Direito Constitucional

O mandado de injunção pela perspectiva da Lei 13.300 de 23 de junho de 2016

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Rodrigo Schwartz Holanda

1 INTRODUÇÃO

Nos termos do §1º do art. 5º da Constituição Federal, “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Observa-se, na medida em que os jurisdicionados podem exigir a aplicação imediata das normas inseridas no altiplano constitucional, a predileção do constituinte por tornar sua obra perene e efetiva, assegurando que os direitos, garantias e liberdades constitucionais possam ser viabilizados independentemente de qualquer movimentação legislativa. Sucede que o exercício de alguns direitos e garantias constitucionais depende de regulamentação por lei e que o legislador não é, e nem poderia ser, capaz de disciplinar toda e qualquer orientação constitucional que possua a feição de direito, liberdade ou prerrogativa.

Pensando nisso, o constituinte estabeleceu, no inciso LXXI do mesmo artigo, que será concedido “mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”.

Criou-se, desse modo, um valioso expediente vocacionado a proporcionar, àquele que se julga titular de um direito constitucional impraticável pela ausência de lei, a possibilidade de provocar o Poder Judiciário para garantir que a inércia legislativa não o vulnere.

A simplicidade do artigo oculta, contudo, uma série de questões: (i) o que é, efetivamente, a falta de norma? (ii) toda e qualquer norma é passível de regulamentação via mandado de injunção? (iii) aqueles direitos que já foram regulamentados, mas que deixaram de atender a reclamos de pessoas inseridas em outros contextos são passíveis de regulamentação via mandado de injunção, ou a edição de norma efetiva o direito integralmente? (iv) qual deve ser a abrangência da “regulamentação”? (v) que direitos podem ser tutelados via mandado de injunção? (vi) quais são os efeitos da decisão proferida em mandado de injunção? (vii) como, de fato, ocorre o processo de regulamentação? (viii) a quem se aplica a regulamentação concedida via mandado de injunção?

É certo que teorias e interesses se digladiam nessas questões e que o ordenamento jurídico não fornece, ao menos num primeiro momento, respostas para essas perguntas. E, curiosamente, o direito de ter direitos fundamentais regulamentados via mandado de injunção – espécie inserida no gênero das “garantias fundamentais” – também era uma garantia fundamental carente de regulamentação.

Recentemente, no entanto, o legislador editou a Lei n.º 13.300, de 23 de junho de 2016, que “disciplina o processo e o julgamento dos mandados de injunção individual e coletivo”.
Nesse contexto, o presente artigo analisará a figura do mandado de injunção a partir dessa inovação legislativa e fixará premissas que permitam responder às perguntas formuladas para, concluída a análise do processo de positivação do direito no Sistema Tributário Constitucional Brasileiro, apresentar uma ideia de como opera o sobredito remédio em matéria tributária, avaliando como e quando essa ferramenta pode ser manejada pelos contribuintes.

2 O MANDADO DE INJUNÇÃO

2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O mandado de injunção foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro pela Constituição Federal de 1988 com o objetivo de proporcionar maior efetividade às normas constitucionais, sendo certo que as experiências obtidas com os vinte e oito anos de sua existência são suficientes para demonstrar que, quando o assunto é concretização de normas constitucionais de eficácia limitada[1], nem o mandado de injunção, nem o Poder Legislativo, atendem significativamente aos anseios dos jurisdicionados.

Disciplinar a vida das pessoas é um processo complexo e delicado, que lida com convicções, valores e pressões políticas e ideológicas. Ao discutir judicialmente um assunto constitucional desregulamentado, ingressamos nos hemisférios da interpretação e hermenêutica de normas preexistentes. Nesse contexto, o constituinte inseriu esse remédio constitucional para que todos os direitos e as garantias fundamentais independessem do talante do legislador. Vale destacar, inclusive, que essa realidade – de viabilizar direitos judicialmente[2] – representa uma questão polêmica que a comunidade jurídica brasileira enfrenta nos dias atuais: o ativismo judicial[3].

Traçando um breve paralelo, o ativismo, em linhas gerais, é polêmico pelos seguintes motivos: (i) os que criticam o ativismo judicial não se conformam com a possibilidade de o Poder Judiciário criar um direito “inexistente” e/ou promover políticas públicas sem o devido respaldo na lei. Não é sua atribuição, defendem. Além disso, afirmam que essa prática é contrária à noção de separação dos poderes. Noutro giro, (ii) há quem sustente que direitos e garantias fundamentais não podem depender da atuação legislativa, pautados na ideia de que o Poder Judiciário pode e deve atender a anseios que encontrem arrimo na Constituição.

A questão certamente é polêmica e possui diversas complexidades e desdobramentos. Ocorre, dentro desse panorama, que o mandado de injunção figura como hipótese que representa, por excelência, a intersecção dessas vertentes; é o legislador – mediante a Constituição e recentemente com a Lei n.º 13.300/16 – reconhecendo que nem toda situação é passível de regulamentação e atribuindo ao Poder Judiciário[4] competência para, nos casos de ausência de norma regulamentadora, viabilizar direitos[5].

Isso se dá porque, conforme ensina Roque Antonio Carraza, o mandado de injunção é “o procedimento, previsto na Carta Suprema, pelo qual se visa obter ordem judicial que assegure, no caso concreto, o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, quando inviável, por falta de norma regulamentadora”[6]

Logo, direitos concernentes à liberdade, tais como o trabalho (artigo 5º, XIII) e a associação (artigo 5º, XVIII), não podem ser tutelados via mandado de injunção, porquanto é possível exercer tal direito independentemente de qualquer regulamentação. Carlos Ari Sundfeld comenta:

“A ausência de lei, eventualmente prevista no dispositivo constitucional que consagra o direito, não inviabiliza o seu exercício, razão por que, como se disse, não cabe mandado de injunção nessas hipóteses. Ex.: O inc. XIII do art. 5º diz ser livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, “atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. A falta de lei não torna inviável o exercício do direito, apenas o faz ilimitado. Em outras palavras, inexistindo a lei, o exercício da profissão não está condicionado ao preenchimento de certa qualificação; pode se fazer sem qualificação alguma.”[7]

Existem, ainda, direitos amparados por normas constitucionais que dependem de providências materiais e/ou atos administrativos, tal como o acesso às ações e aos serviços de fomento à saúde (artigo 196 da Constituição Federal). Nesse ponto, a distinção é necessária: uma coisa é tutelar judicialmente um remédio denegado administrativamente e cuja disponibilização seja determinante para assegurar o direito à saúde de determinada pessoa. Outra coisa é tutelar a edificação de um hospital, cuja construção também promova o acesso à saúde de um grupo indeterminado de pessoas.

Sem avaliar a plausibilidade jurídica da busca por tais direitos em outras vias, ambas as hipóteses representam a falta de atos normativos que potencialmente concretizariam um direito constitucional. Nenhuma das duas, entretanto, representa um direito cujo exercício seja inviável pela ausência de regulamentação legislativa. Não são, portanto, passíveis de tutela via mandado de injunção.

Como e quando, então, estaria caracterizada a omissão legislativa que legitimaria o manejo do mandado de injunção? A constatação da omissão deve levar em consideração o tempo e as condições de edição da lei. Conforme escólio de Jorge Miranda, o texto constitucional não estabelece prazos e nem impõe a obrigatoriedade de legislar:

“A ausência ou insuficiência da norma legal não pode ser separada e cuja duração maior ou menos, ou será pré-fixada – muito raramente – pela própria Constituição ou dependente da natureza das coisas (ou seja, da natureza da norma constitucional não exequível por si mesma confrontada com as situações da vida, inclusive a situação que, à sua margem, esteja por acção, o legislador ordinário a criar). Assim, o órgão de fiscalização, sem se substituir ao órgão legislativo, tem de medir e interpretar o tempo decorrido, esse tempo que fora dado ao órgão legislativo (competente) para emitir a lei; e terá de concluir pela omissão, sempre que, tudo ponderado, reconhecer que o legislador não só podia como devia ter emitido a norma legal, diante de determinadas circunstâncias ou situações em que se colocou ou foi colocado. Pois o significado último da inconstitucionalidade por omissão consiste no afastamento, por omissão, por parte do legislador ordinário, dos critérios e valores da norma constitucional não exequível; e esse afastamento só pode ser reconhecido no tempo em que um e outro se movam.”[8]

Isso nos remete a outra questão. Se o legislador disciplina determinado direito constitucional, mas deixa de contemplar determinados grupos de pessoas, podem estes requerer mandado de injunção?

Tudo indica que sim, porquanto àqueles esquecidos pela regulamentação, a norma constitucional continua inalcançável. É dizer que há uma omissão parcial[9]. Omissão legislativa sanável por mandado de injunção, conclui-se, pressupõe (i) uma norma de eficácia limitada cujo dever de legislar é imposto pela Constituição e (ii) inércia legislativa durante um (iii) prazo razoável.

A ferramenta representa, desse modo, a ponte entre o protocolo de intenções constitucional e a vontade de uma pessoa (física, jurídica ou política) de gozar algum de direito que até então lhe é inalcançável por inexistir previsão legal. Noutras palavras, é um remédio constitucional que viabiliza a regulamentação judicial – e, consequentemente, o exercício – de uma norma.

2.2 TEORIA CONCRETISTA X TEORIA NÃO CONCRETISTA

Compreender o que é o mandado de injunção e quais as situações que possibilitam sua impetração certamente não é suficiente para conhecer a utilidade dessa ferramenta.

A Constituição diz que “conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”. Mas, de fato, o que representa a concessão do mandado de injunção? Existem duas teorias vocacionadas a explicar esse fenômeno: a não concretista e a concretista.

A não concretista, capitaneada por expoentes como Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Hely Lopes Meirelles e Celso Ribeiro Bastos, sugere que o mandado de injunção tem por objeto o reconhecimento da mora legislativa e a ciência ao órgão legislativo omisso. O objeto desse remédio constitucional, sugerem, é a obtenção de uma sentença que declare a omissão legislativa para que o órgão omisso se mobilize a adotar as providências necessárias para a efetivação do direito reclamado.

