Direito e Tecnologia

Para que servem mesmo as patentes de software?

Para que servem mesmo as patentes de software?

 

 

Pedro Antonio Dourado de Rezende *

 

 

Noção jurídica

 

A patenteabilidade de idéias implementáveis por computador, em softwares que não cabem em si, não surge naturalmente, de uma hermenêutica pacífica do ordenamento vigente. Ela surge de um processo que inclui elaboradas estratégias de ofuscamento, particularmente de interesses e seus entrechoques, por uma agenda de extensões da noção jurídica de propriedade, a incidir sobre conceitos ou bens imateriais.

 

No desenvolvimento das sociedades pós-industriais, os processos normativos que delimitam as esferas de leis jurídicas, de normas administrativas e de costumes culturais vêm sendo pressionados a co-or­denar uma contínua expansão des­sas extensões, e uma crescente radicalização das respectivas medi­das punitivas. Esta pressão con­fronta, de um lado, interesses cuja priorização conduz a sociedade pelo caminho dessas expansões radicais, e de outro, interesses que se acautelam desse caminho.

 

Em processos normativos, os inte­resses cumprem seus papéis. Os primeiros, então, se in­cumbem da argumentação, pretensamente racional se o o debate é público, pela necessidade de trilhar tal caminho normativo. E os segundos, que com os primeiros se estranham, de questionar tal racionalidade e expor consequências, vislumbradas nesse trilhar como socialmente nefastas. A divi­di-los, visões ideológicas que mapeiam de formas distintas os valores afetados, com diferenças que nos motivam a começar por ideologia.

 

O que é a ideologia?

 

O conceito atual de Estado democrático vem do período Iluminista, que forjou na palavra “ideologia” seu sentido primevo. O de uma constelação de idéias desfocadas da realidade, induzidas por interes­ses dogmáti­cos ou patológicos. Uma estratégia de risco para a legitimação de poder, pejorativa para o poder que pre­valece. Depois, com a semiologia, Roland Barthes deu-lhe o sentido de naturalização da or­dem simbólica. Retórica da realidade auto-evidente, dos fatos que “falam por si”, em argumen­tos de au­toridade. Por último, no pós-estruturalismo, que privilegia a filosofia da lin­guagem, Karl Korsch dá-lhe a forma de sinédoque. Figura de estilo na qual se toma a parte pelo todo. 

 

A sinédoque em foco é aquela que a ideologia prevalecente, no capitalismo tar­dio, escolheu para calçar sua opção por tal trilha normativa, sob o estribado olhar enviesado do positivismo jurídico. Rumo às últimas fronteiras possíveis à mercancia. É aquela figura de linguagem que sinaliza essa trilha com marcos atraentes mas ofuscan­tes dos conflitos decorrentes da opção seguida. Tal figura se forma pela justaposição de dois sinais carac­terísticos do nosso tempo, que são antagônicos: um, o fetiche mercadista que se expressa na abstra­ção nocional de propriedade, e outro, a valoração do conhecimento como ação de entendimento; esta, sen­tido pri­mordial que perdura, desde o latim pré-cristão primitivo, no conceito de intelecto.  

 

Essa trilha expande privilégios e radicaliza poderes individuais imanentes à noção jurídica de propriedade, mas – porque o Direito não opera no vácuo –, em detrimento de direitos coletivos ine­rentes à função social do intelecto. Direitos reconhecidos, por exemplo, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em o de “procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, infor­mações e idéias por qualquer meio de expressão.”

 

Cabe aqui, portanto, problematizar as fronteiras e meios capazes de obstar o exercício coletivo des­se direito e de seus conexos, bem como as formas e estratégias capazes de ofuscar tal cercamento. Pois o Software Livre pode ser entendido como movimento sociotécnico que busca o exercício deste direito universal, relativo a idéias implementáveis por computador, pelo meio de expressão representado em códigos-fonte sob licenças autorais permissivas e produção colaborativa. As matrizes humanas dos programas executáveis por computador, que se agregam em software, são escritas em códigos-fonte desde os anos 60. E o primeiro grande teste deste movimento foi erguer a Internet.

