Direito Constitucional

Análise constitucional acerca do acesso à saúde no Brasil perante a realidade paradigmática

Caio Queiroz da Silva[1]

RESUMO

O direito à saúde, reconhecido historicamente como dever do Estado e direito de todos, consolida-se como direito fundamental cuja prestação deve-se dar de forma integral, gratuita, universal e igualitária. Firmado como fundamento do Estado Democrático de Direito, possui precedentes de suma relevância até seu advento de estar constitucionalmente tutelado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, dando início a uma nova era de efetivação de garantias ainda não consolidada, que perpassa por uma série de percalços e obstáculos em sua sede democrática, garantística e de acessibilidade. O direito sanitário brasileiro possui uma série de paradigmas a serem superados, demonstrando a existência de descompassos entre o direito sanitário e sua própria proteção advinda do Poder Público, ensejando incessantemente soluções desviantes e efeitos que acabam por constrastar ainda mais a desigualdade e a insatisfação.

Palavras-chave: Direito à saúde. Constitucionalização. Judicialização. Paradigma.

1. INTRODUÇÃO

A realidade sanitária brasileira encontra-se caracterizada cada vez mais pelos inúmeros processos judiciais recorrentes na esfera do poder público. Tal resultado advém da insatisfação do povo em relação às prestações oferecidas, tendo em vista uma série de fatores que impedem que a atividade do Poder Público seja exercida de forma correta e adequada, tendo em vista o status de prestação positiva que o Estado Democrático de Direito tem para com os seus cidadãos em relação a serviços básicos como o serviço de saúde.

Com o advento da constitucionalização de tal direito no Brasil, passam a ser implementados vários dispositivos legais que visam regulamentar, adequar e viabilizar o serviço sanitário no país. O resultado de tal atendimento infraconstitucional apenas seria concretizado com a necessidade de efetivação do que se propunha, com programação e atendimento especializado, universalizado, acessível e de boa qualidade por parte do poder público.

No entanto, tal realidade ainda não foi alcançada, tendo em vista que o direito à saúde, á luz da CFRB/88 não possui implementação que garanta efetividade e a real garantia da dignidade da pessoa humana, tendo como necessários assim, meios diversos para a superação de paradigmas causados pela globalização e interesses políticos, cada vez mais fomentados pela sede de poder, característica marcante de nosso ordenamento jurídico e político.

Dessa forma, com o descrédito dado aos representantes responsáveis pela efetivação do direito sanitário, surge, assim, em sede de solução para as demandas cada vez mais crescentes, o ativismo judicial em sede de direito à saúde, explicitando cada vez mais o magistrado como detentor de índoles de função social julgadora e reparadora, predisposto a por em risco sua legitimidade, uma vez existente da omissão pública para que viabilize-se o Estado Democrático de Direito.

2. DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Para se falar em Direitos Fundamentais, é necessário esclarecer que vários doutrinadores, de várias épocas, tentaram formular um conceito hermético para expressão. Entretanto, como se pode observar, não foi possível se chegar a um conceito formal e hermético para a expressão “direitos fundamentais”, pois esta é bastante ampla e abrangente.

No que tange ao fundamento dos direitos fundamentais, a doutrina divide essa fundamentação em duas: os fundamentos histórico-filosóficos e os fundamentos filosófico-jurídicos. Os fundamentos histórico-filosóficos se baseiam no constitucionalismo como um movimento de limitação dos poderes do Estado, para que as garantias fundamentais sejam efetivadas. Desta forma, a doutrina pontua alguns pontos históricos para o surgimento dos direitos fundamentais. São eles: a Magna Carta do rei João Sem Terra (Inglaterra, 1215), na qual se firmou prerrogativas até hoje existentes em vários ordenamentos jurídicos, assim como o brasileiro; a Bill of Rights (Inglaterra, 1688/1689), onde foi assinada a perda total do poder absoluto do Rei, passando este a governar junto ao Parlamento; a Lei de Deus ou Torah (sociedade hebraica), que pela visão de Karl Loewenstein os hebreus já possuíam um “Estado” teocrático, limitado pelos Juízes ou governantes; a Constituição Americana (EUA, 1787), na qual foi a primeira Constituição escrita da humanidade, não possuindo um direito fundamental sequer em seu texto original, sendo estes incluídos posteriormente por meio de várias emendas, principalmente a Quinta Emenda.