Fazem, ainda, uma analogia com a Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão, que, nos termos do artigo 103, §2º, da Constituição Federal[10], também não possibilita a edição de norma pelo Poder Judiciário. Nas palavras de Ferreira Filho:

“Não se pode dar ao mandado de injunção um alcance que não tem a inconstitucionalidade por omissão. Esta, que é reservada a autoridades e a entes de alta representatividade, que apenas corre perante o mais alto Tribunal do País, tem, repita-se, como consequência levar uma comunicação ao Poder competente para legislar, ou à fixação de prazo para órgão administrativo, se for o caso. O mesmo, no máximo, será o alcance do mandado de injunção”[11]

Ao comentar o assunto no tópico seguinte, quando da apresentação do histórico do mandado de injunção no Supremo Tribunal Federal, a questão será aprofundada com casos práticos. Essa é, em síntese, a corrente não concretista: a que defende que o mandado de injunção se resume à declaração da mora legislativa ao poder competente.

A segunda teoria, que se ramifica em duas, vai além. Sustenta que o mandado de injunção permite que o magistrado não só declare a mora legislativa, mas regulamente a norma de eficácia limitada cujo exercício é impraticável. As ramificações da teoria concretista decerto o são com relação aos efeitos da regulamentação: (i) individual ou inter partes e (ii) geral ou erga omnes.

A individual entende que a concessão de mandado de injunção estabelece a regra faltante apenas ao caso submetido à apreciação. Essa corrente, visualizada por doutrinadores como José Afonso da Silva, Luiz Roberto Barroso e Clémerson Merlin Cléve, defende que o Poder Judiciário está habilitado a preencher a falta de regulamentação criando uma norma aplicável somente às partes envolvidas no caso concreto.

A concretista geral, por outro lado, entende que a omissão inconstitucional deve ser suplementada com a edição de norma com efeito “erga omnes”. Possui como defensores Luiz Flávio Gomes e J.J. Calmon de Passos e sustenta que a decisão que reconhece a omissão legislativa e concede mandado de injunção transcende à demanda subjetiva, de modo que a edição da norma tenha efeitos oponíveis a todos.

2.3 O MANDADO DE INJUNÇÃO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Em 1989, quando do julgamento do primeiro caso, o MI 107, de relatoria do Ministro Moreira Alves, o Supremo Tribunal Federal atribuiu ao mandado de injunção única e exclusivamente eficácia declaratória, adotando, logo, a teoria não concretista.

Observa-se que nesses vinte e oito anos de Constituição, o Supremo Tribunal Federal foi timidamente evoluindo seu entendimento acerca do mandado de injunção, o qual prevaleceu por bastante tempo[12]. A experiência demonstra que as decisões que se resumem à declaração de mora legislativa não surtiram grandes efeitos, porquanto o Poder competente declarado em mora não atendia ao reclamo obtido via mandado de injunção. Começou-se, então, a perceber que a declaração era inócua.

Assim, a Corte iniciou sua peregrinação em busca da eficiência do instituto. Em 1991 se encontram os primeiros passos. No julgamento do Mandado de Injunção 232, impetrado por entidade de assistência social que buscava a regulamentação da norma prevista no artigo 195, §7º[13], o STF firmou um precedente interessante, pois, em que pese ao impetrado – na pessoa dos presidentes da câmara e do congresso – ter informado o trâmite de inúmeros projetos aptos a efetivar essa norma, o pedido[14]foi acolhido no sentido de declarar a mora e fixar um prazo de seis meses para sua edição, cujo descumprimento a tornaria de eficácia plena, derrotando as condições impostas pela Constituição:

Mandado de injunção. – Legitimidade ativa da requerente para impetrar mandado de injunção por falta de regulamentação do disposto no par. 7. do artigo 195 da Constituição Federal. – Ocorrência, no caso, em face do disposto no artigo 59 do ADCT, de mora, por parte do Congresso, na regulamentação daquele preceito constitucional. Mandado de injunção conhecido, em parte, e, nessa parte, deferido para declarar-se o estado de mora em que se encontra o Congresso Nacional, a fim de que, no prazo de seis meses, adote ele as providencias legislativas que se impõem para o cumprimento da obrigação de legislar decorrente do artigo 195, par. 7. da Constituição, sob pena de, vencido esse prazo sem que essa obrigação se cumpra, passar o requerente a gozar da imunidade requerida.

A mesma lógica foi empregada em outros precedentes, mas de outra forma. No Mandado de Injunção 283, também de 1991, foi reconhecido que o legislador estava em mora e que, se ultrapassado o prazo acima sem que estivesse promulgada a lei, seria concedida ao impetrante a faculdade de obter contra a União, pela via processual adequada, sentença líquida de condenação à reparação constitucional devida pelas perdas e danos que fosse arbitrados. Foram, de certa forma, decisões pautadas pela teoria não concretista, mas com pequenos traços, ainda incipientes, da teoria concretista individual, na medida em que criavam direitos aos impetrantes.

Conquanto as ideias de fixação de prazo para a fruição do direito e a imputação do dever de sancionar tenham sido inovadoras, não compete ao Poder Judiciário sancionar o legislador por sua mora. Ainda assim, a concessão do mandado de injunção era inócua, pois não resolvia o problema da falta de norma viabilizadora do direito reclamado.

Ainda em 1991, o Ministro Marco Aurélio votava vencido, consignando o entendimento de que “o mandado de injunção foi inserido no rol das garantias fundamentais como meio viabilizador dos direitos constantes da Carta e que dependem de regulamentação”.

Prosseguiu ele:

“Peço vênia aos que assim não entendem para persistir nesta linha de raciocínio (…) Acolho o pedido formulado para, em relação aos aviadores, delimitar a reparação de natureza econômica contemplada no §3º do artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”[15].

E essa sensação de impotência, conjugada com a impaciência da Suprema Corte, começou a se manifestar em suas decisões, especialmente quando era chamado a se manifestar em mandado de injunção concernente a matérias em que já havia sido declarada a mora legislativa.

Firme nesse entendimento, em 2007, o Ministro Marco Aurélio, ao relatar outro caso, o MI 721, reiterou a necessidade de concretização do direito e ressaltou que a utilidade do instrumento mereceria uma nova reflexão. Colhe-se do corpo do acórdão:

“Assento, por isso, a adequação da medida intentada. Passados mais de quinze anos da vigência da Carta, permanece-se com o direito latente, sem ter-se base para o exercício. Cumpre, então, acolher o pedido formulado, pacífica situação da impetrante. Cabe ao Supremo, porque autorizado pela Carta da República a fazê-lo, estabelecer para o caso concreto e de forma temporária, até a vinda da lei complementar prevista, as balizas do exercício do direito assegurado constitucionalmente. (…) É tempo de se refletir sobre a timidez inicial do Supremo quanto ao alcance do mandado de injunção, ao excesso de zelo, tendo em vista a separação e harmonia entre os poderes. É tempo de se perceber a frustração gerada pela postura inicial, transformando o mandado de injunção em ação simplesmente declaratória do ato omissivo, resultando em algo que não interessa, em si, no tocante à prestação jurisdicional, tal como consta no inciso LXXI do artigo 5º da Constituição Federal, ao cidadão”.

Esse caso era referente a servidora pública que ocupava a posição de auxiliar de enfermagem e teve por objeto a regulamentação do artigo 40, §4º, da Constituição. Seu argumento, em síntese, era o de que a ausência de lei inviabilizava o benefício da aposentadoria especial, porquanto os critérios para a fruição do benefício eram inexistentes.

Naquela oportunidade, o Ministro persuadiu os demais colegas a reavaliar a posição da Corte. Foi aí que a teoria concretista finalmente tomou forma no Supremo Tribunal Federal. Os Ministros unanimemente regulamentaram a forma como a aposentadoria especial seria exercida:

“MANDADO DE INJUNÇÃO – NATUREZA. Conforme disposto no inciso LXXI do artigo 5º da Constituição Federal, conceder-se-á mandado de injunção quando necessário ao exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. Há ação mandamental e não simplesmente declaratória de omissão. A carga de declaração não é objeto da impetração, mas premissa da ordem a ser formalizada. MANDADO DE INJUNÇÃO – DECISÃO – BALIZAS. Tratando-se de processo subjetivo, a decisão possui eficácia considerada a relação jurídica nele revelada. APOSENTADORIA – TRABALHO EM CONDIÇÕES ESPECIAIS – PREJUÍZO À SAÚDE DO SERVIDOR – INEXISTÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR – ARTIGO 40, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Inexistente a disciplina específica da aposentadoria especial do servidor, impõe-se a adoção, via pronunciamento judicial, daquela própria aos trabalhadores em geral – artigo 57, § 1º, da Lei nº 8.213/91.”[16]

Viabilizaram, de fato, um direito constitucional que o legislador deixou de atender. Essa quebra de paradigma causou os reflexos esperados.

Após essa decisão, inúmeras pessoas utilizaram esse expediente para ver seus direitos concretizados, a ponto de, no julgamento do Mandado de Injunção 795, o Ministro Joaquim Barbosa, com o pragmatismo que lhe é peculiar, suscitar questão de ordem, orientando que “talvez fosse o caso de o Plenário autorizar o julgamento monocrático em todos, já que todos nós temos dezenas de processos da mesma natureza”. O Ministro Marco Aurélio, no entanto, resistiu, sustentando que “não é possível simplesmente, no calor de um julgamento, assentar-se autorização linear aos Ministros para decidirem, não trazendo o processo ao Colegiado”.

O argumento pragmático foi vencedor, sendo a questão de ordem concedida, prevalecendo no sentido de que os ministros pudessem decidir monocraticamente e efetivamente os casos idênticos. Essa superação do entendimento, fortemente influenciada pelo princípio da máxima efetividade da Constituição, fomentou importante releitura do papel da Corte nas omissões inconstitucionais.

Esse novo ethos ficou ainda mais nítido quando do julgamento dos MI´s 670, 708 e 712, em que se buscava a regulamentação do direito de greve, decorrente da inexistência de lei regulamentando o artigo 37, VII, da Constituição. Esse precedente declarou a mora legislativa e concedeu o mandado de injunção para que os sindicatos impetrantes – representantes de classes vinculadas à Administração Pública – observassem a lei de greve aplicável ao setor privado (Lei n.º 7.783/89).

Chama a atenção que os efeitos dessa decisão não foram oponíveis somente às partes, consagrando, portanto, a teoria concretista geral.

