Direito do Trabalho

Sobre a competência criminal da Justiça do Trabalho: quem tem medo do lobo mau, ou melhor, do lobo em pele de cordeiro?


João
Humberto Cesário
, ilustre jurista pátrio, professor e magistrado do Trabalho do
TRT da 23ª Região, do qual tenho a honra de figurar no rol de amigos, em seu ótimo
blog Ambiência Laboral, http://ambiencialaboral.blogspot.com/,
após comentar recente decisão do E. TST confirmando condenação por Danos Morais
Coletivos, no importe de R$5milhões, imposta à Construtora Lima Araújo Ltda,
proprietária das fazendas Estrela de Alagoas e Estrela de Maceió, por
exploração de trabalho escravo, faz importantes questionamentos sobre a ausência
de competência à Justiça do Trabalho para julgar e processar os aspecto
criminal da exploração do trabalho escravo, vez que decorrente da relação de
trabalho a referida questão.

João Humberto, que é defensor da competência criminal da Justiça
do Trabalho, faz os seguintes questionamentos:

1- qual o argumento racional para que se subtraia da Justiça do Trabalho
a competência criminal, atribuindo-a à Justiça Federal (artigo 109, VI, da
CRFB)?

2- é razoável que em um único tema jurídico, determinado órgão do Poder
Judiciário conheça dos seus aspectos trabalhistas, civis e administrativos,
enquanto outro se pronuncia sobre os meandros criminais?

3- a quem interessa tal dicotomia? à sociedade?!

Pois bem, em minhas Petições Iniciais Trabalhistas, tenho
invocado o artigo 40 do Código do Processo Penal, requerendo que os juízes do
trabalho notifiquem o Ministério Público Federal – MPF, quando caracterizados crimes
decorrentes da relação de trabalho, para que se instaure o devido procedimento
legal.

O resultado prático de tais requerimentos, entretanto, tem sido
frustrante, vez que, se por um lado grande parte dos magistrados trabalhistas os
indeferem, dizendo que a denúncia deve ser feita diretamente pelo próprio
interessado, por um outro, quando acolhidos os referidos requerimentos, em
apenas alguns poucos casos, não mais do que meia dúzia, nos quase 10 anos que
adoto o referido procedimento, tiveram inquérito instalados, dos quais,
entretanto, de nenhum tive notícias sobre resultado final, isto é, creio que a
sanção penal decorrente da transgressão da legislação trabalhista não restou
aplicada.

Passando às respostas aos questionamentos feitos pelo i. Professor
e Doutor João Humberto Cesário, iniciando pelo questionamento de número 2 de
seu blog, onde ele questiona se é “razoável que em sobre um único tema jurídico, determinado
órgão do Poder Judiciário conheça dos seus aspectos trabalhistas, civis e
administrativos, enquanto outro se pronuncia sobre os meandros criminais?”

Creio que, de fato, não há sentido na dictomia apresentada e questionada
pelo professor. Essa dictomia, entrementes, decorre do estabelecido na
Constituição Federal, em artigo 109, o qual determina que compete à Justiça
Federal julgar e processar
os crimes previstos em tratado ou convenção
internacional (inciso V), as causas relativas a direitos humanos a que se
refere o § 5º deste artigo, qual seja, grave violação de direitos humanos
(inciso V-A), os crimes contra a organização do trabalho
(inciso VI), nas quais, o trabalho escravo e o infantil, certamente, se enquadram.

Segundo MARCELO JOSÉ FERLIN D’AMBROSO, douto Procurador do Trabalho da 12ª Região, em artigo publicado no Site Jus Navegandi, no qual é defendida a competência
criminal da Justiça do Trabalho,
o Juiz do Trabalho JÔNATAS DOS
SANTOS ANDRADE, em exposição apresentada no II Encontro de Juízes e
Procuradores do Trabalho de Santa Catarina, trouxe à baila a tese desenvolvida
no STF, por ocasião de decisões acerca da competência da Justiça do Trabalho em
ações acidentárias, sobre a unidade de convicção. Buscando-se
elementos sobre a teoria, colhe-se do julgado no RE 438639, da Excelsa Corte, o
seguinte: salientou-se que deveria intervir no fator de discriminação e de
interpretação dessas competências o que se chamou de ‘unidade de convicção’,
segundo a qual o mesmo fato, quando tiver de ser analisado mais de uma vez,
deve sê-lo pela mesma justiça.”
Ou seja, o Supremo Tribunal Federal reconhece hoje que a cisão de
competência não favorece a aplicação de justiça, e que a divergência de
decisões para ações decorrentes da mesma relação de direito material invocada
entre órgãos jurisdicionais distintos causa um impacto deletério no
jurisdicionado

Então, a dictomia estabelecida na
Constituição Federal, resultando que os crimes decorrentes da relação de
trabalho sejam julgados pela Justiça Federal, em face ao princípio da Unidade
de Convicção, deve ser considerada equivocada, mormente em sua forma absoluta,
hoje em vigor.

