses benefícios potenciais, as normas são, com freqüência,  não somente ignoradas ou desobedecidas (pois carecem de legitimidade e de contornos culturalmente  aceitáveis em termos de uma comum, consensual e intuitiva concepção de justiça) senão que seu cumprimento fica condicionado a um critério de autoridade que lhes impõem unicamente por meio da “força bruta”  ( M. Gruter,1991)

 [4].

 

Dispomos de normas de conduta bem afinadas porque nos permitem predizer, controlar e modelar o comportamento social respeito a reação dos membros de uma determinada comunidade. Estes artefatos, se plasmam grande parte de nossas intuições e emoções morais, não são construções arbitrárias, senão que servem ao importante propósito de, por meio de juizos de valor, tornar a ação coletiva possível. E parece razoável admitir que os seres humanos encontram satisfação no fato de que os valores e as normas sejam compartidos e cumpridos pelos membros da comunidade – ademais, diga-se de passo, uma vez que a sociedade usa leis para encorajar as pessoas a se comportar diferentemente do que elas se comportariam na falta de normas, esse propósito fundamental não somente torna o direito altamente dependente da compreensão das múltiplas causas do comportamento humano, como, e na mesma medida,  faz com  que  quanto melhor for esse entendimento da natureza humana, melhor o direito (e a ética) poderá atingir seus propósitos.

 

    Por outro lado, qualquer outra alternativa à lei não seria admitida, de modo algum, pelas sociedades atuais, porque com ela se volatizaria, justamente, a democracia e nos encontraríamos reinstalando, em realidade, um verdadeiro governo despótico de uma minoria que não tardaria em buscar e encontrar uma fundamentação política correlativa que pretendesse outorgar-lhe legitimidade. Se vê claramente que, frente a qualquer outra alternativa, a democracia necessita inexcusavelmente da lei e que não pode abdicar da responsabilidade central que lhe cabe, precisamente (reafirmando assim seu fundamento histórico moderno) enquanto que a lei ainda é o instrumento  necessário (embora não suficiente) da liberdade, tanto por sua origem na vontade geral como por sua efetividade como pauta igual e comum para todos os cidadãos, à que todos podem invocar  e na qual todos devem poder encontrar a justiça (material) que a sociedade se lhes deve[5].

 

A verdadeira alternativa ao recurso utilizado pelo legislador para afrontar e contornar os problemas sociais, de justiça e de segurança jurídica, portanto, não parece ser a de reinventar o “juiz sacerdote” (preso a alguma ideologia, dogma ou doutrina sem consistência teórica e/ou incapaz de ter alguma eficácia fora dos limites físicos de um papel), senão a de habilitar os julgadores a assumir, de forma virtuosa, inflexível e qualificada a responsabilidade que lhes cabe e cuja tarefa seja a de afirmar indistintamente os direitos e deveres de toda a pessoa humana, projetando na e através da legalidade vigente os princípios e valores fundamentais do direito; isto é, de habilitar-lhes ao inegociável compromisso de colocar-se à frente dos fatos e dos vínculos sociais relacionais para, com a iniludível “pré-compreensão” e talento de desenhador que caracteriza o ato de julgar, impulsionarem os câmbios necessários para que se promova um panorama institucional, normativo e sócio-cultural o mais amigável possível para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Como lembra Dieter Simon (1998), nós todos desejamos um juiz independente; independente no sentido que não depende da política, da religião e nem mesmo dos partidos ou da concepção de mundo, mas que segue somente a representação de valor da lei e não a sua.

 

Daí porque o papel do operador do direito (no caso, dos juízes) deverá seguir estando vinculado à Constituição e à lei – que nunca podem ser livres de contexto, senão que devem ter em conta seu “lugar na vida” e sempre “em situação” –, em nome das quais fala e das quais, e não de nenhuma outra fonte “mágica” ou de qualquer subjetivismo camuflado de teoria, extrai unicamente a justiça e a legitimidade de suas decisões. É certo que ante uma legislação fragmentada, casuística e cambiante, com enunciados que caem com freqüência em desuso por desajustes sistemáticos e/ou sociais, o papel do magistrado se realça. Mas este realce do papel do juiz não poderá jamais pretender levar-lhe a uma independência com respeito à Constituição ou à lei; lhe levará, certamente, a um uso mais apurado, sofisticado e refinado dos valores, princípios e regras jurídicas, sempre e em tudo condizente com a finalidade de aplicar o direito com a obrigação de produzir, reproduzir e desenvolver a dignidade humana com respeito aos variados caprichos de nosso mundo social. 

 

Por este caminho vemos, com suas inasfastáveis limitações, o processo vivificador do fenômeno jurídico e a conseqüente aproximação à justiça que há de inspirar e prevalecer na interpretação e aplicação do  direito  que, como tal, não é mais nem menos que um instrumento cultural, uma estratégia sócio-adaptativa empregada para articular argumentativamente, por meio da virtude da prudência, os vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os homens constroem estilos aprovados de interação e estrutura social. Em todo caso, parece ser que essa vinculação não deve servir como fator determinante para debilitar a luta pela justiça, o esforço permanente em prol de uma interpretação mais razoável e eqüitativa e, sobretudo, para fomentar a negação do acentuado espírito conservador da grande maioria daqueles que operam com o direito.

 

Trata-se, sem mais, de uma tarefa ou práxis social que reforça a incessante necessidade de se repensar criticamente a ordem jurídica, no sentido de que se atribua à mesma (levando-se em conta que o direito vive num clima de permanente revisão de conceitos, valores, princípios e normas), a função principal de adequá-la para um mundo em constante transformação, cônscios, sobretudo, da tarefa não somente de interpretar e aplicar as garantias formais da democracia e nem à simples fiscalização da observância de princípios e valores inerentes ao sistema positivo, mas, principalmente, de viabilizar a realização do compromisso ético de utilizar o direito para garantir à sociedade a efetiva recuperação do controle democrático sobre as decisões políticas, sociais e econômicas, e aos indivíduos – a muitos, a milhões deles – a efetiva recuperação do controle sobre suas próprias vidas, isto é, o efetivo e incondicional respeito da dignidade da pessoa humana.

 

 

O “ilícito legal” e a função do operador do direito

 

Por certo que tal função implica inevitavelmente uma grande responsabilidade, posto que ao operador do direito já não mais lhe será lícito e legítimo elidir ou dissimular o dever de dizer não às situações e relações intoleravelmente injustas que os homens entre si ou o poder perante eles se proponha a criar ou impor. Pois bem, para analisar esta questão, o que trataremos de fazer é tomar como critério de exemplo o tratamento a ser dado ao problema da denominada “lei injusta” ou “ilícito legal” (gesetzliches Unrecht).