O Ministro Gilmar Mendes explica que “o que se evidencia é a possibilidade de as decisões nos mandados de injunção surtirem efeitos não somente em razão do interesse jurídico de seus impetrantes, estendendo também seus efeitos normativos para os demais casos que guardem similitude. Assim, em regra, a decisão em mandado de injunção, ainda que dotada de caráter subjetivo, comporta uma dimensão objetiva, com eficácia erga omnes, que serve para tantos quantos forem os casos que demandem a concretização de uma omissão geral do Poder Público, seja em relação a uma determinada conduta, seja em relação a uma determinada lei”[17].

Esses, em síntese, são os grandes marcos históricos do instituto na Suprema Corte. Entre essa alteração de paradigma e os dias atuais, a jurisprudência da Suprema Corte se manteve pendular, havendo entre essas três teorias o predomínio atual da teoria concretista individual.

Luciana de Oliveira Ramos[18], em estudo voltado à obtenção do título de Mestre em Ciência Política na Universidade de São Paulo, realizou interessante análise dos casos de omissão legislativa na Constituição entre 1988 e 2009. Em sua dissertação, defendida em 2010, foram apresentados riquíssimos dados – cuja atualização, devido ao aprofundamento do estudo e ao crescimento exponencial das demandas contra a omissão legislativa, é inviável – que demonstram que tanto o mandado de injunção quanto a ação direta de inconstitucionalidade por omissão devem ser tratados com a devida cautela e responsabilidade, porquanto, conforme conclui a autora, a efetividade da Constituição – em alusão às hipóteses em que o Poder Judiciário assume as rédeas legislativas – pode desequilibrar as funções atribuídas aos Poderes.

Segundo seu estudo, 87% das demandas no Supremo Tribunal Federal que questionam omissão legislativa são referentes ao mandado de injunção e 13% são ações diretas de inconstitucionalidade por omissão


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Os temas demandados são diversificados, mas sugerem que a Administração Pública é um dos assuntos mais carentes de regulamentação legislativa:

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Outra informação relevante é a de que o Supremo Tribunal Federal, em grande parte dos Casos – excluídos aqueles em que o mérito não foi apreciado –, é seletivo quanto ao reconhecimento de omissão legislativa:

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Nota-se que o Judiciário, ao fazer as vezes de legislador, realiza normas constitucionais e faz com que as técnicas de controle das omissões passem a ser mais efetivas. É evidente que não é saudável à ordem constitucional que o Poder Judiciário assuma o atributo de legislador, mas, inexistindo a lei e sendo a inércia legislativa pura e simplesmente desidiosa, é louvável que se viabilize, com a devida parcimônia, o exercício do direito aos desamparados pelo poder legiferante.

 Parece intuitivo que o mandado de injunção não se pode restringir a uma mera formalidade, voltada ao vago plano da abstração, sem interagir com a finalidade do instituto. Omissão legislativa foi tema caro ao constituinte, razão pela qual os métodos de suplementação devem ser tratados com a devida seriedade.

3 A REGULAMENTAÇÃO DO MANDADO DE INJUNÇÃO: LEI 13.300/16

Em 2016, o remédio constitucional foi finalmente regulamentado pela Lei 13.300/16. Em sua exposição de motivos, o Deputado Flávio Dino, idealizador da medida, afirma que o projeto foi debatido com alguns ministros da Suprema Corte e que “é inovador nas disposições relativas ao mandado de injunção coletivo, à eventual efeito erga omnes e na previsão de uma ação de revisão da decisão proferida em mandado de injunção ‘quando sobrevierem relevantes modificações das circunstâncias de fato ou de direito”.

O Presidente da República, Michel Temer, chegou a declarar que a lei é “um remédio doce, porque deram ao jurisdicionado a possibilidade de dizer: não impeça o desfrute dos meus direitos. Quando eu pleiteá-los, eu terei a cobertura do Poder Judiciário”[19].

A regulamentação foi polêmica. De um lado, Lênio Streck, por exemplo, tece fortes críticas à regulamentação. Segundo ele, “o judiciário já tem poder demais” e essa regulamentação “pode complicar todo o sistema jurídico”[20]. Por outro, o Ministro Teori Zavascki afirma que “ao Poder Judiciário cumprirá reconhecer a mora legislativa e, se necessário, supri-la provisoriamente, sem comprometer, de forma alguma, a funcionalidade da atuação legislativa”.[21]

Controvérsias à parte, comentar-se-ão os artigos do diploma que provocaram as maiores mudanças no instituto:

Art. 1o  Esta Lei disciplina o processo e o julgamento dos mandados de injunção individual e coletivo, nos termos do inciso LXXI do art. 5o da Constituição Federal.

O mandado de injunção é uma garantia constitucional cuja necessidade de regulamentação é controvertida na doutrina. Uns atribuem ao inciso LXXI eficácia plena, outros limitada. Há, ainda, uma sugestão alternativa, proposta pelo Ministro Luís Roberto Barroso[22], de que o ideal seria uma emenda constitucional que revogasse o inciso e incluísse um parágrafo no artigo 5º, com a seguinte redação:

“§1º As normas definidoras de direitos subjetivos constitucionais têm aplicação direta e imediata. Na falta de norma regulamentadora necessária ao seu pleno exercício, formulará o juiz competente a regra que regerá o caso concreto submetido à sua apreciação, com base na analogia, nos costumes e nos princípios gerais do direito.”

Não obstante, prima facie, seja uma boa proposta, a realidade é que recentemente o Poder Legislativo aprovou projeto de lei que regulamenta o remédio constitucional: a Lei n.º 13.300, de 23 de junho de 2016.

Art. 2º Conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta total ou parcial de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes a nacionalidade, à soberania e à cidadania.
Parágrafo único. Considera-se parcial a regulamentação quando forem insuficientes as normas editadas pelo órgão legislador competente.

O artigo 2º esclarece uma possível dúvida: ainda que a lei tenha sido editada, os jurisdicionados que não foram contemplados podem obter mandado de injunção para ter seus direitos resguardados. Carlos Ari Sundfeld, antes mesmo da lei, defendia que “é possível impetrar mandado de injunção mesmo depois de editada a norma com o objetivo expresso de regulamentar certo direito ou liberdade constitucional, desde que a regulamentação editada não seja suficiente para viabilidade de seu exercício”. Ressalte-se que no histórico da Corte diversos Mandados de Injunção foram rejeitados em razão de o legislador já ter disciplinado, ainda que parcialmente, determinada matéria.

Art. 3º São legitimados para o mandado de injunção, como impetrantes, as pessoas naturais ou jurídicas que se afirmam titulares dos direitos, das liberdades ou das prerrogativas referidos no art. 2º e, como impetrado, o Poder, o órgão ou a autoridade com atribuição para editar a norma regulamentadora.

Não há, de fato, nenhuma alteração nos legitimados, mas tão somente a reiteração de requisitos já contemplados anteriormente.

Art. 4º A petição inicial deverá preencher os requisitos estabelecidos pela lei processual e indicará, além do órgão impetrado, a pessoa jurídica que ele integra ou aquela a que está vinculado.

 § 1º Quando não for transmitida por meio eletrônico, a petição inicial e os documentos que a instruem serão acompanhados de tantas vias quantos forem os impetrados.

 § 2º  Quando o documento necessário à prova do alegado encontrar-se em repartição ou estabelecimento público, em poder de autoridade ou de terceiro, havendo recusa em fornecê-lo por certidão, no original, ou em cópia autêntica, será ordenada, a pedido do impetrante, a exibição do documento no prazo de 10 (dez) dias, devendo, nesse caso, ser juntada cópia à segunda via da petição.

 § 3º  Se a recusa em fornecer o documento for do impetrado, a ordem será feita no próprio instrumento da notificação.

A redação do artigo é clara. Um ponto que chama a atenção é ter antevisto o legislador dificuldade para a obtenção de documentos e permitido que questões burocráticas convivessem no processo.

Art. 5º Recebida a petição inicial, será ordenada:

I – a notificação do impetrado sobre o conteúdo da petição inicial, devendo-lhe ser enviada a segunda via apresentada com as cópias dos documentos, a fim de que, no prazo de 10 (dez) dias, preste informações;

II – a ciência do ajuizamento da ação ao órgão de representação judicial da pessoa jurídica interessada, devendo-lhe ser enviada cópia da petição inicial, para que, querendo, ingresse no feito.

Art. 6º A petição inicial será desde logo indeferida quando a impetração for manifestamente incabível ou manifestamente improcedente.

Parágrafo único. Da decisão de relator que indeferir a petição inicial, caberá agravo, em 5 (cinco) dias, para o órgão colegiado competente para o julgamento da impetração.

Art. 7º  Findo o prazo para apresentação das informações, será ouvido o Ministério Público, que opinará em 10 (dez) dias, após o que, com ou sem parecer, os autos serão conclusos para decisão.

Antes mesmo dessa disposição, o Ministério Público já opinava em mandados de injunção em razão de o procedimento ser, em alguns pontos, semelhante ao do mandado de segurança. O “com ou sem” do dispositivo demonstra que o parecer do Ministério Público é dispensável, caso este opte por não se manifestar.

Art. 8º  Reconhecido o estado de mora legislativa, será deferida a injunção para:

I – determinar prazo razoável para que o impetrado promova a edição da norma regulamentadora;

II – estabelecer as condições em que se dará o exercício dos direitos, das liberdades ou das prerrogativas reclamados ou, se for o caso, as condições em que poderá o interessado promover ação própria visando a exercê-los, caso não seja suprida a mora legislativa no prazo determinado.

Parágrafo único. Será dispensada a determinação a que se refere o inciso I do caput quando comprovado que o impetrado deixou de atender, em mandado de injunção anterior, ao prazo estabelecido para a edição da norma.

Note-se que o legislador criou dois comandos de tratamento à omissão legislativa: (i) o primeiro inciso retoma a posição assumida pelo Supremo Tribunal Federal em 1991, associada à ideia não concretista, de que a decisão deve necessariamente determinar um prazo razoável para que a norma seja editada; (ii) o segundo inciso cria duas alternativas. A primeira delas estabelece a ideia de que o magistrado regulará a forma como os direitos poderão ser efetivados, tal como o foi na quebra de paradigma em 2007 (teoria concretista), remontando a segunda à posição do Supremo, também de 1991, de que a decisão reconhece a mora e não regulamenta o direito, mas cria uma expectativa de direito a ser obtida mediante outra ação futura, caso o prazo fixado seja descumprido.