Passamos agora aos demais
questionamentos do Professor e Juiz Dr. João Humberto.

Assim, prima facie, é preciso destacar que além da exploração do trabalho
escravo e infantil – cancros inerentes ao capitalismo moderno, que leva ao
extremo a exploração do homem pelo homem na busca desmedida do lucro – há várias
outras lides criminais que decorrem da relação de trabalho.

Tipificados nos artigos 197 a 207 do Código Penal, temos as seguintes
figuras penais, a saber, atentado contra a liberdade de trabalho; contra a
liberdade de contrato de trabalho e boicotagem violenta; contra a
liberdade de associação; paralisação de trabalho
, seguida de violência
ou perturbação da ordem; paralisação de trabalho de interesse coletivo; invasão
de estabelecimento industrial, comercial ou agrícola, sabotagem;
frustração
de direito assegurado por lei trabalhista; frustração de lei sobre a
nacionalização do trabalho; exercício de atividade com infração de decisão
administrativa; aliciamento para o fim de emigração e aliciamento de
trabalhadores de um local para outro do território nacional.

Antes de continuar com este
pequeno artigo, um parênteses para expor o que entendo por DIREITO, fazendo minhas as palavras de Piotr Stutchka (jurista
bolchevique, primeiro Comissário do Povo
para a Justiça do
Estado Soviétivo Russo)
“o Direito é um
sistema (ou uma ordem) de relações sociais, que corresponde aos interesses da
classe dominante e que, por isso, é assegurado pelo seu poder organizado (o
Estado).”

Neste diapasão, com todo o
respeito àqueles que defendem o deslocamento amplo da competência criminal para
julgar fatos decorrentes da relação de trabalho para a Justiça do Trabalho, o
dito popular “pau que bate em Chico, bate
em Francisco”,
aplicável perfeitamente à espécie, me leva à conclusão de
que esse deslocamento pleno pode ser equivocado, porquanto, prejudicial aos
trabalhadores e suas organizações.

Ademais, voltando ao dito popular acima transcrito, é certo que, em se tratando de normas coercitivas
estatais, elas batem muito e com muita força nos chicos, nos zés, nos joãos, nos
pedros, enfim, no povo pobre,
enquanto acaricia e
protege
aqueles oriundos
das classes sociais mais abastadas. O caso Pimenta Neves, que no momento em que
escrevo este texto, completa 10 anos impunidade, mesmo o referido jornalista
tendo confessado o assassinato de sua então namorada, ou, ainda, os inúmeros
casos de impunidade de corruptos e corruptores em nosso país, são exemplos
dessa realidade lamentável. A composição da população carcerária, idem.

Assim, não recebo com grande
entusiasmo a tese de deslocamento para a Justiça do Trabalho da competência
criminal, mormente se essa competência vier de forma ampla, em face de minha concepção
e compreensão acerca do Direito acima explanada e, ainda, por fazer um corte de
classe da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho, os quais não se
diferenciam, essencialmente, na composição de Magistratura e do Ministério
Público dos demais ramos do direito.

Explico-me: diante da própria
natureza do direito, que em minha opinião corresponde a um sistema de relações
sociais para assegurar os interesses da classe dominante de determinado tipo de
sociedade, por um lado, e, por outro, e de uma análise sociológica da
composição de classe da magistratura e do ministério público – formados por
juristas que, em sua maioria, ou são provenientes das classes mais abastadas ou
com essas acabam se identificando no decorrer de suas carreiras, inclusive, em
face de suas boas e merecidas remunerações -, não é difícil antever que dotar a
Justiça do Trabalho de competência criminal, poderá levar que fenômenos
reacionários, como os interditos proibitórios – cada vez mais freqüentes na seara
trabalhista, utilizados para impedir o exercício pleno do direito de greve
(impedindo os piquetes) – adquiram uma face mais dramática, transformando a
Justiça do Trabalho em mais palco da criminalização do movimento social/sindical,
uma realidade crescente neste início de século.

Uma greve, por exemplo, na qual
ocorra venha ocorrer uma ocupação de fábrica, um piquete ou, ainda, um enfrentamento
com forças repressivas estatais, não restam dúvidas, poderá resultar em
processos e condenações criminais impostas pela Justiça do Trabalho contra dirigentes
e ativistas sindicais, vez que tais fatos podem ser enquadrados, sem maiores
dificuldades, nos tipos penais acima expostos (artigos
197 a 207 do Código Penal).