 

É este um problema que aqui não se pode considerar na totalidade de suas dimensões. Assim que nos limitaremos apenas a dizer que a lei injusta será toda a norma positiva que não realize ou não permita realizar concretamente a idéia de direito. De fato, é no contexto da função interpretativa em que o ser humano na sua dimensão ético-social, a prudência, a eqüidade e a justiça do caso concreto têm primazia. E porque todos os operadores jurídicos têm uma filosofia acerca da vida, do direito e da própria natureza humana[6] – embora alguns deles, ou talvez muitos, não o saibam – encontramo-nos, nesse âmbito da interpretação e aplicação jurídica, com o problema da necessária interferência e inclusão de elementos valorativos no ato de julgar, ou seja,  da iniludível e por vezes dissimulada relação  entre o moral e o jurídico.

 

Neste particular, não tem qualquer caráter juridicamente vinculante (carecem totalmente de legitimidade e de obrigatoriedade) tanto as normas que porventura recusem a dignidade de personalidade moral a qualquer pessoa, grupo ou classe – isto é, que lhes excluam a qualidade de sujeitos autônomos de direito (com os direitos e deveres implicados pela sua válida e legítima integração na comunidade) para os reduzirem a meros objetos de  coação política, econômica ou administrativa –, como as normas que lhes definam um estatuto de direitos e deveres que não esteja fundado no sentido axiológico de uma comunidade que a todos autônoma e totalizantemente integre[7] .

 

Nestes casos, e ainda que nos encontremos na presença de mandados emitidos por um legislador formalmente habilitado e acompanhados por uma organizada garantia coativa, o que se nos oferece são autênticas perversões do ato de legislar. Não podem, com efeito, considerar-se de outro modo as normas abertamente contrárias à idéia de direito e, portanto, violadoras daquela mesma função axiológico-normativa em que terão de justificar-se como normas jurídicas válidas e legítimas.

 

Assim que parece haver um sentido comum de que o direito moderno  segue exigindo um momento de incondicionalidade que obedece a sua necessária vinculação com a moral, ou seja, de que não se tornou exclusivamente instrumental como pretendem algumas variantes do positivismo jurídico. E porque o fenômeno jurídico não surgiu do “nada”, a ética parece estar intimamente ligada ao direito: todas as normas jurídicas foram criadas a partir de um juízo ético surgidos para harmonizar os vínculos sociais relacionais que estabelecemos ao longo de nossa evolucionada existência. 

 

 De fato, é essa pretensão de correção moral que permite distinguir entre o direito  e a força bruta, que permite distinguir (ou não) entre a ordem de um delinqüente (“a bolsa ou a vida”) e a ordem de cobrança de um determinado tributo, enfim, que permite considerar o direito como uma estratégia sócio-adaptativa, uma práxis social destinada a gerar discursos jurídicos materialmente justos e com potencial capacidade de consenso para a solução de determinados problemas práticos relativos aos vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os homens constroem estilos aprovados de interação e estrutura social.

 

Essa inerente pretensão de correção formulada pelo direito compreende uma pretensão de justiça que, em essência, nada mais é do que a correção com respeito à liberdade, igualdade e fraternidade, isto é, com a eqüitativa distribuição e equilíbrio entre essas três grandes virtudes ilustradas. O operador do direito, em toda sua cotidiana atividade, não pode prescindir dessa dimensão axiológica. E porque as perguntas sobre a justiça são perguntas morais, o operador jurídico que realiza distribuições e equilíbrios incorretos comete, por essa via, uma falha moral e a pretensão de correção transforma essa deficiência moral em deficiência jurídica: as normas perdem seu caráter jurídico se sobrepassam certos limites de injustiça.

 

Quando as normas negam conscientemente a vontade de justiça, quando os princípios, os direitos e as garantias consagradas são arbitrariamente violados, carecem tais normas de legitimidade e validez,  pois não se pode conceber o direito, inclusive o direito legislado, de outra maneira que não esteja destinado a servir a justiça. E quando a injustiça não é oportunamente eliminada pelo legislador, corresponde ao operador do direito o dever e a coragem de deixar de efetivá-la, de negar o pretenso caráter jurídico das normas arbitrariamente impostas. Esse o papel que cabe ao operador do direito na sua práxis hermenêutica: de um operador valente a quem a dificuldade  ou o esforço hermenêutico não lhe impedem de empreender algo justo ou valioso, nem lhe fazem abandonar o propósito à metade do caminho, isto é, que atua “apesar da” dificuldade, e guiando sua ação pela justiça, que é o último critério da valentia.

 

Depois, as normas jurídicas não possuem representação de valor. As normas possuem somente palavras. Quais os valores e significados que devem ser ligados a estas palavras são problemas vinculados à tarefa interpretativa levada a cabo pelos juízes. E ele estabelecerá sempre aquilo que deseja e em que ele mesmo crê: a justiça só é um valor para os que desejam e crêem na justiça; a humanidade só é um valor para os que crêem e desejam viver humanamente; a vida só vale para quem a ama e a deseja; e nenhuma coisa comanda a não ser proporcionalmente à crença e ao amor que temos por ela. O problema consiste, então, no fato que se possa garantir que a magistratura seja e se mantenha democrática. Um sucesso deste tipo não pode ser garantido por meios linguísticos. Os juízes não podem ser vinculados às palavras mesmo se se trata das palavras do legislador. As palavras podem assassinar, mas não podem vulnerar ou bloquear um juiz. Somente quem se vincula a si mesmo, está vinculado (Dieter Simon, 2006): nenhuma lei é fruto de uma verdade estabelecida, senão expressão da “vontade pública”, sempre sujeita à interpretação.

 

Dito de outro modo, parece ser que a única atitude legítima em face de uma lei injusta é a de recusar a sua aplicação: a lei injusta faz surgir no pensamento jurídico em geral o poder e o dever de lhe recusar validade e aplicação automática, de interpretá-la e decidir de tal modo que ela acabe por ter uma finalidade justa, isto é, cada norma sendo submetida a um critério de justiça material de sua aplicação em cada caso concreto. Afinal, querendo ou não, as normas são, em muito boa medida, manifestações de intuições e emoções morais (de raiz biológica e culturais) compartidas por um determinado grupo, partindo não da idéia de  “imperator”, mas sim da comunidade ética na qual se inserta o sujeito-intérprete.

 

Mas podem os operadores jurídicos educados no positivismo jurídico até aqui dominante, na aplicação do direito,  ter a pretensão de não desprezar a vinculação necessária entre direito e Justiça?

 

Parece que sim, desde que se considere que essa vinculação (entre o direito e a moral) está fundada na idéia de que toda a atividade do sujeito-intérprete deve estar permeada pela pretensão de que seus discursos jurídicos (suas decisões) sejam moralmente corretos e justos. A ela (atividade)  lhe corresponde à intenção e o dever jurídico de decidir corretamente, de que embora necessário, não é suficiente para resolver um problema jurídico o simples recurso a  artifícios legais, ao muito limitado esquema de silogismo interpretativo ou de coerência lógico-formal. A virtude e a independência do operador do direito não é outra coisa que a manifestação da autonomia do direito, comprometido eticamente com o imperativo segundo o qual o direito deve ser manipulado de tal maneira que suas conseqüências, sempre compatíveis com a maior possibilidade de evitar ou diminuir a miséria humana, permitam a cada um viver com o outro na busca de uma humanidade comum – isto é, com a criação de um modelo sócio-institucional livre, justo e solidário que permita a constituição de uma comunidade de homens livres e iguais unidos por seu comum, legítimo e compartido submetimento ao direito e em pleno e permanente exercício de sua cidadania.