O legislador, portanto, confere ao Poder Judiciário uma posição mais ativa no que tange às omissões constitucionais. Não é, de fato, uma alteração tão expressiva no ordenamento jurídico brasileiro. O artigo reflete a posição atual do Supremo e apenas coordena e sistematiza as formas já utilizadas quando do manejo desse remédio constitucional.

Art. 9º  A decisão terá eficácia subjetiva limitada às partes e produzirá efeitos até o advento da norma regulamentadora.

 § 1º  Poderá ser conferida eficácia ultra partes ou erga omnes à decisão, quando isso for inerente ou indispensável ao exercício do direito, da liberdade ou da prerrogativa objeto da impetração.

 § 2º  Transitada em julgado a decisão, seus efeitos poderão ser estendidos aos casos análogos por decisão monocrática do relator.

 § 3º  O indeferimento do pedido por insuficiência de prova não impede a renovação da impetração fundada em outros elementos probatórios.

Essa é, talvez, uma das alterações mais substanciais do texto, ou seja, a lei estabelece que os efeitos da decisão proferida em mandado de injunção possam ter efeitos oponíveis a todos.

Mas a regulamentação deixou dúvidas. Um ponto que certamente requer maiores reflexões é a redação do §1º. O parágrafo sugere que os efeitos ultra partes ou erga omnes sejam indispensáveis para que o impetrante possa desfrutar a decisão. Curiosamente, as teorias concretistas (geral e individual) possuem um ponto de intersecção nesse dispositivo.

O §3º reflete o entendimento do Ex-Ministro Joaquim Barbosa quando do julgamento da Questão de Ordem no Mandado de Injunção aludida anteriormente, porquanto o relator está autorizado a decidir monocraticamente quando outros casos análogos já tenham sido julgados.

Art. 10. Sem prejuízo dos efeitos já produzidos, a decisão poderá ser revista, a pedido de qualquer interessado, quando sobrevierem relevantes modificações das circunstâncias de fato ou de direito.

Parágrafo único. A ação de revisão observará, no que couber, o procedimento estabelecido nesta Lei.

O direito e a realidade conversam neste artigo. Quis o legislador, com esse dispositivo, que decisões obsoletas possam ser revistas.

Art. 11.  A norma regulamentadora superveniente produzirá efeitos ex nunc em relação aos beneficiados por decisão transitada em julgado, salvo se a aplicação da norma editada lhes for mais favorável.

Parágrafo único.  Estará prejudicada a impetração se a norma regulamentadora for editada antes da decisão, caso em que o processo será extinto sem resolução de mérito.

A norma regulamentadora pode ser editada em dois marcos: (i) entre o ajuizamento e a decisão proferida em mandado de injunção, que, consequentemente, acarretará a perda do objeto do mandado de injunção e (ii) após a concessão do mandado de injunção. Este artigo se presta a regular os efeitos temporais da regulamentação do direito nos casos em que o mandado de injunção foi concedido.

Art. 12.  O mandado de injunção coletivo pode ser promovido:

I – pelo Ministério Público, quando a tutela requerida for especialmente relevante para a defesa da ordem jurídica, do regime democrático ou dos interesses sociais ou individuais indisponíveis;

II – por partido político com representação no Congresso Nacional, para assegurar o exercício de direitos, liberdades e prerrogativas de seus integrantes ou relacionados com a finalidade partidária;

III – por organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos 1 (um) ano, para assegurar o exercício de direitos, liberdades e prerrogativas em favor da totalidade ou de parte de seus membros ou associados, na forma de seus estatutos e desde que pertinentes a suas finalidades, dispensada, para tanto, autorização especial;

IV – pela Defensoria Pública, quando a tutela requerida for especialmente relevante para a promoção dos direitos humanos e a defesa dos direitos individuais e coletivos dos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5o da Constituição Federal.

Parágrafo único. Os direitos, as liberdades e as prerrogativas protegidos por mandado de injunção coletivo são os pertencentes, indistintamente, a uma coletividade indeterminada de pessoas ou determinada por grupo, classe ou categoria.

O parágrafo único é, de certa forma, redundante. A norma constitucional de eficácia limitada é pressuposto do mandado de injunção. Nessa condição, os direitos, as liberdades e as prerrogativas devem sempre ser aplicáveis de forma indeterminada.

Art. 13. No mandado de injunção coletivo, a sentença fará coisa julgada limitadamente às pessoas integrantes da coletividade, do grupo, da classe ou da categoria substituídos pelo impetrante, sem prejuízo do disposto nos §§ 1º e 2º do art. 9º.

Parágrafo único.  O mandado de injunção coletivo não induz litispendência em relação aos individuais, mas os efeitos da coisa julgada não beneficiarão o impetrante que não requerer a desistência da demanda individual no prazo de 30 (trinta) dias a contar da ciência comprovada da impetração coletiva.

O mandado de injunção coletivo observa as disposições aplicáveis ao individual, com a ressalva de que não há litispendência com relação ao segundo e que, se o impetrante pretende obter os efeitos da demanda coletiva, deve requerer em trinta dias a desistência da demanda individual.

Art. 14.  Aplicam-se subsidiariamente ao mandado de injunção as normas do mandado de segurança, disciplinado pela Lei no 12.016, de 7 de agosto de 2009, e do Código de Processo Civil, instituído pela Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973, e pela Lei no 13.105, de 16 de março de 2015, observado o disposto em seus arts. 1.045 e 1.046.

O comando é autoexplicativo e reflete o que já era praticado, deixando expressa a subsidiariedade do mandado de injunção à Lei do Mandado de Segurança e ao Código de Processo Civil.

Art. 15.  Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Os efeitos, os sujeitos e as hipóteses de cabimento do mandado de injunção previstos pela Lei 13.300/16 têm fortíssima identidade com todos os elementos rudimentares já consolidados pelo Supremo Tribunal Federal. Quis o legislador, aparentemente, com os artigos 8º e 13º, consolidar a efetividade do instituto e o tornar mais acessível, na medida em que prescreve como é operacionalizado o procedimento. Consolidou-se a teoria concretista e foi racionalizada a interação entre a função judicial e legislativa. Embora não represente uma alteração revolucionária, a lei é um progresso na construção de um processo constitucional que possibilita possível expansão de direitos e garantias constitucionais.

Há, talvez, com a regulamentação, um apelo psicológico por sua utilização para concretizar direitos, uma vez que o procedimento expresso na lei o torna mais palpável e pode servir como maior incentivo àqueles carentes de regulamentação de normas de eficácia limitada.

Em que pese à lei ter sido editada quase trinta anos após a promulgação da Constituição, já com um certo amadurecimento do mandado de injunção, o que se observa é que não há nenhuma inovação legislativa que altere de forma tão substancial a operacionalização do mandado de injunção. Inexistem, de fato, razões para o alarde noticiado.

4 SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

O presente artigo tem por objetivo o estudo do mandado de injunção em matéria tributária. O que se quer aqui é conhecer esse remédio constitucional e seus desdobramentos quando o assunto é tributação.

Oportuno tecer, portanto, breves considerações sobre o que é o Sistema Tributário Nacional e sobre os tipos de normas que o integram.

Em primeiro lugar, destaca-se que sistema não se confunde com ordenamento. Ordenamento é o direito positivo bruto, contempla todos os atos normativos constitucionais, infraconstitucionais e infralegais convertidos em linguagem competente do direito positivo, apto a produzir efeitos jurídicos. É o direito posto, como um todo.

O sistema é dinâmico. Possui estrutura hierarquizada, pautada na derivação, e regula como ele mesmo cria e se transforma. Cristiano Carvalho, em sua obra Teoria do Sistema Jurídico, conceitua sistema como “todo conjunto de elementos que se relacionam entre si segundo sua própria estrutura”[23].

Sobre o sistema do direito, Paulo de Barros Carvalho explica que “todas as normas do sistema convergem para um único ponto – a norma fundamental –, que dá fundamento de validade à constituição positiva”. Segundo o autor, “sua existência imprime, decisivamente, caráter unitário ao conjunto, e a multiplicidade de normas, como entidades da mesma índole, lhe confere o timbre de homogeneidade.“[24]

Poder-se-ia pensar, como defendem alguns, que o direito pode, por vezes, conter elementos contraditórios, não se amoldando ao conceito de sistema. Ocorre que, apesar de invariavelmente todos os sistemas possuírem uma constituição estrutural que possa conviver de forma minimamente harmônica, aludida sistematicidade pode ser relativa, pois, como ensina Tarek Moysés Moussalem, “falar em conflito ou incoerência só tem sentido se for no interior de um mesmo sistema, conflitos intersistêmicos são extralógicos”[25].

Nesse cenário, figura a Constituição como base do sistema, onde o subsistema tributário constitucional está contido. Aludido sistema é composto pelo quadro de normas que disciplinam a matéria tributária na Constituição. Sua relação é horizontal, e sua coordenação não observa hierarquia. Nele estão compreendidas, predominantemente, normas de estrutura, conforme explica Paulo de Barros Carvalho:

“Ainda que nele seja maior a incidência das regras de estrutura, não faltam aquelas que se dirigem, frontalmente, à disciplina de conduta, exprimindo-se, prescritivamente, nos modais deônticos permitido, obrigado e proibido.
Pertencendo ao estrato mesmo da Constituição, da qual se destaca por mero expediente lógico de cunho didático, o subsistema constitucional tributário realiza as funções do todo, disposto sobre os poderes capitais do Estado, no campo da tributação, ao lado de medidas que asseguram as garantias imprescindíveis à liberdade das pessoas ,diante daqueles poderes. Empreende, na trama normativa, uma construção harmoniosa e conciliadora, que visa a atingir o valor supremo da certeza, pela segurança das relações jurídicas que se estabelecem entre Administração e administrados”.[26]

A Constituição intitula como Sistema Tributário Nacional as disposições contidas no capítulo I do Título VI, que vão do artigo 145 ao 156. Não são, porém, somente esses artigos que integram o Sistema Constitucional Tributário, senão todos os dispositivos constitucionais que, de alguma forma, disciplinam a relação tributária.

