Filosofia do Direito

União homoafetiva: a Igreja Católica e a República “tiririlma”

 

 

 

 

 

   “La injusticia en cualquier parte es una amenaza a la justicia en todas partes”.

                                                                                                                                            Martin Luther King Jr.

 

 

Discutir acerca de princípios e valores éticos absolutos é inútil porque os interlocutores, se os há, se negam a esse tipo de contenda argumentativa. Quando a postura moral alude a valores que alguém tem por universais e eternos, esse algúem não vai dar o braço a torcer baixo nenhuma circunstância: assim se lhe torture, se lhe dê argumentos razoáveis ou se lhe enfrente com as necessidades de outras pessoas; seus valores supremos não sofrerão nenhum câmbio.

 

Nesse sentido, entrar em polêmicas com a Igreja católica – ou com qualquer outra facção religiosa e/ou conservadora – resulta uma perda de tempo e até um absurdo de raiz. Se se pensa que a orientação sexual, ainda que constitua parte da dignidade humana, deve seguir o rígido “projeto sexual do Criador” (para usar as palavras ditas em 1986 pelo então Cardeal Ratzinger) e, portanto, não pode ser praticada em nome de nenhum fim  que se considera “contra natura”[‡], nem de qualquer outra ordem pelo estilo, então apaga tudo e vamos descansar. Nada do que sustentem os cientistas,  políticos,  juristas,  filósofos, psicólogos  ou os equivalentes dos sacerdores em outras religiões, fará mover nem um milímetro a opinião da cúpula da Igreja católica sobre este tema, para dizer o mínimo.

 

É que a Igreja, inspirada pelo Espírito Santo, segue os ditames de Deus, de quem (ou “do que”) o Papa, em comunhão com o Sagrado Magistério,  é vicário e agente exclusivo na Terra. Isto significa que quando Deus escreve certo por linhas tortas- o que realiza com desconcertante freqüência -, o Papa autentica a ordem divina e o legislador pátrio, “sob a proteção de Deus”, obedece, os cidadãos (crédulos ou não) devem abdicar de sua autonomia e acomodar seus planos de vida aos inescrutáveis desígnios do Vastíssimo, sem atribuir sua inconsistência à Igreja ou aos “representantes do povo brasileiro”. A Igreja (sempre tão mansa como uma paloma mas prudentíssima como uma serpente), manipulando, condicionando e limitando as instituições do Estado, é uma poderosa e implacável transmissora de “valores eternos e absolutos”, ainda que, depois de tudo, não resulte difícil reconhecer que há poucas coisas mais perigosas que a “verdade” e a infalibilidade católica endogâmica.

 

Afinal, os valores eternos e absolutos, mesmo inspirados pelo divino Redentor, não se mostram nem tão absolutos, nem por vezes tão eternos como parecem. A consideração de “ser humano”, de “dignidade humana”, foi cambiando ao longo da história, inclusive por parte da própria Igreja. Por exemplo, seria coisa de recordar algumas encíclicas como aquela na qual o papa Paulo III, referindo-se aos protestantes, assegurava que “enforcarei, matarei de fome, ferverei, esfolarei, estrangularei e enterrarei vivos a esses hereges infames; desgarrarei os estômagos e os úteros de suas mulheres e esmagarei as cabeças de seus filhos contra a parede”.

 

Salvo que as mulheres e os filhos dos hereges, deixando de lado aos próprios hereges – evidentemente -, não sejam considerados seres humanos, parece que há aí um pequeno problema enquanto ao absoluto dos valores. Certo é que sucedia em 1576, mas os valores que querem ser eternos, porque atemporais, não entendem de séculos.

 

Poderia argumentar-se que os papas fundadores do Santo Ofício tinham suas razões para obrar como obraram, na medida em que os valores não são nem tão eternos nem tão absolutos como para rechaçar suas características mais peculiares e idiossincrásicas. Opôr-se a Galileu era até razoável em 1633, quando se lhe obrigou a enunciar sua cérebre retratação. Mas não o é hoje, nem ninguém na Igreja católica, de que nós tenhamos notícia, pretende fazê-lo. Sucede que desde 1633 até hoje já se passaram quase quatro séculos. Talvez, dentro de quatro mais, a Igreja católica brasileira de hoje – se é que existirá um Brasil pós-república “tiririlma”, porque os sacerdodes seguro que sim – entenda que a união homoafetiva não somente é admissível senão de todo desejável; e volte a pedir o sempre cínico e tardio perdão à intolerância e aos equívocos cometidos.

 

O maior problema é que dizer o que estamos dizendo resulta inútil se se crê que os valores implicados são eternos e absolutos. De fato, o mais inútil de tudo é propor a discussão acerca do casamento (e da adoção) homoafetivo tendo em conta o que a Igreja católica possa opinar. Quando algo carece de solução, tão pouco é um problema no qual se deva entretener-se. Nesses casos – parafraseando a Saramago -, a ignorância manifesta um de seus mais graves e perversos inconvenientes: quando se junta com a estupidez, não tem remédio.