 

O ato de decidir contra qualquer forma de arbitrariedade ou interferência injustificada carrega consigo a virtuosa intenção de mudar um estado de coisas de conformidade com algo que se pretenda justo: com a idéia de que o homem, mesmo quando se converte em objeto de ordens estatais supraindividuais, sempre deve ser respeitado como um fim em si mesmo e não como instrumento de episódicos e injustificados interesses políticos ou de conveniência econômica. E assim deve ser porque na grande maioria das vezes estão submetidas a juízo a virtude na aplicação da Constituição, a realização da justiça concreta, a integridade do direito  e  a própria idéia  de  um operador jurídico autônomo e independente. Somente atuando guiado por uma justa e virtuosa pretensão de correção poderá vir o operador do direito a  afirmar-se  como  mediador  preocupado com a justiça e com a Constituição de uma República, não somente controlando toda a desregrada maquinaria estatal em suas funções administrativas e legais, senão que também assegurando de forma efetiva os princípios, direitos  e  garantias legitimamente consagrados.

 

É preciso reconhecer que não somente desde a lex corrupta insensatamente aplicada provém o injusto real como na aplicação do direito intervêm, ademais da razão, os sentimentos e as emoções: para ser um bom operador jurídico não basta com ter capacidade argumentativa (com conhecer o direito vigente), senão que é necessário ter outras virtudes como sentido da justiça, compaixão e valentia. Afinal, o que dá sentido ao direito não pode ser outra coisa que a aspiração à justiça ou, para dizer em termos mais modestos e mais realistas: a luta contra toda e qualquer forma de injustiça.

 

E nem se objete possa a idéia da segurança ou da certeza jurídica – sempre aqui invocada – constituir-se em argumento suficiente e necessário de oposição a esta conclusão, uma vez que não é uma qualquer “injustiça” a que determina o rigoroso sentido da lei injusta, mas somente aquela que envolva a negação da própria idéia de direito. Depois, se a segurança e a certeza jurídica têm decerto valor apenas na medida em que podem contribuir para a realização da objetividade e previsibilidade em uma ordem jurídica, deixam totalmente de ser fundamento de obrigatoriedade quando invocadas somente para encobrirem situações intoleravelmente injustas ou quando são postas a serviço do arbítrio, da tirania e dos devaneios políticos. A obrigatoriedade e o valor da segurança e certeza jurídica cessam onde cessa toda a legitimidade jurídica, isto é, logo que deixem de contribuir para a concreta realização da idéia de direito. Não é, definitivamente, em função da segurança e da certeza que se afere o direito justo, senão em função do direito justo que se afere a segurança e a certeza jurídica.

 

Com efeito, as situações de tensão entre a segurança jurídica e a justiça constituem um dos aspectos mais dramáticos da experiência jurídica. Por vezes, são impostas à justiça, pelo menos à justiça estrita do caso singular, certos sacrifícios em nome da segurança jurídica, como, por exemplo, por força do princípio da coisa julgada ou do instituto da prescrição. Mas certamente não é de se admitir que a pretexto da segurança e da certeza jurídica se chegue a um grau intolerável de sacrifício da justiça, sob pena da ordem jurídica se esvaziar de legitimidade e se desnaturar. A paz, a ordem estável, a liberdade, a igualdade, o grau razoável de certeza e de estabilidade, são obras da justiça, cujo fundamento radica na pessoa humana. Como já se disse em outro lugar, a inumanidade do direito é infinitamente mais indesejável que a ausência de todo direito.

 

Um puro sistema de segurança e certeza jurídicas, indiferente ou contrário à justiça, constitui por si mesmo a negação do próprio direito. Daí porque, no plano metodológico, faz-se sentir a necessidade de superar os unilatelarismos – quer do legalismo estrito, que privilegia a segurança em prejuízo da justiça, quer do judicialismo casuístico, que favorece a justiça com menoscabo das exigências essenciais de segurança –, mediante soluções que atendam equilibradamente à norma e ao caso, assim como às reclamações desses dois valores fundamentais do direito, isto é, mediante soluções que tratem de alcançar um estado de coisas onde a justiça e a segurança jurídica em presença alcancem seu mais alto grau de vigência e eficácia possível.

 

Isto é, que a atividade hermenêutica, da qual não se pode excluir a dimensão emocional e de subjetividade do juízo, não se configure como produção ex nihilo, que não seja somente uma circunstância de produção subordinada à lei, senão que deve ser concebida como uma práxis social destinada a desenhar um modelo sócio-institucional que, garantindo uma certa igualdade material , permita, estimule e assegure que a titularidade e o exercício de direitos de todo ponto inalienáveis não sejam sacrificados em função de arbitrários interesses e injustificadas interferências por parte do Estado ou de qualquer outro agente social.

 

Ocorre que, para exercer esta postura metodológica e principalmente para dizer este “não” – parece evidente – não será suficiente que o operador do direito tenha a coragem de declará-lo; é necessário que tenha o poder de fazer como o declara. E esse poder somente o terá atualmente o operador jurídico no desempenho de uma função judicial. É que embora esta seja a função de todo o operador do direito, este não poderá cumprir (de forma vinculante) essa tarefa se não lograr ele mesmo impor-se institucionalmente, já que o jus respondendi pessoal dos romanos não é mais do nosso tempo. Depois, tendo deixado a legislação de poder considerar-se hoje como uma manifestação de vontade autêntica e exclusivamente comunitária, para ser mais bem a imposição prescritiva de uma ideologia partidária em veste de governo, somente a função judicial pode permitir-se ser ideologicamente imparcial, naquela imparcialidade que a faça tão somente sensível ao apelo do direito e da justiça.

 

Só que para tanto é decerto necessário que a função institucional do operador do direito  seja verdadeiramente independente. E bem sabemos que esta independência é em boa parte uma condição sociológica, função das condições que efetivamente se criem para a sua possibilidade. Mas ela será sempre também, em não menor medida, o resultado de uma vocação. A função do operador jurídico não será nunca independente, se não o quiser responsavelmente ser; dificilmente deixará de sê-lo (até porque o exercício da função judicial potencia a organização das condições favoráveis para tanto) se quiser assumir-se como tal. Um operador jurídico independente é, pois, um dos mais importantes fatores do poder de que o direito necessita para se impor legitimamente.

 

Mas não bastará somente isto, nem poderá o operador do direito cumprir validamente sua tarefa institucional se esta não estiver motivada e esclarecida por uma intencionalidade e consciência crítica, quero dizer, daquela crítica que explicite e fundamente o próprio projeto axiológico do direito que deve ser, incondicionalmente, o seu. Isto é, que no exercício de sua função não abdique nunca do seu mesmo dever comunitário e que, na mesma medida, não aceite degradar-se à mera função burocrática que “analisa processos”, reduzindo-se a um mero instrumento público pronto para homologar e dar execução a todo e qualquer ditame do poder.