É aqui que o tópico assume relevo para o presente estudo. O sistema regula o modo como os entes políticos podem ingressar na vida do contribuinte para deles exigir um tributo e é composto por três grandes grupos normativos: o primeiro deles, entendido como as normas de competência ou de estrutura, representa as normas gerais e abstratas que regulam como outras normas devem ou podem ser inseridas no sistema. São, para todos os efeitos, normas voltadas a outras normas. O segundo grupo é constituído pelas normas de conduta e se presta a regular situações, definindo os critérios necessários para que o fato se torne jurídico, o objeto da prestação e os sujeitos da relação jurídica. Nas palavras de Paulo de Barros, tem por “objetivo final ferir de modo decisivo os comportamentos interpessoais, modalizando-os deonticamente como obrigatórios (O), proibidos (V) e permitidos (P), com o que exaurem seus propósitos regulativos. Essas regras, quando satisfeito o direito subjetivo do titular por elas indicado, são terminativas de cadeias de normas”.[27]

O último grupo coexiste com o grupo anterior e é composto pelas normas individuais e concretas. Consiste num enunciado normativo referente a um evento concreto ocorrido e relatado em linguagem competente. Percebe-se que o primeiro e o terceiro grupo, que regulam a imposição tributária, são os que possuem o maior número de normas.

A aplicação do direito observa, sempre, um itinerário. Em regra, as normas gerais e abstratas estão sempre num plano superior e percorrem um caminho de concretização e individualização até que se possa, finalmente, identificar os sujeitos e instaurar a relação-jurídico tributária. E é justamente nesse processo que as falhas do legislador se encontram, porquanto o processo de positivação é demasiadamente complexo e a capacidade legislativa – em termos de agilidade e quantidade – insuficiente para perfectibilizar o sistema idealizado pelo constituinte.

Parte-se, então, para a análise de quando e como essas lacunas podem ser preenchidas pelo mandado de injunção.

5 CONCLUSÃO: O MANDADO DE INJUNÇÃO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

Direito é fato e norma. Nesta ordem. O grande horizonte do aplicador do direito deve ser sempre a função das coisas. Não existe direito fora do contexto. O direito não pode ser pensado como um sistema autossuficiente, fechado, autopoiético, perfeito. É o ser humano que, conhecendo o ordenamento jurídico e os fatos que lhe estão disponíveis no átimo do ato interpretativo, cria linguagem competente e alimenta o direito positivo.

Essa consideração inicial, totalmente tangencial ao tópico em tela, é importante para a compreensão de que, apesar de não se concordar com o entendimento consolidado pela Suprema Corte em 1989 – de que o Mandado de Injunção se presta somente a declarar a mora –, a decisão não concretista foi adequada ao momento histórico do País.

É que naquela ocasião o Supremo Tribunal Federal deveria decidir uma questão polêmica não só por ser: (i) pioneira no sistema constitucional brasileiro, mas que (ii) abalaria, ao menos potencialmente, o sistema de freios e contrapesos dos três poderes, (iii) proferida um ano após a instauração de uma nova ordem constitucional, (iv) advinda na sequência de uma época de delicada estabilização política e que, (v) considerando o número de normas de eficácia limitada e as condições do legislador de regulamentar todas elas, certamente criaria um precedente que estimularia demasiadamente a utilização desse expediente e demonstraria, ainda, (iv) ser uma instituição segura, (vii) que respeitaria o Poder Legislativo e que, por corolário lógico, (viii) contribuiria para a consolidação democrática.

Todos esses elementos, conjuntamente considerados, sugerem que essa era a melhor solução a ser dada por esse remédio constitucional naquele momento. Acontece, todavia, que os tempos são outros.

A experiência constitucional brasileira a partir de 1988 demonstra que ainda hoje normas relativamente simples, especialmente em Direito Tributário, não foram editadas. Ou foram, mas estão desatualizadas, são antiquadas e/ou incapazes de cumprir sua função. O ordenamento tributário brasileiro, entendido como o plexo de normas tributárias, constitucionais, infraconstitucionais e infralegais, é de extrema prolixidade. A capacidade de a lei se adaptar à realidade e o poder de reação do ordenamento brasileiro é muito baixo.

A premissa inicial, indispensável para a compreensão da conclusão dada ao mandado de injunção, é que o Direito deve ser pensado de fora para dentro, considerando não só a estrutura, mas também sua função.

Conquanto nada possa ser feito fora do Direito, o que se vê é que se chama de direito aquilo que é solução razoável, a necessidade. E, ao fazer isso, os beneficiários do produto judicial não encontram a coerência, as premissas que levam o julgador a uma conclusão, em outro contexto, levam a outra. É a falsa sensação de que fatores estranhos ao direito não são levados em consideração.

Observe-se, como exemplo, para ilustrar a assertiva, a solução – por suas razões de decidir – dada a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1946, em que se discutia se o artigo 14 da EC 20 de 1998, que estipulava como R$1200,00 o limite máximo para o valor do regime geral de previdência social relativo a licença gestante. Estaria a licença gestante sujeita ao teto de R$1.200,00? Essa era a dúvida.

O caso supera barreiras, não só por reconhecer a inconstitucionalidade de uma emenda à Constituição, como também por consignar que outros elementos possam ser levados em consideração para interpretar a lei. No caso, o “acesso da mulher ao mercado de trabalho” foi responsável pela leitura do dispositivo: Observe-se o que foi decidido:

“Na verdade, se se entender que a Previdência Social, doravante, responderá apenas por R$1.200,00 (hum mil e duzentos reais) por mês, durante a licença da gestante, e que o empregador responderá, sozinho, pelo restante, ficará, sobremaneira, facilitada e estimulada a opção deste pelo trabalhador masculino, ao invés da mulher trabalhadora.

Estará, então, propiciada a discriminação que a Constituição buscou combater, quando propiciou diferença de salários, de exercício de funções e de critérios de admissão, por motivo de sexo (art. 7º, inc. XXX, da C.F./88), proibição, que, em substância, é um desdobramento do princípio da igualdade de direitos entre homens e mulheres, previsto no inciso I do art. 5º da Constituição Federal. Estará, ainda, conclamado o empregador a aptidões, salário nunca superior a R$1.200,00, para não ter de responder pela diferença.”

O que está em pauta, impõe-se a conclusão, não se resume à eficiência do teto constitucional. Está em questão, também, a inclusão da mulher no mercado de trabalho, valor este também constitucional. O argumento econômico compõe a retórica judicial e faz parte do caminho percorrido para resolver o conflito.

É o julgador, dentro de seu âmbito de atuação, preocupado com a função de seu julgamento. Apesar de isso nem sempre constar da fundamentação da decisão – o que é um grande problema, diga-se de passagem –, quase sempre está presente no ato decisório, em maior ou menor escala. Basta sair dos livros e visitar uma sessão de julgamento em qualquer tribunal para perceber isso.

Em paralelo, seria uma análise míope desconsiderar os méritos da academia em busca de métodos hermenêuticos que permitam transitar entre o ordenamento jurídico e a solução para os casos em que o direito é insuficiente ou conflitante (hard cases), mantendo-se a coerência sistêmica. Existem, evidentemente, pontos de partida que fornecem excelentes arcabouços interpretativos aptos a viabilizar que a leitura da lei seja sistêmica, dinâmica e harmônica.

A forma de adaptação constitucional e legal passa por processos legislativos complexos e desgastantes, cuja velocidade de edição é desproporcional à necessidade cotidiana dos contribuintes. Como comentado por Cristiano Carvalho, “o processo de adequação da Constituição Brasileira à ordem social passa a ser deveras ineficiente, pois o Judiciário acaba ficando preso às acepções possíveis da linguagem. Uma coisa é adaptar temas como liberdade, igualdade e devido processo legal aos fatos sociais, como ocorre nas constituições principiológicas, outra é tentar adaptar termos como imunidade tributária do “livro” e “papel destinado a sua impressão”, ou “templo de qualquer culto”, etc., à realidade sempre em mutação.”[28]

A solução – assumida, aqui, como aquilo que se exprime como desejado pelo ordenamento jurídico – não se encontra puramente na lei, mas no processo construído no eixo paradigmático do tempo em busca da função do instituto. A linha proposta busca evitar que a intenção do constituinte seja fulminada, tal qual houvesse palavras órfãs, propiciando que as normas constitucionais sejam efetivadas.

Abrem-se outros parênteses para destacar que são quatro as teorias que explicam a abrangência do mandado de injunção: (i) restritiva, (ii) intermediária, (iii) ampla e (vi) amplíssima.

Em resumo, a restritiva encerra a ideia de que a expressão “inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania” e restringe o uso do mandado de injunção aos direitos constitucionais inscritos no artigo 5º ou no capítulo relativo à nacionalidade (Capítulo III do Título II). A intermediária entende que o mandado de injunção decorre do princípio da máxima efetividade das normas fundamentais e que somente direitos fundamentais podem ser tutelados. A ampla é a predominante na doutrina e sustenta que o mandado de injunção tem como objeto o exercício de direitos individuais, coletivos, políticos ou sociais, bem como assegurar o exercício das liberdades e prerrogativas não regulamentadas. Ressalte-se que esse entendimento predomina também na Suprema Corte[29]. A última, mais ampla, entende que até mesmo leis derivadas diretamente da Constituição que disciplinem direitos ou prerrogativas constitucionais possam ser objeto de injunção.

Assimiladas as premissas até então construídas, passar-se-á à análise de alguns casos diversificados de omissão legislativa em Direito Tributário e, a partir daí, à sugestão dos elementos necessários à concessão do mandado de injunção.

  • CASO 1: ADEQUADO TRATAMENTO TRIBUTÁRIO ÀS COOPERATIVAS

A Constituição diz o seguinte:

Art. 146. Cabe à lei complementar:
(…)

III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
(…)

c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.

Sobre a tratativa do adequado tratamento tributário, o Ministro Moreira Alves, quando do julgamento do RE 141.800/SP, reconheceu que aludida lei complementar ainda não foi editada. Existem, hoje, instruções normativas esparsas da Receita Federal e a Lei n.º 5.764/71, que disciplina o assunto da seguinte forma:

Art. 79. Denominam-se atos cooperativos os praticados entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associados, para a consecução dos objetivos sociais.