 

 Deixemos, pois, de lado as discussões inúteis. E em que pese sigam imperando entre as altas instâncias da hierarquia dominante brasileira os esquemas que relacionam de maneira estreita a natureza civil do matrimônio a uma determinada ideologia religiosa, o melhor e mais prudente será, a partir de agora, centrar-nos diretamente nas razões éticas, políticas, jurídicas e sociais do “problema” e reservarmos a questão dogmática para os assuntos próprios do dogma: como se há bases teológicas e litúrgicas para crer que as almas dos embirões “assassinados”- a exemplo do que ocorre com as almas das crianças mortas sem batizar- vão diretamente ao paraíso; se há algum mandado divino que envie diretamente ao inferno e sem escala os sacedortes que abusam de menores inocentes – assim como de seus dissimulados protetores eclesiásticos; ou até mesmo a oportunidade de devolver às mulheres a alma. Porque quanto a esta última não recordamos quando, nem por parte de quem, mas sim que nos parece que lhes foi negada por razões teológicas.

 

Restituamos aos homossexuais sua condição completa de ser humano,  reconhecendo direitos e garantias que até agora lhes têm sido negados, direitos que assegurem (de forma inviolável, autônoma e digna) a capacidade à esse coletivo humano concreto de plena e livre realização pessoal e familiar, isto é,  de pôr , no que se refere aos seus legítimos interesses, os  direitos humanos e fundamentais ao efetivo serviço da não discriminação, da liberdade como não interferência arbitrária e da igualdade material, como princípios básicos que asseguram a invariante axiológica do respeito incondicional da dignidade da pessoa humana.

 

Ademais, qualquer devoto que insista na defesa de que o Estado deve assumir uma política que possa implicar no desprezo da tolerância ou no desconhecimento do pleno, inalienável e incondicional direito dos indivíduos a assumir por si mesmos crenças, preferências e valores diferentes, é um perigo para o exercício pleno da liberdade e autonomia cidadã. Quando uma determinada ideologia religiosa transpõe a esfera do privado e do pessoal e converte-se, com o beneplácito do Estado e como manancial de graça santificante, em norma obrigatória para todos os cidadãos, está servida a mesa para a incompreensão, o fanatismo, a submissão e a intromissão arbitrária e despótica em nossa individualidade.

 

Já é hora de que o Estado brasileiro, agora sob o inédito (e “maternal”) comando de um primata do sexo feminino, deixe que a realidade volte a ser um espaço livre de religiões, de não impor a ninguém as proibições opressivas que dimanam dos valores alheios, ferinamente coloridos com a idéia de que determinadas condutas são contrárias aos “fins da humanidade” ou ao “projeto sexual do Criador”, e/ou com a promessa, moralmente repugnante, de salvação eterna. Ainda que somente seja por respeito aos valores absolutos ou por puro “instinto materno”.

 

 

* Atahualpa Fernandez, Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB; Membro do Ministério Público da União /MPT.

 

** Manuella Maria Fernandez, Doutoranda em Direito Público (Ciências Criminais)/ Universitat de les Illes Balears-UIB; Doutoranda em Humanidades y Ciencias Sociales( Evolución y Cognición Humana)/ Universitat de les Illes Balears-UIB ; Mestre em Evolución y Cognición Humana/ Universitat de les Illes Balears-UIB; Research Scholar, Fachbereich Rechtswissenschaft /Institut für Kriminalwissenschaften und Rechtsphilosophie, Johann Wolfgang Goethe-Universität, Frankfurt am Main/ Deutschland; Research Scholar do Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos /UIB.

 



[‡] Nesta linha se movem os argumentos mediante os que se condenava ( e  segue condenado por um setor amplo da sociedade) as práticas homossexuais desde pensamentos com posições divergentes como os de Tomás de Aquino e o de Kant, mas ambos de uma influência decisiva na elaboração e transmissão ideológica dos valores e pautas morais sociais dominantes. Por exemplo,  Tomás de Aquino, quem concluía que a homossexualidade é antinatural por ir contra a lei eterna que definiu nossa biologia  e sua função procriadora como única finalidade da atividade sexual. E ainda com base neste fundamento, apenas alterado, se segue mantendo a condena por parte da Igreja católica, cuja influência social resulta inegável. Para kant, em câmbio,  já não é a lei eterna, senão nossa própria natureza humana a que converte as práticas homossexuais no mais nefando dos vícios, em um dos mais imorais, inclusive pior que o suicídio, até o extremo de que o melhor seria nem falar dele; e se se decide a fazê-lo é porque ao constituir uma das maiores violações do “imperativo categórico” há que prevenir à gente sobre esta maldade. E para queles que gostam de citar Kant neste tema, recorda-se que o mesmo se pronuncia nestes termos: “Um segundo crime “carnis contra naturam” é o ato sexual entre “sexus homogenii” no qual o objeto do impulso sexual é um ser humano, mas há homogeneidade em vez de heterogeneidade de sexos, como quando uma mulher satisfaz  seu desejo com uma mulher, ou um homem com um homem. Esta prática também é contrária aos fins da humanidade, porque o fim desta em relação com a sexualidade é preservar a espécie sem degradar às pessoas, mas neste caso, nao se está preservando a espécie (como ocorria com um crime “carnis secundum naturam”), senão que se despreza à pessoa, se rebaixa ao ser até o nível dos animais e se desonra à humanidade”. 

 

Como citar e referenciar este artigo:
FERNANDEZ, Atahualpa; FERNANDEZ, Manuella Maria. União homoafetiva: a Igreja Católica e a República “tiririlma”. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/uniao-homoafetiva-a-igreja-catolica-e-a-republica-tiririlma/ Acesso em: 28 mar. 2024