Por outro lado, os fundamentos filosófico-jurídicos possuem como esteio lógico dois princípios básicos: a Dignidade da Pessoa Humana e o Estado de Direito. O princípio da Dignidade Humana, como é sabido da maioria, é considerado um princípio aberto. Entretanto, em uma síntese bastante apertada é possível afirmamos que este princípio reconhece a todos os seres humanos, pelo simples fato de serem humanos, algumas garantias básicas também chamadas de direitos fundamentais. Para alguns doutrinadores, o princípio da Dignidade Humana é um tronco comum do qual derivam todos os direitos fundamentais e logo, seria um erro fatal reduzir o fundamento dos direitos fundamentais à Dignidade da Pessoa Humana, restringindo suas possibilidades de conteúdo.

O Estado de Direito pode ser conceituado como o Estado de poderes limitados que se sobrepõe ao Estado absolutista, procurando garantir a todos os cidadãos garantias fundamentais para melhores condições de vida. José Afonso da Silva (2006, p.113) afirma que o Estado de Direito possui três características fundamentais: submissão, por parte dos governantes e cidadãos, ao império da lei, separação de poderes e garantia dos direitos fundamentais. Hoje, no Estado pós-moderno, a característica de submissão pode ser entendida como submissão a Constituição Federal, dando espaço ao conceito de Estado Democrático de Direito.

É possível vislumbrar no preâmbulo da Constituição Federal do Brasil (1988) a frase que nos norteia a tal pensamento. Em seu texto consta “nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais”. Pensa-se que todos estes princípios prezados pelo preâmbulo da Constituição se fundamentam na ordem jurídica democrática instituída pelo Estado Democrático de Direito.

No primeiro artigo da Constituição consta a definição da República Federativa Brasileira como Estado instituído Democrático de Direito, buscando destacar os princípios basilares de sua fundamentação. O que se tentará explicar neste ponto será o mecanismo que serve como norte para a organização instituída na fórmula conhecida como Estado Democrático de Direito. A forma harmônica existente entre estrutura social e organização política dessa instituição.

Nesse sentido, a Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), possui como característica uma tentativa por parte do constituinte de instituir um Estado conhecido como Estado Democrático, que se destina à efetivação do exercício dos direitos sociais, sejam eles individuais ou difusos, instituindo princípios basilares, atuando, portanto, como norte para a interpretação das normas para os que são parte de um todo integrante da comunidade política em questão.

Dito isto, no que tange aos direitos fundamentais, traçado um histórico social, político e ideológico referente a estes direitos, a doutrina traça classificações destes. Segundo HESSE (1998), os direitos fundamentais podem ser classificados como subjetivos e objetivos. Esta primeira dimensão se constitui na faculdade de impor atuação positiva ou negativa aos titulares do Poder Público, e esta segunda, está para além da perspectiva subjetiva, onde os direitos fundamentais dos indivíduos são postos frente ao Estado.

Desta feita, exime-se a necessidade de expressão dos direitos fundamentais em gerações. Os direitos de primeira geração, segundo FERNANDES (2013, p. 315), ou direitos de primeira dimensão, são aqueles que são reconhecidos como direitos de liberdade. Portanto, fala-se em direitos civis e políticos, encontrando no Estado o dever de abstenção. Os direitos de segunda geração, compreendem nos direitos sociais, culturais e econômicos, como idealização na realização das prestações sociais, em que se pauta o Estado Social como garantia institucional implementada na vida em sociedade.

Por fim, os direitos de terceira geração são dotados de um teor humanístico exacerbado na expansão de sua abrangência. Aqui se fala de princípio da fraternidade. Alguns autores trabalham este princípio com a nomenclatura de princípio da solidariedade, que abrange o direito ao desenvolvimento, direito à paz, direito ao meio ambiente e direito de comunicação.

Não nos resta dúvidas acerca das funções desenvolvidas através dos direitos fundamentais, e mais especificamente como abordado no tema do trabalho, aos direitos de segunda geração/dimensão, no que tange ao direito à saúde que será abordado com maior enfoque no próximo capítulo. Daí cabe nos rechaçarmos no pensamento de SARLET (2005, p. 106), que ressalta que a “função integradora e hermenêutica do princípio da dignidade da pessoa humana que serviria de parâmetro para a aplicação, interpretação e integração não apenas dos direitos fundamentais e das demais normas constitucionais, mas de todo o ordenamento jurídico”.