Parágrafo único. O ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria.

“Art. 86. As cooperativas poderão fornecer bens e serviços a não associados, desde que tal faculdade atenda aos objetivos sociais e estejam de conformidade com a presente lei.
Art. 87. Os resultados das operações das cooperativas com não associados, mencionados nos artigos 85 e 86, serão levados à conta do “Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social” e serão contabilizados em separado, de molde a permitir cálculo para incidência de tributos.
Art. 111. Serão considerados como renda tributável os resultados positivos obtidos pelas cooperativas nas operações de que tratam os artigos 85, 86 e 88 desta Lei.”

Basta ler os artigos para concluir por sua insuficiência para atender à complexidade do ato cooperado. Com gabarito no assunto, Renato Lopes Becho explica que “a análise sistemática do texto constitucional tem o valor de demonstrar que a norma reconhecedora da necessidade de elaboração de uma legislação reguladora do tratamento tributário dado Às cooperativas (art. 146, III, c) não pode ser vista isoladamente, mas inserida numa sistemática de normas de apoio a tais associações.”[30]

A obra[31] apresenta, ainda, um tópico destinado ao exclusivo comentário de alguns “problemas tributários enfrentados pelas cooperativas”[32].

Existem, hoje, treze modelos de negócios no formato de cooperativas com realidades diametralmente distintas. A legislação não chega nem perto de fornecer uma solução adequada para todas as diversidades do ato cooperado. Poder-se-ia pensar que o problema seria revolvido pelas resolveria a questão em sede de Repercussão Geral e/ou pela sistemática de Recursos Repetitivos.
Isso, de fato, aconteceu. Transcorridos anos de espera, após o assunto ter-se exaurido em instâncias inferiores e haver sido enfrentado por todo o Poder Judiciário, foi dada uma solução final no RE 599.362/RJ, submetido ao rito de Repercussão Geral.

A decisão, no entanto, não viabiliza o direito constitucional ao adequado ato cooperado. Observe-se o debate dos ministros sobre o assunto. O relator do caso, Ministro Luís Roberto Barroso, inicialmente, situa a controvérsia:

“A afirmação do acórdão recorrido foi no sentido de que os atos cooperativos próprios não geram receita ou faturamento, razão pela qual não estão sujeitos à incidência do PIS. Antes de avançar sobre as razões de decidir, esclareço que a pretensão será enfrentada sob a ótica de três questões centrais: (i) percepção de receita por sociedades cooperativas; (ii) o conteúdo do adequado tratamento tributário; e (iii) a questão relativa aos atos cooperativos próprios e não próprios à luz das diferentes modalidades de cooperativas.

Ao declarar seu voto, iniciou-se o debate:

O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX – Senhor Presidente, apenas uma pequena observação: a leitura desse artigo 79 é basicamente uma norma in procedendo para as cooperativas; tem como destinatário uma cooperativa. Então, o legislador está concitando a cooperativa a não praticar atos de comércio. Ela não está dizendo, porque a lei não pode mudar uma realidade. A lei dizer: as cooperativas não praticam atos de comércio, e, se elas praticarem atos de comércio por força da lei, ela não praticou atos de comércio? Isso seria uma ficção jurídica? Eu entendo que não. O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO – Não, a Lei criou, com o artigo 79, a ideia de que os atos intra… O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX – Não, eu sei, mas eu acho que a norma in procedendo é como que avisando a cooperativa: “olha, você, para ser cooperativa, para ter o tratamento privilegiado, não me pratique atos de comércio”. Essa é a ratio essendi do dispositivo, no meu modo de ver.

Após longo debate acerca dessas questões, o advogado da Organização das Cooperativas Brasileiras intervêm em razão de o objeto discutido não estar claro:

O SENHOR JOÃO CAETANO MUZZI FILHO (ADVOGADO) – Excelência, Senhor Presidente, só para esclarecimento de uma situação de fato: é que, a teor do avançar do julgado, nos parece, até para a organização das cooperativas brasileiras se pontuar em relação ao tema, até internamente, que Sua Excelência, o Ministro Toffoli, entende que o ato cooperativo típico não seria tributado, e o ato não cooperativo, ou atípico, seria tributado regularmente pelo PIS e pela COFINS. Entendi que os atos internos não seriam tributados e os atos externos seriam tributados. O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX – Assim eu também. O SENHOR JOÃO CAETANO MUZZI FILHO (ADVOGADO) – Isso. E aí, só para entender quais seriam esses atos internos e os atos externos, em uma cooperativa de trabalho médico, aquilo que ela faz em prol do seu corpo social, repassando a produção para ele, seria o ato interno; aquilo que ela faz em prol não do seu corpo social, ou não repassa a produção para ele, seria seu ato externo. Seria isso, Excelência?
O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX – É isso, é isso, é isso.
O SENHOR JOÃO CAETANO MUZZI FILHO (ADVOGADO) – É isso? O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) – Nem sei se nós deveríamos entrar nessa exegese tão profunda assim. O que eu estou entendendo, como Presidente da Sessão, é que o que o Relator afirmou, tout court, como diz o francês, é o seguinte: incide o PIS/PASEP sobre atos, negócios jurídicos, praticados pela impetrante com terceiros tomadores de serviço, objeto da impetração, resguardadas as exclusões e deduções legalmente previstas; ponto. Essa é a tese.                      
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) – O Tribunal se debruça sobre um caso em particular, sobretudo em se tratando de um recurso extraordinário. De maneira que a decisão está circunscrita a este caso e, claro que, na repercussão geral, procura-se extrair uma tese mais ampla. Mas é assim que procedemos, e acho que a tese foi devidamente descrita e circunscrita pelo eminente Relator.
O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO – A única tese que eu defendo é que tem de ter uma tese, fora isso….. A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA – Apenas tenho sempre muito cuidado, Presidente, para que sejamos minimalistas no que se refere ao objeto específico dos pedidos formulados. Então, não por discordar do Ministro Barroso, absolutamente, apenas, neste momento, dou provimento ao recurso, com os mesmos fundamentos apresentados pelo Ministro Dias Toffoli, pelo Ministro Luiz Fux, mas a súmula a ser apresentada, parece-me que seria adequado que ficássemos nestes termos… O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO – Não, Ministra Cármen, eu também estou de acordo que, numa situação controvertida como esta, a tese seja minimalista. A mim me pareceu importante fazer uma distinção entre cooperativas de serviço e de produção … A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA – E de produção. O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO – …., porque eu acho que a dinâmica econômica delas é completamente diferente. E, se nós afirmarmos uma tese, em recursos que envolvem cooperativas de serviços, e ela puder ser estendida às cooperativas de produção, eu acho que se produzirá um resultado errado e indesejável, e ninguém defendeu esse argumento.O SENHOR MINISTRO TEORI ZAVASCKI – Senhor Presidente, eu gostaria de salientar que a tese do Ministro Barroso é contrária à tese do Ministro Dias Toffoli, e à minha própria, na medida em que a própria Constituição dispõe que dar-se-á tratamento adequado ao ato cooperativo, mas que dar-se-á um tratamento tributário. De modo que, se há o tratamento tributário, não é hipótese de não incidência. O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO – Mas aqui é hipótese do ato cooperativo típico e do ato praticado pela cooperativa. Mas, então, Vossa Excelência entende que esse artigo 79, aconteceu o que com ele? Foi revogado pelo dispositivo que revogou as isenções? Mas isso não é uma isenção. O SENHOR MINISTRO TEORI ZAVASCKI – Não aconteceu nada. Ele não trata de isenção ou imunidade. Ele apenas define ato cooperativo. Ele não cria uma hipótese de não incidência. O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) – Pode ter um tratamento mais favorável, mas será sempre um tratamento tributário. Este ato é definido no artigo 79.

A decisão, sob o ponto de vista jurídico, está perfeita. É sofisticada, rica em detalhes, resolve o caso. Agora, em termos de eficiência, pela perspectiva dos outros contribuintes, realmente não atende aos anseios dos cooperados. O que se vê, nesse debate, é a dificuldade enfrentada na fixação da tese e, se analisados seus termos sob o ponto de vista pragmático, o não atendimento ao reclamo constitucional de um ato cooperado adequado. A solução esperada pelas cooperativas foi novamente frustrada.
Todos, diariamente, consomem produtos e/ou serviços fornecidos por cooperativas e, invariavelmente, terão os preços dos bens e serviços afetados por essa decisão – na medida que a tributação é voltada ao consumo. A ênfase se presta a demonstrar a relevância do âmbito nacional e os potenciais efeitos que a falta de disciplina causa.

Acrescente-se que o STJ também já enfrentou o tema afetado pela sistemática dos recursos repetitivos e, ainda assim, o Poder Judiciário, os Conselhos de Contribuintes Fiscais Municipais, Estaduais e Federais e os contribuintes não conseguem encontrar um denominador comum. Há, neste segmento, muita dificuldade para manejar a tributação do ato cooperado.

Os próprios ministros consignaram, no aludido voto, que “ao que parece, o tratamento adequado eleito pelo Fisco não é o tratamento pretendido pelas cooperativas. Se há algum ajuste a ser promovido, evidentemente, o Supremo Tribunal Federal não é o locus adequado para tanto. Neste particular, destaco que a Corte possui precedentes assentando que a definição do adequado tratamento tributário previsto no art. 146, III, c, da CF/88 insere-se no âmbito de atuação do legislador”.

A constituição reforça a importância das cooperativas não só no artigo 146, mas no 174:

Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

 § 2º A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo.

Ora, se a própria Corte reconhece a (i) omissão legislativa, (ii) que não é sua atribuição disciplinar o assunto em repercussão geral, (iii) que o ato cooperado é carente de regulamentação e (iv) que o legislativo está em mora, como pode prevalecer o entendimento de que não é possível a concessão de mandado de injunção?

“MANDADO DE INJUNÇÃO – OBJETO. O mandado de injunção pressupõe a inexistência de normas regulamentadoras de direito assegurado na Carta da República. Isso não ocorre relativamente às sociedades cooperativas e ao adequado tratamento tributário previsto na alínea “c” do inciso III do artigo 146 da Constituição Federal.”

Colhe-se do voto que uma das premissas deduzidas no entendimento supra foi a de que “o mandado de injunção pressupõe não a insuficiência de disciplina, mas o fato de esta não haver ocorrido, ficando assim inviabilizado o exercício de direito.”