 

Figura de linguagem

 

Nesta problematização devemos, primeiro, reconhecer como conveniente a qualquer ideologia prevalecente que todos se refiram a certas coisas de certa maneira. Através de figuras de estilo que a legiti­mem, digamos, como não-ideologia. No caso em foco, coisas referentes ao Direito, através de uma figura de linguagem que destaque, dentre as inúmeras característi­cas defini­doras de conceitos imateriais tão díspares como autoria, marca, patentes e cultiva­res, um sinal remoto que deles emana com tal condão. A saber, o sinal de aquilo imaterial ao qual se atri­bui pro­priedade, ao qual por­tanto se outorgam privilégios in­dividuais exclusivos para usufruto e gozo, ter sua utilida­de ligada a al­guma ação de entendimen­to, ou seja, ao intelecto.

 

Ocorre, porém, que o usufruto e o gozo de criações do espírito, de obras cuja utilidade esteja liga­da ao intelecto, presumem compartilhamento, pela ação do entendimento. E que tais criações presu­mem prévios compartilhamentos, pois não surgem do vácuo. São re-elaborações, privilegiadas pelo gozo imaterial de usufrutos anteriores. Impor valores de troca a tais compartilhamentos, através de ex­pansões de direitos exclusivos para usufruto e gozo dessas criações, sinaliza promessa de transfor­má-las em bens rentáveis, à guisa desses direitos assim as estimularem, ou da naturalização de outros; mas, a um custo social corres­pondente, pela exclusão imposta com a mercantilização do acesso tempestivo ao entendimento legal­mente útil.

 

Ainda, a exclusividade eficazmente assegurável pelo Direito adiciona, ao custo social corres­pondente, um custo operacional proporcional à dificuldade de se distingui­r as criações do espí­rito excluí­das do livre compartilhar, ou as já incluídas em prévias apropriações. Custo que cresce não so­mente com as expansões de noções jurí­dicas do que seja imate­rialmente proprietarizável, mas tam­bém com a informatização dos meios de ex­pressão do que o seja, como ilustram o direi­to autoral fren­te à Inter­net, e as patentes ditas de software.

 

Justapostos, esses sinais for­mam então uma fi­gura de linguagem que, sob a ideologia mistificadora de um mercado onipre­sente, e auto-regu­lável pela eficiência econômica, passa a insi­nuar pro­messa de ilimi­tada pros­peridade, en­quanto ofusca o custo social que lhe corres­ponde, na contradição perfor­mativa da justaposição mesma: pro­priedade exclui o comparti­lhar, enquanto intelec­to tem que incluí-lo. Uma sinédoque que é também um oxí­moro, este, figura de estilo que liga objeto e predicado com características ou qualidades contraditórias.  

 

A coisa dita

 

Quando tal figura de linguagem, camuflada de graal, revela seus efeitos práticos coletivos, na forma de ineficá­cia ju­rídica, distorção econômica ou ero­são do Direito, os interesses que dominaram a rodada ante­rior de expansões radicais se põem a promover a próxima. No discurso semi-religioso “pela harmonização” da coisa, por exemplo, articulado por interesses dominantes na OMPI e em outros santuários, marcos antes nego­ciados como “teto”, como os do acordo TRIPS Plus na OMC, uma vez emplacados são depois promovidos a sinalizar “piso”. Agora rumo ao ACTA, novo tratado que interesses monopolistas estão a negociar em sigilo. 

 

Assim o capitalismo tardio, na medida em que satura ou esgota seus meios de acu­mulação, com sua ló­gica pressiona suas últimas fronteiras, por mais comoditização de trocas simbóli­cas que ainda lhe sejam ex­ternas. Pressi­ona, portanto, na acepção semio­lógica do seu fundamenta­lismo, pela naturaliza­ção de uma or­dem econômica cuja tri­lha normativa percorre este círculo vicioso. Por uma agenda de contínua ex­pansão de pri­vilégios e radi­calização de poderes imanentes a noções sempre mais abstratas de pro­priedade ima­terial.

 

Há gritante contradi­ção entre esta agenda totalitarista, ou coisa batizada por seus adep­tos de “PI forte”, e o ideal de Estado mínimo, dogma do fundamentalismo mercadista cujos frutos esses adeptos vêm colhendo. Colhendo e acumulando, com modelos negociais os quais, frente ao espectro da obsolescência, com tal coisa querem perenizar. É viciosa a circula­ridade em sua ló­gica que lhes permite argumen­tar, por exemplo, que a crise econô­mica atual advém não de des­regulamentação, por eles dirigida e seletiva, mas da falta de mais dela.  E que patentes abstratas, regulamentação in extremis, promo­vem inovação; fora desta sua agenda, diga-se.