 

Cabe a estas parcelas de juridicidade a relevante tarefa de fazer valer e projetar na legalidade vigente os valores fundamentais do direito, isto é, de adotar os meios necessários e adequados que os permitam encontrar a verdadeira e consistente base de legitimação do fenômeno jurídico, em um mundo onde o sofrimento e o desprezo pela dignidade humana  convivem com o excesso da riqueza produzida pelo trabalho social e acumulada nas mãos de uns poucos. Enfim, de um operador do direito que incentive e priorize a implicação do direito com uma postura republicana e democrática do Estado e, portanto, que se distancie da paroquiana concepção de sacerdote da dogmática, travestido do manto da infalibilidade jurídica e autoinvestido da suposta virtude que faz com que funcionem como técnicos da lei.

 

Agora: é possível encontrar um operador do direito – e nomeadamente um juiz – com tais qualidades e virtudes?

 

Parece que sim, desde que se abandone o “filisteísmo” que por vezes tem caracterizado a postura daqueles que exercem a atividade jurisdicional. E o que vem a ser isso? Ah! Pois é um conceito muito marxista. E um conceito que, a diferença dos muito apodrecidos de “modo de produção”, “sobrestrutura” ou “hegemonia”, tem a vantagem acrescida de que não se revelou propício até agora aos jogos escolásticos de palavras a que tão aficionados se mostraram os acadêmicos “marxistas” ou, já que estamos, os profissionais da coisa[8].

 

Mas, o que é um filisteu? Filisteu é quem se nega ou se resiste a valorar as coisas, qualquer coisa, por si mesmas. Filisteu é quem não admite, por exemplo, que se possa desejar conhecer algo pelo valor mesmo de conhecê-lo, pelo mero gosto de satisfazer a curiosidade, a qual, como disse Aristóteles – o pai do antifilisteísmo filosófico – é o começo de todo saber. O filisteu sustenta, ou – na maioria das vezes – atua como se sustentara que somente é desejável o conhecimento que serve para algo (para ganhar dinheiro ou prestígio, para ser famoso, para escalar na hierarquia acadêmica ou judiciária, para lograr uma tecnologia útil, para fazer uma revolução, para conquistar a admiração de alguém, etc.). Filisteu é, em geral, quem se nega a reconhecer que possa haver ações humanas com valor por si mesmas, qualquer que seja o resultado delas. Para a triste vida do filisteu, esta se reduz a um imenso repertório de instrumentos, de meios e cadeias inteiras de meios postos ao serviço de algum fim, normalmente heterônomo.

 

Pois bem, um juiz que aspire desfrutar das virtudes a que nos referíamos antes deve, acima de tudo, cultivar um antifilisteísmo extremista, que não se conforma com declarar que há algumas coisas que devem buscar-se ou fazer-se por si mesmas, por seu valor intrínseco, senão que se indigna e envilece a converter quase qualquer meio ou instrumento legal em fim. Dito de modo mais específico, de um juiz que assuma o compromisso ético de admitir que a legislação existente deve ser concebida  como mero instrumento  de construção social, que representa em numerosos casos valores humanos justos e que, interpretada de forma adequada, permite realizar e efetuar por meio dela câmbios para o bem dos homens (e mulheres, naturalmente).

 

E mais: essa virtude implica, de forma inegociável, a preocupação de pensar em conseqüências, isto é, a iniludível ponderação e responsabilidade pelos efeitos éticos e sociais de seus discursos ou decisões. Vale dizer, da consideração, pelo operador do direito, dos efeitos futuros da interpretação que adotará diante do caso concreto, da norma interpretada e dos princípios e valores correspondentes. É que as interpretações e decisões jurídicas, dependendo do grau que assumam no ordenamento jurídico, constituem inegável  instrumento de estabilidade e alteração da realidade social, de modo que o intérprete tem indisfarçável responsabilidade social com a interpretação que adota e/ou à decisão jurídica que profere. Esta responsabilidade social nada mais é do que um componente da prudência que deve iluminar todo o processo interpretativo, a fim de serem afastadas as interpretações e decisões estapafúrdias, desconectadas do sistema jurídico e do contexto histórico-social em que são proferidas.

 

E o juiz, mais do que qualquer outro intérprete do direito, tem elevada à máxima potência essa exigência de prudência com o teor das suas decisões. O direito, como instância da realidade, tem inegável função de promover a estabilidade social: a antecipação das consequências não somente influi diretamente sobre os efeitos que a decisão jurídica provocará no futuro senão que também manifesta a virtuosa prudência no ato de julgar. A pré-compreensão, que engloba tanto o dado passado (crenças, desejos, emoções, sentimentos, etc.) como a antecipação de consequências (dado futuro), não somente constitui uma condição necessária da tarefa interpretativa senão que delimita os significados normativos que o intérprete atribui e constrói para solução da controvérsia circunstancialmente em causa. A “boa interpretação”, a interpretação “satisfatória”[9], entendida como a interpretação cujo componente de justiça não afeta a estabilidade social e a segurança jurídica, é aquela que considera de forma equilibrada estes dois aspectos no processo interpretativo: interpretar/aplicar o direito é acima de tudo uma virtuosa responsabilidade ética – ou seja, podemos admirar o estilo de um discurso jurídico ou a habilidade do sujeito-intérprete, mas ainda assim devemos julgar tanto a um como ao outro pelos resultados de sua atividade.

 

Tudo isso nos leva a optar por uma perspectiva pragmática, instrumental e dinâmica do direito, a considerar este (o direito) como um intento, uma técnica, para a solução de determinados problemas práticos relativos à conduta em interferência intersubjetiva dos indivíduos, ou seja, do direito como argumentação,  como uma prática discursiva que tem a vida (os vínculos sociais relacionais) por objeto, a prudência e a norma por meio e a justiça e a segurança por fim. O operador do direito (e nomeadamente o juiz) deve entender que não somente a “justiça plena” é impossível – porque a sociedade é um acordo desconfortável entre indivíduos com interesses conflitantes, antes de ser algo projetado diretamente pela “racionalidade” humana –, senão que também deve ser capaz de compreender que os tribunais são formados por indivíduos tendencial, prioritária e igualmente egoístas e não por santos que só trabalham para o bem comum: os operadores do direito, por vezes, não passam de uma ferramenta de interesses grupais e de burocratas que maximizam o discurso da justiça para aumentar seu poder e sua recompensa, à custa dos demais.  Que não se caracteriza exclusivamente por ser uma máquina neutra e sem motivos próprios de produzir benefícios sociais, mas um homem comum, um primata que têm que lidar com as pessoas tais como são, limitadamente desiguais em talento, ambição e em suas motivações, mas cada qual uma mistura de bondade e de maldade na composição de seu caráter.