Chegou a hora de a Suprema Corte rever seu posicionamento quanto ao papel que desempenha no mandado de injunção em matéria tributária e conferir maior efetividade às normas constitucionais em ocasiões em que a disciplina é insatisfatória. Acrescente-se que a Lei 13.300/16 quis que evitar que o mandado de injunção fosse prejudicado pela edição de leis que não atendam integralmente ao comando constitucional:

Art. 2º Conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta total ou parcial de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes a nacionalidade, à soberania e à cidadania.
Parágrafo único. Considera-se parcial a regulamentação quando forem insuficientes as normas editadas pelo órgão legislador competente.

Discorda-se, portanto, em especial com essa inovação legislativa, do entendimento defendido no Mandado de Injunção 701. Ainda que se considere que a decisão em Repercussão Geral e o artigo 79 da Lei das Cooperativas atendem ao reclamo por adequado tratamento tributário do artigo 146 da Constituição às cooperativas de serviços, outros modelos de cooperativas (rural, energia, eletrificação rural e produtos) podem valer-se desse expediente para disciplinar a tributação do ato cooperado.

CASO 2: OBRIGATORIEDADE DOS CONTRIBUINTES SUJEITOS AO LUCRO REAL AO RECOLHIMENTO DO PIS E DA COFINS PELA SISTEMÁTICA CUMULATIVA

O segundo caso é mais polêmico. Trata dos contribuintes optantes ou obrigados a recolher seus tributos pelo lucro real e sua vinculação à sistemática cumulativa de PIS e COFINS.

Aludidas contribuições possuem como norma de fundamento constitucional o artigo 195 da Constituição. Destacam-se os trechos do artigo necessários para a compreensão do tema:

Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: (Vide Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

b) a receita ou o faturamento; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

 § 9º As contribuições sociais previstas no inciso I do caput deste artigo poderão ter alíquotas ou bases de cálculo diferenciadas, em razão da atividade econômica, da utilização intensiva de mão-deobra, do porte da empresa ou da condição estrutural do mercado de trabalho.

 § 12. A lei definirá os setores de atividade econômica para os quais as contribuições incidentes na forma dos incisos I, b; e IV do caput, serão não-cumulativas.

 § 13. Aplica-se o disposto no § 12 inclusive na hipótese de substituição gradual, total ou parcial, da contribuição incidente na forma do inciso I, a, pela incidente sobre a receita ou o faturamento.

Conforme visto, a lei definirá os setores da atividade econômica para os quais as contribuições incidentes na forma dos incisos I, b, e IV, caput, serão não-cumulativas. O valor escondido pelo comando é evidente: quis-se que o legislador evitasse a incidência em cascata do tributo, viabilizando àqueles setores produtivos plurifásicos, com menor margem de valor agregado, desfrutar os créditos decorrentes dos insumos indispensáveis a sua atividade.

O legislador, em atendimento a esse comando, anteviu que a obrigatoriedade à não cumulatividade prejudicaria os prestadores de serviços em geral (não só eles são prejudicados pela medida), porquanto sua rede de créditos é menor do que a dos setores produtivos industriais. Assim, em obediência ao comando constitucional, procedeu à exclusão de alguns contribuintes da submissão a não cumulatividade, disciplinando os artigos 8º da Lei n.º 10.637/02 e 10 da Lei n.º 10.833/03.

Sobre a possibilidade de a lei se adaptar à realidade, Paulo de Barros Carvalho explica que “caberá à legislação de cada tributo, tomando em consideração as notas singulares das diversas classes de sujeitos passivos, eleger fatos distintos que sejam hábeis para atender às especifidades dos casos submetidos à imposição, de tal maneira que se mantenha a correspondente equivalência entre as múltiplas situações empíricas sobre as quais haverá de incidir a percussão tributária.”[33].

O rol de contribuintes escolhidos pelo legislador, por mais extenso que seja, foi incapaz de contemplar todas as situações em que o PIS e a COFINS não cumulativos seriam prejudicial aos prestadores de serviço. Diante disso, os contribuintes insatisfeitos com esse cenário provocaram o Poder Judiciário. Veja-se a interessante interpretação conferida pelo desembargador Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira quando do julgamento da matéria[34]:

“Esse rol não é exaustivo, nem pode sê-lo, porque o universo das empresas prestadoras de serviços é crescente e quase inesgotável (é, provavelmente, o setor da economia em maior crescimento) e o critério adotado pelo legislador leva, inevitavelmente, a lacunas de regulamentação. A hipótese é da chamada lacuna oculta de regulamentação que ocorre, no dizer de Karl Larenz, naqueles casos “em que se faz sentir a falta na lei duma “ordenação de vigência negativa”, portanto, duma regra restritiva. A lacuna não é aqui patente, mas está oculta, porque existe uma regra positiva dentro da qual cabe a situação de facto; falta todavia a esperada restrição da regra, que dela exceptua a situação” (em Metodologia da Ciência do Direito, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2ª ed., 1969, p. 434). Lacuna cujo suprimento se faz por redução teleológica, “pelo aditamento da restrição postulada, de harmonia com o sentido da lei” (id., p. 451).

 8 – O sentido da lei, já se viu, está em eqüalizar o tratamento tributário das empresas cujos produtosserviços são onerados pela incidência do PIS e/ou da COFINS, e daquelas que não sofrem tais ônus. O regime não-cumulativo é adeqüado para as primeiras, e deve o legislador editar a norma restritiva para que não se aplique às segundas. Se o fez de forma incompleta – por força do casuismo da regulamentação – surge a lacuna, que deve ser integrada pelo julgador, no caso concreto, de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito (DL nº 4.657, de 04/09/42, “Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro”, art. 4º). E a solução, aqui, é dar à empresa autora, enquanto empresa de prestação de serviços, o mesmo tratamento dado pela lei às outras prestadoras de serviços, excluíndo-a do regime não-cumulativo do PIS e da COFINS.

Em suas palavras, “a questão não é, portanto, de constitucionalidade ou inconstitucionalidade das disposições legais questionadas, e sim de interpretação e integração do sistema normativo aplicável, que apresenta lacuna de regulamentação, colmatável pela via da redução teleológica.”

Nesse e noutros casos, os julgadores perceberam a distorção criada pelo legislador e construíram uma interpretação que viabilizasse a iniquidade por ele gerada. Noutras palavras, criaram uma nova regra, preenchendo uma lacuna, tal como defendido por Manuel Atienza, de que “quem tem de resolver um determinado problema jurídico, inclusive na posição de juiz, não parte necessariamente da ideia de que o sistema jurídico oferece uma solução correta – política e moralmente correta – desse problema. Pode muito bem ocorrer o caso de que o jurista – o juiz – tenha de resolver uma questão e argumentar a favor de uma decisão que é a que ele julga correta, embora, ao mesmo tempo, tenha plena consciência de que essa não é a solução a que o Direito positivo leva.”[35]

Mas essa percepção não é unânime. Outros julgadores entendem pela impossibilidade de se corrigir a legislação, mantendo-se a disciplina legal, sob o fundamento de que “a partir da vigência das Leis nºs 10.637, de 2002, e 10.833, de 2003, a regra foi a sujeição ao regime não-cumulativo, e a exceção a sujeição ao regime cumulativo das contribuições, de que trata a Lei nº 9.718, de 1998. Dentro desse contexto, não há qualquer inconstitucionalidade nas Leis nºs 10.637, de 2002, e 10.833, de 2003, no que, por questão de política fiscal, excluíram do regime não-cumulativo determinados setores de atividade econômica.”[36]

Não restam dúvidas de que uma análise responsável sobre esse contexto nos levam à conclusão de que a tributação nos moldes legais pode causar uma distorção, porquanto “a regra do inciso II do art. 8º da Lei 10.637/02, e do inciso II do art.10 da Lei nº 10.833/03, é unidirecional: dela só se tira que as empresas, tributadas pelo imposto de renda pelo lucro presumido ou arbitrado, ficam no regime cumulativo; mas nada se tira quanto às tributadas pelo lucro real, cujo tratamento, quanto ao PIS/COFINS, dependerá de outras regras”.

De um lado, uns interpretam o ordenamento jurídico de forma sistêmica para evitar que alguns prestadores de serviços sejam prejudicados por essa omissão, de outro, sustentam que o legislador é quem decide sobre como deve ser a política fiscal.

Há, mesmo para os que rechaçam a tese, univocidade na percepção de que a regra que obriga ao PIS e COFINS não cumulativo pode ter esquecido alguns e potencialmente pode causar uma iniquidade. Não seria, talvez, o mandado de injunção uma ferramenta apta a perfectibilizar o sistema tributário nacional e corrigir tal distorção?

A constituição diz que a administração deve ser eficiente (art. 37), que a tributação deve observar a capacidade contributiva (145, §1º), que deve ser isonômica (150, II), que o legislador deve disciplinar a não cumulatividade do PIS e da COFINS conforme os setores de atividade econômica (195, I, §12), que o Estado exercerá, na forma da lei, função de incentivo e planejamento, para um desenvolvimento nacional equilibrado (174, §1º), que o desenvolvimento nacional é um dos objetivos fundamentais da República – um sistema tributário orgânico e isonômico é indispensável para o desenvolvimento – (3º, II) que conceder-se-á mandado de injunção na falta de norma regulamentadora (5º, LXXII) e que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata (5º, §1º).

Lembrando, a intepretação do comando normativo deve, sempre, considerar todos os elementos do produto legislado, pois, como bem anota Tácio Lacerda Gama, “o sentido é fruto da conjugação de textos, que se articulam criando e condicionando relações de significação, é deste confronto entre textos, ou enunciados, que os sentidos da mensagem normativa são produzidos.”[37]

Tudo sugere, portanto, que é possível fazer uma construção pela a possibilidade de concessão de mandado de injunção nesse caso. Se há uma expectativa constitucional de que a não cumulatividade seja conforme a atividade econômica é possível, àqueles esquecidos pela lei, conceder mandado de injunção. Reconhece-se, realisticamente, diante da resistência da Corte em reconhecer omissão legislativa – haja vista em somente 36% dos casos a omissão ter sido reconhecida, conforme estudo supracitado –, que esse caso é mais sensível e que, por mais que alguns contribuintes tenham sido esquecidos, a inércia legislativa é de difícil configuração. A tese, se provocada, deve ser resistida pela Corte.