    

Como é possível, então, fundamentar críticas sociais aos regimes jurídicos em foco, fincados em imbricada radicalização de tutelas com patentes, marcas, titulações autorais e da coisa toda? Se é possível fazê-lo expondo e desarticulando falácias e sofismas no discurso funda­mentalista que preenche essa agenda, não nos cabe opinar. Cabe, todavia, registrar que vale tentar. Pois embora ideologias sejam sempre cegas às suas próprias limitações e contradições internas, as pessoas só serão cegas a elas, ou só se cegarão por elas, se o quiserem.

 

Coisas a dizer

 

Para encerrar, destacamos duas abordagens que, pelo ângulo da crítica social, podem ser promissoras. Uma, analisa as patentes de software como arsenal para estratégias de monopólio. O papel da escassez imaterial artificialmente produzida, como instrumento para indução e sustento de barreiras à entrada em mercados de acesso a entendimentos técnicos legal­mente úteis, camufladas de incentivo coletivo. Outra, analisa a ação comunicativa, sob uma perspectiva teórica habermasiana, como condutora ao entendimento livremente útil.

 

Para Ha­bermas, a modernidade tem origem numa mudança no conceito de razão: da racionalidade substan­cial, nas tra­dições religiosas ou metafísicas de ver e viver um mundo monolítico, para uma racionalidade ins­trumental, à qual se confiam pretensões de validade; inclusive a pretensão de se inverter fins e mei­os, em busca de eficiência, com a autonomização de esferas no espaço social. Esferas que passam, assim, a constituir seus próprios mundos.

 

Com a autonomização das esferas que constituem o mundo vivido e o sistema político-econômico, este passa a co­lonizar aquele, a pretexto desta ou daquela eficiência como fim em si mesmas. Dentre outras for­mas, com cerca­mentos normativos ofuscados pela autonomia conquistada a ambos. Com a agen­da “da PI forte”, então, o que ainda não foi imaterialmente proprie­tarizado o será apesar das crescentes dificuldades de distin­ção, como ilustram as expansões do regime patentário a “tudo que existe sob o sol”. O Sol ilumina também as “idéias implementáveis por computador”, o que hoje quase sempre quer dizer implementáveis em software, e que nesta jurisdição quase sempre se quer dizer software descabido de si.

 

Há trinta anos, e mesma agenda reclamava estes gregários bens simbólicos para o regime de tutela exclusiva do direito autoral, feito incidir sobre a expressão de idéias implementáveis em software. Promovia-se assim a emancipação da indústria na área de software em relação à do hardware. E promovia-se também, com ela, a mais rápida concentração de riqueza da história do capitalismo. Esta concentração, por sua vez, eventualmente esgotou o ciclo de eficácia do correspondente regime proprietário, baseado em escassez artificial, única cola que funciona para valores de troca sobre bens simbólicos e gregários de custo marginal irrisório.

 

Entrementes, a progressiva abundância de criações em código fonte, abertas ao reuso com licenças autorais permissivas, veio a favorecer as eficácias técnica e sócio-econômica do modelo de desenvolvimento colaborativo, do Software Livre, e a desfavorecer as do modelo proprietário, causando a obsolescência deste e da tutela exclusivamente autoral como estratégia monopolista para a área. Por isso, a respectiva batalha técnico-evolutiva migra para o campo dos padrões digitais. Com isso, a mesma agenda passa então a recolonizar o ecossistema produtivo desses bens, sobrepondo-lhe outra tutela, a do regime patentário, pressionando este regime a incidir sobre idéias expressáveis em software, mais ou menos descabidamente.

 

O que não é novidade. Recolonização semelhante ocorreu outrora, por tutela sobre outra classe de idéias, frente ao avanço info-sociotécnico da época (a imprensa). Idéias das quais dadss expressões foram criminalizadas pelo regime canônico da Inquisição. Os limites da tutela jurídica sobre idéias, outrora ofuscados pela natureza do mal, agora o são pela natureza do virtual; que para Gilles Deleuze é a indistinguibilidade entre o real e o irreal. Só que agora, a custo sócio-operacional multipli­cado tam­bém por irrefreada banalização dos critérios de novidade, não-ob­viedade e aplicabili­dade industrial, camuflada em complexidade técnica. 

 

Falha patente

 

No livro Patent Failure (2008), os economistas James Bessen e Michael Meurer mostram como as patentes em áreas abstratas funci­onam. Elas se apresentam por fronteiras nebulosas que são custosas para en­tender, ava­liar, evitar ou compe­lir. Em metade de sua história, o desenvolvi­mento de software ino­vou farta e velozmente as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) sem se valer ou precisar de patentes para inovar ou para “estimular” inovações.