 

O objetivo do operador jurídico ( especialmente do magistrado) deve ser sempre o de intentar criar discursos jurídicos que nos ajude a aproveitar melhor seus resultados e desenhados a partir da percepção e aspiração por uma sociedade melhor, mais humana e mais justa; de buscar descobrir o que existe por trás das aparências e, dessa forma, evitar elaborar discursos jurídicos sem qualquer escrutínio empírico minimamente sério e carentes da menor autoconsciência respeito da realidade sócio-biológica que nos constitui. Isto significa adotar uma concepção humanista e firme acerca da essência e da condição humana, postura esta que seguramente lhe levará a estabelecer as devidas conexões entre um conceito da natureza humana que dê lugar à liberdade, a autonomia, a igualdade, a dignidade e outras características humanas fundamentais, e uma noção de estrutura social donde estas propriedades possam realizar-se e a vida humana adquira um sentido pleno[10]. Enfim, que seja capaz de descobrir e sentir o prazer que existe na atividade de dar sentido, incidir no mundo e marcar a diferença.

 

Em síntese, de um operador do direito que seja capaz de entender , entre outras coisas: 1. que há certo tipo de fundamento absoluto que em última instância reside nas qualidades humanas fundamentais, sobre as que se baseia um conceito “real” de justiça;  2. que é muito apressado qualificar nossos sistemas de justiça atuais como meros sistemas de opressão de classe, senão que expressam sistemas de opressão de classe e elementos de outros tipos de opressão, mas também uma busca óbvia e constante de conceitos verdadeiramente humanos e valiosos de justiça, decência, amor, bondade e compaixão, que são reais; e 3. que a busca da justiça deve ser uma tarefa que se valore por si mesma, independentemente de suas conseqüências práticas ou benefícios pessoais ( uma atividade que compensa por si mesma a quem a realiza e que, por isso mesmo, proporciona inestimáveis retribuições internas).

 

É precisamente nesse contexto que a exigência de virtude passa a ser a condição existencialmente fundamental – e a condição decisiva – da tarefa (pessoal e institucional) do magistrado. Que o juiz não se compreenda apenas como destinatário do direito e titular de direitos, que no exercício de sua função não abdique nunca do seu mesmo dever comunitário e que, como já dissemos, não aceite degradar-se à mera função burocrática que “analisa processos”, reduzindo-se a um mero instrumento público pronto para homologar e dar execução a  todo e qualquer ditame do poder. De um juiz que se assuma autenticamente como o sujeito do próprio direito e assim não apenas beneficiário dele, mas comprometido com ele: o direito não reivindicado no cálculo e sim assumido na existência, e dessa forma não como uma externalidade apenas referida pelos seus efeitos, sancionatórios ou outros, mas como uma responsabilidade vivida no seu sentido.

 

O direito somente concorrerá para a epifania do ser humano se os magistrados lograrem pessoal, cultural e institucionalmente a virtude desse compromisso ético. Estes são os tipos de ações em que a típica relação meios-fins com que se soe descrever a ação humana não vige: uma atividade autotélica – portanto, livre e voluntária, e não dissimulada por interesses de outra ordem  ou  forçada por uma posição institucional – que traz a recompensa em si mesma, nos próprios meios ou no processo de sua execução. E isso implica, depois de tudo, que a tarefa interpretativa do magistrado deve radicar, ultima ratio, no dever autotélico de atuar o direito em razão da pessoa e para a pessoa humana, no sentido de oferecer soluções a problemas práticos, delimitando (mais do que compondo conflitos) por uma via  civilizatoriamente conflitiva os campos em que os interesses individuais, sempre a partir das reações do outro, possam ser válida, legítima e socialmente exercidos, isto é, no dever de assegurar e promover a liberdade e a igualdade necessárias para que os indivíduos possam, como partes interessadas e na qualidade de sujeitos destinatários de um ato imperativo do Estado (acórdãos, sentenças, etc.), dispor de plena capacidade para participar legitimamente de sua formação por meio de  eficazes critérios metodológicos de controle, a fim de  evitar que o abuso de autoridade, o eventual filisteísmo, o subjetivismo desregrado ou a falta de correção moral por parte do operador do direito  rompa os limites  que asseguram o âmbito prático da decisão (da interpretação e da aplicação) justa.

 

Depois, talvez seja útil recordar que no processo de realização do direito se apresenta ainda ao operador do direito um importante problema de responsabilidade ao garantir ou, melhor dito, ao estabelecer, a coerência intrínseca do sistema jurídico. Ao magistrado se lhe confia a tarefa específica de combater ou ao menos minimizar a contraditoriedade intrínseca  do sistema jurídico, particularmente a de reconstruir e contextualizar a hierarquia dos valores e princípios constitucionais, que não se pode considerar como dada e adquirida de uma vez por todas. O sentido de uma norma jurídica se converte, por meio do sujeito-intérprete, em expressão de relações mantidas com a prática, de uma capacidade de relação com os dados extralinguísticos e com o contexto de experiência[11], que em cada novo caso tem que ser renovada e dinâmicamente reconstruída, mas sempre com o fim de compor em um todo coerente normas, princípios e valores diferentes e, portanto, de detectar, de forma prudente e responsável, na pluralidade de hipóteses interpretativas e soluções alternativas possíveis[12], a solução legítima, mais satisfatória e com  maior capacidade de consenso.

 

Daí que, por onde se vê, porque julgar exige um transitar em um espaço de jogo entre vínculo (limites) e liberdade (discricionariedade), um singular entendimento dos indivíduos (do conjunto de suas crenças, desejos e ações) e das coisas do mundo, bom senso e, acima de tudo, caráter virtuoso, não resulta, definitivamente, nada fácil “ser prudente” na tarefa de interpretar e aplicar o direito de forma antifilisteísta, racional e razoável, enfim, justa.

 

Por outro lado, nada do que dissemos será possível sem a mediação de operadores jurídicos (e muito particularmente de juízes) criativos, com alto nível de inteligência efetiva, aberto à experiência, com liberdade para superar inibições restritivas e dogmáticas, com sensibilidade  ante as injustiças, com flexibilidade cognitiva e emocional, com independência de pensamento e ação, e com o compromisso inquestionável de atender ao imperativo ético segundo o qual o direito deve ser manipulado de tal maneira que suas conseqüências sejam sempre compatíveis com a maior possibilidade de evitar ou diminuir a miséria e o sofrimento humano, isto é, com a obrigação de produzir, reproduzir e desenvolver a vida humana concreta de cada sujeito-cidadão de forma livre, igualitária e fraterna em uma comunidade de vida legitimamente compartilhada.

 

 Somente pensando assim o jurídico – com o cumprimento da Constituição em um contexto histórico-comunitário e fundado na natureza humana – e assumindo o operador do direito a função e a responsabilidade ética que lhe cabe, participará o direito da própria dialética da história e da eticidade humanas, fazendo com que deixe de parecer justa a advertência de Nietzsche de que o direito, “o pensamento jurídico está por fundamentar, pois é utopicamente idealista na teoria e  astutamente materialista na prática”.