Os dois casos foram escolhidos porque revelam duas situações recorrentes em direito tributário. No primeiro o legislador certamente não atendeu ao reclamo constitucional (tributação adequada do ato cooperado) ao passo que no segundo os contribuintes exploraram uma tese com fundamento constitucional (disciplinar a não cumulatividade conforme a atividade econômica).

Nas duas o legislador falta com a Constituição. A tributação do ato cooperado representa um problema relevante que necessita de regulamentação e a segunda representa um cochilo do legislador, que distorce a tributação dos prestadores de serviços submetidos ao lucro real. As duas, se observado o texto constitucional em sua completude, autorizam que essa falta legislativa seja preenchida por este remédio constitucional.

Em direito tributário, casos como esses são enfrentados diariamente pelos contribuintes brasileiros. Algumas vezes pela falta de legislação, noutras por uma legislação insatisfatória. Programas de desoneração fiscal – pautados, também, por comandos constitucionais –, por exemplo, chegam a onerar alguns. Situações específicas causam bitributação ou bis in idem por falta de normas gerais que disciplinem o assunto.

Segmentos como energia elétrica, comunicação, serviços financeiros e bancários, operadores portuários, logística, combustíveis, indústria e contribuintes em geral que lidam com tributos indiretos em cadeias produtivas complexas, chegam a ter que ajuizar a mesma demanda em diferentes estados ou municípios. E, pior ainda, são obtidos resultados diferentes em seus respectivos estados e municípios. Tudo isso pela falta de uma legislação que discipline sua situação específica.

Essa conclusão desponta não só porque se consubstancia na hipótese mais justa. Decorre, a toda evidência, da necessidade de minimização dos impactos inversos que recaíram especificamente sobre as distorções. É que, como ensina Eurico Marcos Diniz de Santi, “aplicar o direito pressupõe interpretação de regras, de fatos e formalização do conteúdo, sentido e alcance das normas em sucessivos atos administrativos e judiciais. Trata-se de processo altamente complexo, que lida com convicções, valores, pressões políticas e ideológicas, as quais modulam a legalidade em função do tempo histórico e do espaço social. (…) Contudo, a ética e o respeito à segurança jurídica demandadas da Administração Pública exigem coerência na construção de tais ‘legalidades’. Minimizar tais mutações, construindo um ambiente de certeza e segurança sobre o terreno movediço da ‘legalidade’, é missão da Administração Pública”[38].

Para concluir. Em casos como esses, surge gabarito para afirmar que a necessidade de pragmatismo é muito mais premente do que se imagina, pois, ainda que caiba ao juiz a análise do caso concreto, o comprometimento com as consequências de sua decisão deve estar à retidão desta. É, nada mais, do que uma recomendação pela concessão do mandado de injunção quando o(s) contribuinte(s) estiverem amparados pela Constituição e desamparados pelo legislador.

Que fique claro, não assaltam pretensões de que a concessão do mandado de injunção promova políticas públicas ou vá além do que o Direito permite, mas que, a partir do repertório jurídico normativo de que se valha, seja considerado o impacto resultante de tal decisão na sociedade. Levar as consequências da decisão judicial em consideração significa nada mais do que avaliar as possíveis mudanças nos estados de coisas para aqueles a que a decisão se dirige. Como adverte Richard Posner[39], decisões inconsequentes são ineficientes, e ineficiência é sinônimo de injustiça, pois denota desperdício de recursos tão valiosos quanto escassos.

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[1] Descabe, nessa oportunidade, grandes digressões conceituais sobre a classificação das normas constitucionais e sua relevância para discussões jurídicas atuais. Tratar-se-á como norma constitucional de eficácia limitada aquela que esteja inserida no texto constitucional, que exija uma lei para “mediar” sua aplicação e cujo exercício seja imediatamente inviável em razão da ausência de legislação.

[2] Que fique claro: ativismo judicial e mandado de injunção possuem pontos de convergência, mas são coisas distintas, o primeiro consiste no movimento capitaneado pelo Poder Judiciário e pelos sujeitos ativos, no sentido de promover políticas públicas por meio de decisões judiciais ao arrepio da lei – recorrente em matéria tributária –, enquanto o mandado de injunção representa a possibilidade de o Poder Judiciário regulamentar um direito já existente, mas de exercício impossibilitado em razão da falta de disciplina legal.

[3] Para ilustrar o contexto, destaca-se trecho de entrevista concedida por Luís Roberto Barroso antes de assumir o cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal: “O Supremo tem interpretado pró-ativamente a Constituição e, assim, atende as demandas da sociedade. Não considero que o Tribunal esteja invadindo o espaço da política no sentido impróprio que isso poderia significar. O Supremo tem invadido o espaço da política, em alguma medida, munido da Constituição.“ http://www.conjur.com.br/2008-set-21/quando_legislativo_mal_judiciario_toma_conta?pagina=2

[4] O Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Melo, quando do Julgamento do Mandado de Injunção 542-7/SP, consignou que o direito à legislação só pode ser invocado pelo interessado quando existir o dever estatal de emanar normas legais, de modo que a atividade legislativa do Estado consista em um verdadeiro dever. É necessário, portanto, o nexo de causalidade entre o direito subjetivo à legislação e o dever de o legislador editar a lei.

[5] Mas nem toda situação em que o exercício de direito é inviável autoriza o ajuizamento de mandado de injunção. É imprescindível que a falta normativa realmente torne os comandos constitucionais palavras órfãs. Nos casos em que a Constituição fornece a estrutura normativa necessária ao exercício do direito, não se fala nesse remédio constitucional.

[6] CARRAZA, Roque Antonio. A ação direta de inconstitucionalidade por omissão e mandado de injunção, Justitia, São Paulo, jul./set. 1993, v. 163, p. 48.

[7] Sundfeld, Carlos Ari – Mandado de Injunção, Revista de Direito Público, RDP 94/146. Pág. 3

[8] MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 3. Ed. Coimbra: Coimba Ed. 1996, t. II, p. 521-2.

[9] Ensina Clémerson Cléve que a omissão parcial se traduz no atendimento incompleto ou insatisfatório da norma constitucional, sendo ela subdividida em relativa e absoluta. Absoluta quando a legislação for insatisfatória, relativa quando houver quebra da cláusula geral da isonomia. CLÉVE, Clémerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade do direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

[10]Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:
(…)
§ 2º Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias.

[11] FERREIRA FILHO, Manoel Goncalves. Curso de direito constitucional, 34. Ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

[12] MI 20, M I95, MI 323, MI 438, MI 485, MI 585.

[13]Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais;
(…)
§ 7º São isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei.

[14] ““b) injunção para estabelecer os requisitos a serem preenchidos pelo impetrante com vistas ao gozo da isenção da contribuição previdenciária de que cuida o art. 195, §7º, da Constituição Federal”

[15] Pág. 10 MI 284.

[16]MI 721 / DF – DISTRITO FEDERAL  MANDADO DE INJUNÇÃO Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO Julgamento:  30/08/2007 Órgão Julgador:  Tribunal Pleno

[17] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional, 7ª ed. rev e atual – São Paulo: Saraiva, 2012.

[18] RAMOS, Luciana Oliveira, Tese de dissertação em mestrado na Universidade de São Paulo, 2010.

[19]http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-planalto/noticias/2016/06/regulamentacao-do-mandado-de-injuncao-garante-ao-cidadao-o-desfrute-de-seus-direitos-diz-temer

[20]http://blog.jovempan.uol.com.br/radioatividade/2016/06/24/governo-temer-regulamenta-mandado-de-injuncao-nao-sabe-o-que-e-entenda/

[21]http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITO-E-JUSTICA/511221-SANCIONADA-LEI-QUE-DISCIPLINA-O-MANDADO-DE-INJUNCAO.html

[22] BARROSO, Luís Roberto, Temas de direito constitucional, Rio de Janeiro, renovar, 2001. Págs 197 e 198.

[23] CARVALHO, Cristiano. Teoria do Sistema Jurídico – Direito Economia e Tributação, São Paulo, QuartierLatin, 2005. pág. 43

[24] CARVALHO, Paulo de Barros, Curso de Direito Tributário, São Paulo, Saraiva, 2012. Pág. 176.

[25] MOUSSALLEM, Tárek Moysés, Fontes do direito tributário,. Ed. Noeses, São Paulo. Pág. 70

[26] CARVALHO, Paulo de Barros, Curso de Direito Tributário, São Paulo, Saraiva, 2012. Pág. 190.

[27]CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, fundamentos jurídicos da incidência tributária. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 35-6

[28] CARVALHO, Cristiano. Teoria do Sistema Jurídico – Direito Economia e Tributação, São Paulo, QuartierLatin, 2005. pág. 311

[29] MI 107, MI 232, MI 283, MI 361, MI 438

[30] 147

[31] O livro foi escrito em 1998, sendo os problemas enfrentados pelas cooperativas em matéria tributária muito mais antigos

[32] 159

[33] CARVALHO, Paulo de Barros – Direito Tributário, Linguagem e Método – Ed. Noeses, São Paulo, 2011 pág. 283

[34]APELAÇÃO CÍVEL Nº 5023603-93.2014.4.04.7205/SC, Rel. Des. Fed. Amaury Chaves de Athayde.

[35] ATIENZA, Manuel, As razões do direito. Pág. 273, 2ª ed. Editora Forense, 2014.

[36]

[37] GAMA, Tácio Lacerda, Competência tributária, fundamentos para uma teoria da nulidade, 2a Edição. Ed. Noeses, São Paulo. 2011. p. 309

[38] SANTI, Eurico Marcos Diniz de, Kafka, alienação e deformidades da legalidade, Pág. 239, Ed. Thomson Reuters, São Paulo, 2014

[39] POSNER, Richard. The problems of jurisprudence. Boston: Harvard, 1993. Pág. 30

Como citar e referenciar este artigo:
HOLANDA, Rodrigo Schwartz. O mandado de injunção pela perspectiva da Lei 13.300 de 23 de junho de 2016. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2019. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/o-mandado-de-injuncao-pela-perspectiva-da-lei-13300-de-23-de-junho-de-2016/ Acesso em: 29 mar. 2024