 

Ago­ra, com mais de vinte mil novas dessas a cada ano só nos EUA, há cada vez mais trabalho para advogados e burocratas que para programadores. Há cada vez mais futilidades e obstá­culos artificiais para coagir usuários a custosas atualizações de li­cenças e hardwa­re, as quais o fa­zem cada vez mais inquilino de seus próprios objetos. Inquilino dos objetos cuja função é mediar sua vida e sua vontade no plano virtual, vida e vontade cada vez mais para lá sugadas. Basta ver a história das moedas e da indústria financeira, ou a sua conta de celular.

 

Quantos reais na sua conta de telefone celular vão para royalties? a maioria por patentes sobre alguma rebimboca de uma eventual parafuseta, patentes obviamente questionáveis mas muito custosas de contestar. Algumas delas incidíveis pela tática de emboscada, pirateadas sobre padrões negociados como aber­tos até pelo próprio titular. Nas jurisdições onde a colonização patentária na telefonia é, digamos, com­petitiva, nos EUA com a tecnologia TDMA, até a inova­ção perdeu a dianteira, para o padrão coo­perativo eu­ropeu GSM.

 

Depois de entretenimento (com DRM e criminalização de seu circundamento, à la DMCA) e fármacos (com patentes de utilidade usadas contra a tempestividade, e dados de testes clínicos como segredo industrial), é o interesse convergente ao monopo­lismo no agronegócio que passa a arremedar, com transgênicos e cultivares, o das TIC — e vice-versa. As rodadas de expansões normativas ra­dicais se reali­mentam, também, entre si horizontalmente. A contaminação transgênica do software livre e dos padres digitais abertos, com patentes ditas de software, ameaça asfixiar o modelo produtivo do primeiro, cooptando-o a um simulacro do regime proprietário, da mesma forma que as sementes naturais para plantio.

 

Assim, como entender as relações e os seres cons­tituintes da coi­sa dita PI, conforme aspiram os que entram no jogo da ideologia prevalecente? Em particular as patentes de software, de artefatos que, devido à sua natureza semiológica e gregária, ao mesmo tempo o são em si e além de si? Tarefa de Sísifo. Um objeti­vo móvel e cambiante, exaltado pelo encanta­mento neurolinguísti­co numa vaga pro­messa de prosperi­dade ilimitada, garimpável em montanhas de hermético legalês. Uma cenoura pendurada numa vara chamada “Inovação”, por uma cordinha chamada “Direito”, virtualmente saboreável para fanáticos da Seita do Santo Byte e deglutível para vítimas da Síndrome de Estocolmo Digital. Mais fácil é entender sua real essência.

 

Onde estaria a saída, rumo à crítica soci­al fecun­da, disto que em essência é uma sub-colonização técnico-jurídica com traços kafkianos? Voltando ao filó­sofo de insuperável estatura intelectual, dentre os vivos enquanto escrevo, Habermas consi­dera a colo­nização entre esferas sociais uma patologia da modernida­de, decorrente da autonomização das mesmas pela racionalidade instru­mental. E revisi­ta o pro­jeto Iluminista, em busca de estratégias para sua reintegração, num espaço social coeso. Já para os irmãos de fé, a saída está numa graciosa e monolítica maneira de ver e viver o mundo.

 

 

 

 

Bibliografia

Referências podem ser encontradas…

– sobre o conceito de ideologia, em

http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/jcsbc21.htm

– sobre o conceito de ideologia aplicado à agenda da PI forte,

http://www.cic.unb.br/~pedro/trabs/estocolmo.html

– sobre os influxos das TIC na agenda da PI forte,

http://www.cic.unb.br/~pedro/trabs/goethe.html

 

 

* Pedro Antônio Dourado de Rezende é matemático, professor de Ciência da Computação na Universidade de Brasília, Coordenador do Programa de Extensão em Criptografia e Segurança Computacional da UnB, ex-conselheiro da Fundação Software Livre America Latina e ex-representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Infra-estrutura de Chaves Públicas brasileira. (www.cic.unb.br/docentes/pedro/sd.htm)

 

 

Como citar e referenciar este artigo:
REZENDE, Pedro Antonio Dourado de. Para que servem mesmo as patentes de software?. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-e-tecnologia/para-que-servem-mesmo-as-patentes-de-software/ Acesso em: 19 abr. 2024