 

 

 

* Pós-doutor  em Teoría Social, Ética y Economia /Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política / Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público /UFPa.;Professor Colaborador (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Grupo de Investigación “Evolución y Cognición Humana”/ Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado); Advogado.  

 

** Advogado (OAB/SP), Doutorando em Direito Público (Ciências Criminais)/Universitat de les Illes Balears/UIB, Doutorando em Evolución y Cognición Humana/UIB ; Research Scholar do Laboratorio de Sistemática Humana/UIB.

Æ Para a consulta da referência bibliográfica relativa aos autores citados neste artigo cfr.: Atahualpa Fernandez, Direito e natureza humana. As bases ontológicas do fenômeno jurídico, Curitiba, Ed. Juruá, 2007; Atahualpa Fernandez, Argumentação jurídica e hermenêutica, Campinas: Ed. Impactus, 2006; Atahualpa Fernandez e Marly Fernandez, Neuroética, Direito e Neurociência, Curitiba: Ed. Juruá, 2008.

 

 

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Æ Para a consulta da referência bibliográfica relativa aos autores citados neste artigo cfr.: Atahualpa Fernandez, Direito e natureza humana. As bases ontológicas do fenômeno jurídico, Curitiba, Ed. Juruá, 2007; Atahualpa Fernandez, Argumentação jurídica e hermenêutica, Campinas: Ed. Impactus, 2006; Atahualpa Fernandez e Marly Fernandez, Neuroética, Direito e Neurociência, Curitiba: Ed. Juruá, 2008.

[1] Trata-se do que os franceses denominavam doctrina du sens claire e que tinha seu apoio em um texto do Digesto justinianeu referido à interpretação dos testamentos: cum in verbis nula ambiguitas est, non debet admitti voluntatis questio.

[2] Note-se, nesse particular sentido, que a  teoria do método científico – uma pequena parte da teoria normativa geral da racionalidade humana – tem por objetivo explorar a extensão de hipóteses (ou condições de possibilidade das mesmas) a partir de dois tipos bem definidos de métodos: um  método algorítmico (por exemplo: o método industrial para obter ácido sulfúrico), que é um conjunto de regras, cada uma das quais é  necessária, e o conjunto delas suficiente, para obter o resultado (por exemplo: ácido sulfúrico); e  um  método criterial, que é um conjunto de regras, cada uma das quais é necessária para obter algo (v.g.: fazer um xeque mate em uma partida de xadrez), mas o conjunto das quais não é suficiente para obter esse algo (v.g.: fazer xeque mate). A teoria do método científico (e jurídico) se propõe a dar critérios úteis para conseguir um determinado objetivo, mas não encontrar algoritmos que levem diretamente a este; a teoria do método científico (e muito especialmente do método jurídico) é uma teoria normativa criterial, não algorítmica. E a diferença que vai do critério ao algoritmo no processo de realização do direito não é meramente retórica ou fruto de algum desmedido devaneio acadêmico; pode ser, e de fato é, realmente abismal na prática (Fernandez, 2006).

 

[3] O que é o mesmo que dizer que, seja com Gadamer, Esser, Zaccaria ou Dworkin, porque direito é interpretação (e diante da inseparabilidade do conhecer e o interpretar e do interpretar e o aplicar), não há direito que não seja, dentro de um parâmetro de controle da correção da interpretação, direito aplicado para este novo despertar da consciência hermenêutica dos juristas. Trata-se da perspectiva que participa da orientação geral (tanto no âmbito do Common Law como no sistema do Civil Law), dirigida a ligar o conceito de positividade jurídica com o âmbito da realização concreta do direito no momento da decisão do juiz, quer dizer, de um ponto de partida hoje prevalecente na teoria contemporânea do direito: a tese de que o procedimento judicial forma o ponto central prospectivo desde o qual se deve analisar o sistema do direito (Habermas, 1996 e Dworkin, 1986).

 

[4] Para citar Chomsky (2007): “Creio que há certo tipo de fundamento absoluto […] que em última instância reside nas qualidades humanas fundamentais, sobre as que se baseia um conceito “real” de justiça. Creio que é muito apressado qualificar nossos sistemas de justiça atuais como meros sistemas de opressão de classe; não creio que seja assim. Penso que expressam sistemas de opressão de classe e elementos de outros tipos de opressão, mas também uma busca óbvia e constante de conceitos verdadeiramente humanos e valiosos de justiça, decência, amor, bondade e compaixão, que creio que são reais”. Com efeito, em uma sociedade tendencialmente integrada a consciência jurídica dessa comunidade propende a confundir-se com a concreta objetivação histórico-social que a juridicidade obteve no sistema do direito vigente. Os princípios e normas positivas da sua juridicidade são em boa parte o resultado da assimilação jurídica de intenções ético-político-sociais dominantes no ethos social histórico da concreta comunidade. Pode assim dizer-se que nessa medida os princípios e normas informadoras de juridicidade vigente são expressão de nossas intuições e emoções morais (e, portanto, vigorando socialmente como ideologia em sentido positivo e global) assumidas pelo direito. Pense-se – e só queremos referir-nos a alguns exemplos mais evidentes – nos princípios sem os quais hoje, onde quer que seja, se não pode admitir como válida a individual responsabilidade criminal (a definição dessa responsabilidade nos termos objetivos que apenas um  princípio de  nullum crimen sine lege pode assegurar, e segundo uma imputação subjetiva que exige o respeito pelo  princípio da culpa (não obstante a sua atual problemática). Considere-se o princípio da autonomia ou a irredutível subjetividade de uma esfera jurídica pessoal, a manifestar-se nos problemas dos direitos de personalidade, dos direitos subjetivos, da negocial autonomia privada (autonomia decerto hoje profundamente correlativa, e a conexionar-se, com um princípio de responsabilidade ou  vinculação social, nos seus limites e no seu exercício). Contra o arbítrio do poder e a prepotência da autoridade, postula-se o princípio da legalidade da função ou atividade executiva, por um lado, e o princípio do controle jurisdicional do seu exercício, por outro lado. O princípio da jurisdição, com os seus corolários da  independência  e da imparcialidade da função judicial. O princípio da igualdade jurídica – a entender já hoje para além da mera igualdade perante a lei e verdadeiramente como “igualdade perante o direito”. O princípio de defesa perante quaisquer acusação ou incriminação e o princípio do contraditório (audiatur et altera pars), etc. Por certo que se poderá objetar que a existência jurídica de alguns destes princípios se deve em parte ao seu caráter formal, desde logo os que mais diretamente exprimem uma exigência de legalidade, e que os restantes carecem, na sua indeterminação intencional, de uma causa específica e, como tal, necessitam de concretização destinada a obter, com fundamento, os critérios materiais que (eles) não definem. Com o que se toca o problema, último e decisivo, da sede e natureza dos fatores ou critérios que são chamados, já a dar uma intenção material aos princípios e normas jurídicas formais, já a impor um sentido materialmente determinado aos princípios e normas jurídicas intencionalmente indeterminados.(Castanheira Neves,1999). E a resposta comum é pronta: a determinante material ou de conteúdo de tais princípios e normas oferece-a unicamente nossas intuições e emoções morais que constituem em termos dominantes a espécie humana – ou, o que é o mesmo, a intenção ideológica-ética-política da comunidade em causa. Seria este, afinal, o decisivo critério material do jurídico; e seria assim de novo ilusória a pretensão de desvincular nature-nurture: que o direito compete à natureza humana, que ele, tanto no seu sentido como no conteúdo da sua normatividade, é uma resposta culturalmente humana (uma estratégia sócio-adaptativa) ao problema também e essencialmente humano da convivência no mesmo mundo e em um determinado tempo e espaço histórico social. Como bem expressado por Humphrey (1986), os historiadores podem descrever as forças impessoais como queiram, mas a realidade é que não há forças impessoais na sociedade humana: não há um só acontecimento significativo que não tenha sido modelado por mentes humanas em interação com outras mentes humanas. A história da sociedade humana nos últimos milhares de anos é a história do que as pessoas disseram umas às outras, do que pensaram umas das outras, de rivalidades, de amizades, de ambições pessoais e nacionais.