Frente às minhas ponderações, certamente
haverá quem argumente que os tipos penais acima mencionados já existem e que,
portanto, não seria o deslocamento para a Justiça do Trabalho da competência criminal
o motivo do aumentos da repugnante criminalização do movimento sindical e
social dos trabalhadores.

Entretanto, no momento atual – já
que nada impede que com um recrudescimento das relações sociais essa realidade
se altere – tais tipos penais não são amplamente aplicados em desfavor do
movimento sindical, exatamente porque a Justiça Federal e a Justiça Comum, assoberbadas
com seus processos tradicionais, consideram os
delitos decorrentes das
relações de trabalho, tendo em vista que alheios às suas realidades, como de
menor potencial ofensivo, não aplicando, por conseguinte, as penalidades do Código
Penal contra o movimento social e sindical organizado.

Todavia,
com o deslocamento amplo da competência criminal para a Justiça do Trabalho, data maxima venia, as conseqüências
criminais da relação de trabalho seria exatamente o campo de autuação penal
deste ramo especializado da justiça, quadro perfeito para aplicar penalizantes,
atualmente não aplicadas.

É
neste aspecto, pois, renovadas as vênias, que reside o grande perigo do
deslocamento pleno da competência criminal à Justiça do Trabalho processar e
julgar processos decorrentes da relação de trabalho, ao qual, acredito, não se
atentaram os defensores desta tese, via
de regra, advogados, juízes e procuradores do trabalho comprometidos com uma
sociedade democrática e com a defesa da dignidade humana dos trabalhadores.

Portanto, com todo o respeito à opiniões
divergentes, sou extremamente contrário dotar amplamente a Justiça do Trabalho
de competência criminal. Sou contra dar mais tentáculos ao estado repressor,
pois a Justiça do Trabalho faz parte do estado, para punir aos trabalhadores.

Todavia, considerando que a defesa da competência
criminal à Justiça do Trabalho parte da necessidade de enfrentar, coibir e
erradicar o trabalho escravo, infantil e/ou degradante, para se evitar que essa
competência criminal se volte contra os trabalhadores e suas organizações, é
necessário que ela não seja ampla, mas restrita ao trabalho escravo, ao
trabalho infantil e, ainda, ao aliciamento de trabalhadores.

Lado
outro, para evitar que interpretações do texto legal que venha estabelecer essa
competência não sejam usadas em desfavor dos trabalhadores, até mesmo em face
da atual redação do artigo 109 da Constituição Federal, essa mudança restrita
deva vir em forma de Emenda Constitucional, que incorporasse mais um inciso ao
artigo 114 da Carta Magna, declarando expressamente que, em matéria criminal, seria
competente a Justiça do Trabalho apenas para julgar os processos criminais
decorrentes da prática de trabalho escravo, do trabalho infantil e do
aliciamento de trabalhadores.

Se
assim não for, o lobo mau coloca medo, principalmente porque, em pele de
cordeiro, está a entoar cantos de sereia!

Adriano Espíndola Cavalheiro, é advogado na área
trabalhista/sindical, atuando como assessor jurídico de entidades sindicais de
trabalhadores (sindicatos e federações). Membro da Renap (Rede Nacional de
Advogados e Advogadas Populares) e do Corpo Jurídico da CSP- Conlutas (Central
Sindical e Popular Coordenação Nacional de Lutas). É militante do PSTU. Mantém o Blog
Defesa do Trabalhador http://defesadotrabalhador.blogspot.com/.
Contatos: defesadotrabalhador@terra.com.br



D’AMBROSO, Marcelo José Ferlin. Competência criminal da Justiça do
Trabalho e legitimidade do Ministério Público do Trabalho em matéria penal:
elementos para reflexão.
Jus Navigandi,
Teresina, ano 10, n. 995, 23 mar. 2006. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8141>. Acesso em:
21 ago.
2010.

Piotr Stutchka, in, Problema do Direito de Classe e da
Justiça de Classe, Editora Sundermamm

Como citar e referenciar este artigo:
CAVALHEIRO, Adriano Espíndola. Sobre a competência criminal da Justiça do Trabalho: quem tem medo do lobo mau, ou melhor, do lobo em pele de cordeiro?. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2010. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-do-trabalho/sobre-a-competencia-criminal-da-justica-do-trabalho-quem-tem-medo-do-lobo-mau-ou-melhor-do-lobo-em-pele-de-cordeiro/ Acesso em: 19 abr. 2024