2.1 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE COMO DIREITO FUNDAMENTAL

No que tange ao processo de inserção do direito à saúde como interesse constitucionalmente tutelado, é necessário o raciocínio que demonstra as etapas do Estado e do interesse público em geral. Perpassando por três momentos específicos, o Estado, bem como os seus elementos, foram construídos por momentos específicos e de interesses distintos. Do Estado Liberal ao Estado Social e desse ao Democrático de Direito, os princípios perpassaram pela transformação de um interesse individualista e de prestações negativas estatais em um interesse que exige prestações positivas e objetiva a repressão de desigualdades com o escopo magno de garantir a dignidade da pessoa humana e da eficácia de seus pressupostos, garantindo uma nova ordem que decorre única e exclusivamente da vontade popular como meio de legitimidade.

Tal processo tem como ponto de destaque o fenômeno neoconstitucionalista, decorrente do período que sucede à 2ª Guerra Mundial. Tal episódio manifestou-se na mente humana como esclarecedor e reestabelecedor de vontades de políticas com novos direitos e, principalmente, com novos valores, oriundos do pós-positivismo.

No Brasil, tal processo constitucionalista democrático instaura-se na década de 80, caracterizada pela crise militar e pela instauração do novo modelo social democrático no país. Com a implementação da Constituição de 1988, a estabilidade institucional brasileira propiciou a implementação de uma atividade estatal efetiva e com uma melhor operacionalização.

Dessa forma, a saúde como direito fundamental social e estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades[2] passa a ser um interesse constitucionalmente tutelado, uma vez que está intrinsecamente relacionado ao fundamento da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III, CF/88), ao acesso à justiça e ao direito fundamental à vida (art. 5º, caput), além de ser garantido estritamente do art. 196 ao art. 200 da CF/88. Antes da Constituição Cidadã, a única menção a tal direito estava disposta na Constituição de 1967, no seu art. 8º, inciso XIV, estabelecendo como competência da União o estabelecimento de planos nacionais de educação e saúde.

Tal direito carece de um desempenho disponível e adequado no que diz respeito à sua tutela, uma vez que depende de atuação positiva estatal para a elaboração e realização de políticas que o determinem e o garantam de acordo com o ideal democrático instituído para tal concretude.

A saúde como bem tutelado constitucionalmente, segundo FIGUEIREDO (2015):

“(…) constitui-se como um direito público subjetivo exigível contra o Estado, obrigando-o a determinada prestação sempre que o bem da vida esteja concretamente em risco.” (p.56).

Por conseguinte, tem-se o direito à saúde caracterizado como dever e direito. Dever por parte do Estado Democrático de Direito de garantir a tutela, frisando sua inafastabilidade e promoção de mecanismos de correção de desigualdades sociais; e direito por parte de qualquer um, fundamental e de aplicabilidade imediata e eficácia plena, ambos correspondentes ao princípio do mínimo existencial e ao princípio da reserva do possível para que efetivem e regulem políticas públicas e todo o sistema sanitário que leva em consideração a complexidade da sociedade e de seus fatores relacionados.

2.2 DO ACESSO À JUSTIÇA E SUA APLICABILIDADE

Aqui cabe tocar acerca da constituição vigente atualmente. Cabe ressaltar nesse sentido que, o acesso à justiça é direito fundamental de todo cidadão. Destarte, a doutrina trabalha que quando se fale em efetividade no acesso à justiça, naturalmente fala-se em um instrumento pelo qual se garante direito às pessoas. Para que se fale em acesso à justiça, portanto, do princípio constitucional da isonomia, previsto no art. 5º, caput, da Constituição Federal, estabelecendo assim que todos os cidadãos tem acesso aos órgãos jurisdicionais.

Diante disto, provado que todos tem acesso à justiça, que é essa possibilidade de provocação diante de um órgão jurisdicional, cabe tangenciar no que compreenderia a justiça, que por vezes, é discutida por muitos doutrinadores.Segundo Hans Kelsen:

A justiça, diferentemente do direito positivo, deve apresentar uma ordem mais alta e permanece em absoluta validade, do mesmo modo que todo o empirismo, como a ideia platônica, em oposição à realidade e como coisa-em-si transcendental, se opõe a fenômenos (KELSEN, 2002, p. 60).

Em razão disso, fala-se da verdadeira atuação do Estado na resolução dos conflitos que lhes são apresentados. Segundo VENTURA (2010, p. 89) com o advento do Estado Democrático de Direito deve assegurar meios sólidos para a prestação da justiça que, via de regra, se exterioriza através do direito de ação por via do Poder Judiciário. Desta forma, maior parte da doutrina coloca o Poder Judiciário como o meio essencial à afirmação deste direito.

A ideia construída coloca que o Poder Judiciário cumpre o papel de meio pelo qual o Estado é provocado a garantir os direitos constitucionais, a sua aplicabilidade. Data vênia, o órgão estatal quando provocado por ameaça ou lesão a direito deve gerar apreciação.