[5] Por exemplo, seguramente não seríamos verdadeiros cidadãos se o direito consentisse a alienação de nossa liberdade, se, ponhamos o caso, reconhecesse validez pública a um contrato civil privado, livremente subscrito – coacti volunt –, por meio do qual  uma das partes  se vendesse a outra na qualidade de escrava, participando do preço. Há direitos de todo ponto inalienáveis, como o direito a não ser “objeto” ou propriedade de outro. E são inalienáveis, porque não são direitos puramente instrumentais, senão  direitos  constitutivos  do homem mesmo como âmbito de vontade soberana: direitos que  habilitam  publicamente a existência de in-divíduos dignos, separados, livres  e autônomos. Certamente  que o fato de que a lei limite nossa capacidade de eleição, proibindo a alienação voluntária da própria liberdade é uma interferência. Mas bem sabemos que não nos  molestam  as interferências  como tais, senão somente as interferências arbitrárias. As interferências legais não arbitrárias não somente não diminuem ou restringem em nada a liberdade, senão que a protegem e ainda a aumentam, como claramente se pode constatar no exemplo aquí mencionado. Sem inalienabilidade legal da própria pessoa, não há liberdade, nem há dignidade, e nem, se bem observado, existências políticas individuais, autônomas e separadas. Esta restrição legal característica de nossas democracias é um dos testemunhos mais patentes do fato de que a base do mundo político moderno foi sentada pela tradição republicana. Representam o núcleo duro republicano de nossas democracias, resistentes até agora (embora por vezes mitigadas e vilipendiadas de forma dissimulada) à “desconstrução” que o liberalismo operou na modernidade.

 

[6] Segundo Pinker (2006), todo mundo tem uma teoria sobre a natureza humana. Todos temos de prever o comportamento dos demais, o qual significa que todos necessitamos umas teorias sobre o que é o que move às pessoas a adotar determinadas condutas. Uma teoria tácita da natureza humana – segundo a qual o comportamento é causado por pensamentos e emoções dos causantes da conduta – é ínsita ao modo como concebemos a pessoa. Damos corpo a esta teoria analisando nossa mente e supondo que nossos semelhantes são como nós, assim como observando o comportamento das pessoas e formulando generalizações. Ademais, também absorvemos outras idéias de nosso ambiente intelectual: da experiência dos expertos e da sabedoria convencional do momento. Nossa teoria sobre a natureza humana é a fonte de grande parte do que ocorre em nossa vida. A ela nos remitimos quando queremos convencer ou ameaçar, informar ou enganar. Aconselha-nos sobre como manter vivo nosso matrimônio, educar aos filhos e controlar nossa própria conduta. Seus supostos sobre a aprendizagem condicionam nossa política educativa; seus supostos sobre a motivação dirigem as políticas sobre economia, justiça e delinquência. E dado que delimita aquilo que as pessoas podem alcançar facilmente, aquilo que podem conseguir somente com sacrifício ou sofrimento, e aquilo que não podem obter de modo algum, afeta a nossos valores: aquilo pelo que pensamos que podemos lutar razoavelmente como indivíduos e como sociedade. As teorias opostas da natureza humana se entrelaçam em diferentes maneiras de viver e em diferentes sistemas políticos, e tem sido causa de grandes conflitos ao longo da história. Para uma introdução histórica acerca das concepções da natureza humana, a importância da idéia de natureza humana para o indivíduo e a forma como afeta de maneira profunda o tipo de sociedade em que vivemos e em que nos gostaria viver, cfr., ademais de Pinker, Fernandez (2007).

[7] Por exemplo, John Lyons (2005) defende a idéia de que, no caso do juiz, as considerações morais vêm em primeiro lugar: “Aqueles que agem em nome da lei realizam coisas que exigiriam ser justificadas, se não fossem feitas em nome da lei – eles utilizam a coação e a força, matam e mutilam, retiram às pessoas a sua liberdade e os seus bens[…]. As decisões judiciais, como outras coisas, têm de ser plenamente justificadas do ponto de vista moral”.

[8] Nas palavras de Antoni Doménech (2006): “Yo no sé de ningún estudio que haya procedido a un escrutinio informático de las obras completas de Marx y Engels, pero si algún día se lleva a cabo, apuesto a que, al menos en los 10 gruesos volúmenes de su correspondencia, la palabra “filisteísmo” – y otras claramente coextensivas, como spiessbürgerlich, que ha veces se traduce un tanto inocentemente como “pequeño burgués” – será una de las que registre más entradas”.

[9] Introduzido em psicologia, “satisfazer” ou “ser suficiente” significa que se tomou a primeira eleição satisfatória encontrada de todas as que se percebem e são razoavelmente alcançáveis a curto prazo, em contraposição a imaginar por adiantado a eleição ótima e buscá-la até que se a encontre (Gigerenzer e Tood, 1999; Fernandez, 2006). Segundo o modelo satisfatório, é mais provável que um jovem que deseje casar-se proponha matrimônio à candidata mais atrativa entre as jovens casamenteiras conhecidas e que não busque durante muito tempo uma companheira ideal preconcebida. Em contraste com a otimização – obter o melhor resultado – trata-se de obter um resultado que seja bastante bom, quer dizer, que seja satisfatório. Com efeito, as afirmações de “otimicidade” têm um modo de desvanecer-se: não é necessário nenhum descaro para admitir modestamente que, dadas nossas limitações e as características ubíquas da tomada de decisão em tempo real, aquela que era considerada a melhor solução que  poderíamos encontrar é, por vezes, praticamente inalcançável. Da mesma forma, às vezes se comete o erro de supor que há, ou deve  haver, uma perspectiva única (melhor ou mais elevada) desde a qual avaliar a racionalidade ideal: a ser assim, sofreria interminantemente o “intérprete ideal” o problema demasiado humano de não ser capaz  de recordar e processar certas considerações cruciais quando estas seriam as mais reveladoras e efetivas para resolver um caso concreto de forma “ótima”. De certo modo, a assunção consciente dessa perspectiva evitaria, em muitos casos, a erupção de “dissonâncias cognitivas” na psique do sujeito-intérprete. Suponhamos que prefiro A a B sempre e em qualquer caso. Mas o  contexto no que me movo – meu conjunto exterior de oportunidades – é tal que A ( no caso, a “solução ótima”) é praticamente impossível, mas B, ao contrário, é de fácil acesso. A teoria da dissonância cognitiva (na qual as pessoas mudam qualquer opinião a fim de manter uma auto-imagem positiva), como um dos mecanismos psicológicos adaptativos, prediz, então (sob determinados supostos), que, a partir desse momento, se desencadearão processos em minha mente que acabarão por me fazer preferir B a A, sem que intervenha nele decisão consciente alguma de minha parte. A modificação de meu gosto se deve a mecanismos causais ocultos – ou quase ocultos – à minha consciência, e esse câmbio se produz no mesmo plano ou ordem de preferências: acabarei por me adaptar a meu contexto de um modo “espontâneo”, automático, sem que se possa dizer que o tenha feito autonomamente, senão heteronomamente, isto é, forçado pelas circunstâncias exteriores e sem me aperceber de que fui determinado por elas. Bem distinto é o caso em que o contexto no qual me desenvolvo frustra meus desejos (de primeira ordem) de A, mas tenho uma segunda ordem de preferências que me aconselha preferir (prioritariamente)  B a A quando A não é acessível, ou melhor ainda, que me aconselha conformar-me com o disponível em cada momento e suprimir ou extinguir os desejos impossíveis. As constrições exteriores não haveriam conseguido mudar – heteronomamente – meus gostos, mas eu me adaptaria igualmente bem a elas, e de um modo perfeitamente consciente do processo psíquico seguido. Ora, no caso da adaptação (ou busca de consistência) pela primeira via, se dariam provavelmente efeitos colaterais perniciosos para minha saúde mental (sentimentos mais ou menos difusos de frustração, acaso pequenas – ou grandes, segundo a importância atribuída a A – atitudes neuróticas, etc.); é mais improvável que isso ocorrera no segundo caso e, se ocorresse, ao menos estaria consciente a respeito do acontecido. Tal é a diferença entre ter uma conduta aparentemente virtuosa e outra plena e conscientemente permeada pela virtude, ou seja, entre adaptar-se – buscando a coerência de pensamento e comportamento – por dissonância cognitiva e remodelar o conjunto interior de oportunidade, entre abandonar à deriva nossas preferências e possuir umas metapreferências (que atendem a todas as razões) que governam serenamente nosso trato com o mundo exterior (pondo sob controle as preferências de primeira ordem – que obedecem, certamente, a razões, mas não a  todas as razões). Quanto sofrimento humano deixa sua raiz mais profunda em um conflito entre nossas ordens de preferências.

 

[10] Como acentua Chomsky (2007), a concepção do entendimento humano como uma  tabula rasa é um poderoso instrumento em mãos do totalitarismo: se as pessoas são em realidade seres maleáveis, infinitamente adaptáveis e acomodados , sem nenhuma essencial natureza psicológica, então, por que não hão de ser controlados e coagidos por aqueles que se arrogam autoridade, conhecimentos especiais e uma clarividência única sobre o que mais convém aos que são menos esclarecidos? Felizmente, ficou provado que existe, nas palavras de Lionel Trilling, “um resíduo de qualidade humana que escapa do controle cultural”. Do contrário, os russos seriam a esta altura irremediavelmente corruptos, o que claramente não são. Marx projetou um sistema social que só funcionaria se fôssemos anjos; fracassou porque somos animais. A natureza humana absolutamente não se alterou. Eu preferiria que o homem tivesse uma natureza inata a ficar com uma tábula rasa humana na qual qualquer tirano ou pessoa bem-intencionada pudesse escrever à vontade sua mensagem (“sempre benévola”). E acho que o homem possui essa natureza, que ela é intensamente social, e que desmente todos os manipuladores beatos, de Mill a Stalin , disse Robin Fox (1989).

[11] A norma não pode prescindir do caso concreto, que a enriquece e lhe dá maior determinação. Isto significa descentralizar o núcleo da análise de um direito concebido como algo precedentemente constituído e já dado ao sujeito que deve redeterminar e descobrir o direito, quer dizer, o sujeito que através de seus argumentos há de convencer a um auditório. A norma não pode conhecer-se senão em situações particulares, desenvolvida e precisada pela riqueza inesgotável dos fatos: por isso as teses de Alexy sobre a formalidade e a índole processual do procedimento de justificação, que formaliza e submete às normas o discurso prático, sem dúvida perseguem o intento, em si louvável e digno de mérito, de garantir a correção da argumentação jurídica, mas ao mesmo tempo corre o risco de resultarem  incompletas e abstratas por não ter em conta a concretiização aplicativa das normas.

[12] Sobre esta questão, as mais acreditadas dentre as teorias da argumentação jurídica se movem em um espaço intermédio que transita desde o “ultra-racionalismo” de um Dworkin – cujo juiz Hércules faz gala de uma invejável confiança na capacidade de sua razão – até o “irracionalismo” de um Ross, se merece tachar-se de irracionalista sua realista chamada de atenção sobre o fato de que as decisões jurídicas, ao igual que sucederia com qualquer outro gênero de decisão, dependem da  vontade do sujeito das mesmas – neste caso, o juiz – ao menos tanto como de sua razão. E porque as razões e as soluções jurídicas “costumam sair a passear” – como alguma vez se disse – “por casal”, quando não por grupo ou manada, parece razoável supor que, sobre a delicada questão da tarefa de produzir, interpretar e aplicar o direito, a melhor alternativa seja a de adotar uma perspectiva mais realista sobre a psicologia (e a racionalidade) humana e comprometida com os estudos que se efetuam em outros campos do conhecimento humano distintos ao direito, como a ciência cognitiva, a genética do comportamento, a neurociência cognitiva, a primatologia e a psicologia evolucionista, entre outras destinadas a aportar uma explicação  científica da mente, do cérebro e da natureza humana. Afinal, se realmente queremos preparar os operadores do direito para que superem  os dogmas hermenêuticos tradicionais (ainda dominantes), convém desentranhar antes todas as complexidades e influências, inatas e adquiridas, que envolvem os processos mentais ( e seus respectivos correlatos neuronais) ligados  à tarefa interpretativa e que condicionam nosso processo de decisão. (Fernandez, 2008).

Como citar e referenciar este artigo:
FERNANDEZ, Atahualpa; BISNETO, Atahualpa Fernandez. Constituição, Lei e “Ilícito Legal”. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/hermeneutica/constituicao-lei-e-ilicito-legal/ Acesso em: 29 mar. 2024