Para tanto, o acesso à justiça possui preceitos fundados na realidade social, que é deflagrada pela pobreza e desigualdade social entre os indivíduos, apresentando dificuldades para a efetivação do acesso à justiça. A falta de informações, a pobreza, os fatores simbólicos[3], necessidade de um advogado, morosidade da justiça, o formalismo do processo, entre outros são alguns dos obstáculos enfrentados por aqueles da classe mais baixa.

O acesso à justiça que está expresso no artigo 5º, LXXIV, da Constituição Federal. O acesso à justiça se dá por meio das Defensorias Públicas, pelos Núcleos de Prática Jurídica (NPJ – localizados nas faculdades de Direito) ou até mesmo pela isenção das custas processuais como prevê o Código de Processo Civil, por exemplo. Garantido, também, através da lei número 1.060[4] de cinco de fevereiro de 1950.

Desta forma, podemos perceber que a luta para ter o acesso à justiça vem de tempos distantes. O povo brasileiro vem se dando conta da infinidade de direitos que possui e assim utiliza-se da justiça como meio para garantir este direito que está sendo violado.

3. DA EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL

De acordo com o artigo 6º da Constituição Federal de 1988 e conforme supracitado, o direito à saúde constitui um direito fundamental social, dependente de prestações positivas do Estado para sua real efetivação adequada. Dessa forma, cabe à União e às suas entidades federadas a missão de garantir o acesso, a efetivação e a manutenção de tal direito, tendo em vista o direito à saúde caracterizado como indisponível e irrestrito.

Sendo assim, o direito à saúde possui pressupostos legais acerca de sua efetivação, ensejando como destaques os seguintes dispositivos legais: a Lei 8.080/90, cujo conteúdo consiste na organização e estruturação dos organismos de saúde; e a Emenda Constitucional nº 29/2000, relacionada aos recursos utilizados.

A Lei 8.080/90 configura-se como a legislação que regulamenta o Sistema único de Saúde (SUS) como estrutura organizada e sistematizada, obedecendo a hierarquias e procedimentos previamente e legalmente estabelecidos, além de executar princípios também estabelecidos. Como objetivos do SUS, aduz o art. 5º da legislação referida:

Art. 5º São objetivos do Sistema Único de Saúde SUS:

I – a identificação e divulgação dos fatores condicionantes e determinantes da saúde;

II – a formulação de política de saúde destinada a promover, nos campos econômico e social, a observância do disposto no § 1º do art. 2º desta lei;

III – a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, com a realização integrada das ações assistenciais e das atividades preventivas.

Destarte, o SUS tem por diretrizes as dispostas no art. 198 da CF/88, além de uma série de princípios atinentes à sua efetivação e eficácia, previstos no art. 7º da lei 8.080/90, cuja obediência se vê extremamente necessária, dando destaque aos seguintes: universalidade de acesso, integralidade de assistência, preservação da autonomia, igualdade de assistências, direito à informação, participação da comunidade, integração em nível executivo das ações de saúde, meio ambiente e saneamento básico, conjugação de recursos dos entes federados, capacidade de resolução dos serviços e organização dos serviços públicos a fim de evitar duplicidade de meios para evitar serviços idênticos.

Outro dispositivo existente que objetiva o alcance do completo e adequado acesso à saúde é a Emenda Constitucional nº29/2000, uma vez que trata sobre uma taxa fixa a ser aplicada pelos entes federativos em suas quotas relacionadas à saúde. Dessa forma, vinculam-se recursos para a viabilização de toda a organização de saúde brasileira (consequentemente, o SUS), estabilizando o processo de financiamento, instituindo a saúde como política pública.

Apesar da existência de uma série de dispositivos que visam promover a efetivação de tal direito social, uma das maiores questões acerca da deficiência de garantias à saúde consiste na falta de cooperação e coordenação por parte das unidades federadas , resultando numa realidade de omissões e negligências do Estado como um todo frente à questões estritamente relacionadas à dignidade humana, em prol de interesses políticos, eleitorais e privados, como entraves relacionados à gestão de funcionários, fiscalização do trabalho e das instituições, além do fornecimento infraestrutural.

Apresenta-se como resultado dessa omissão estatal a criação cada vez mais crescente de planos de saúde e assistência médica no país, tornando tal direito comercializável, tendo em vista que a Administração Pública não mais atua positivamente de maneira adequada, apenas por meio de agências reguladoras, remetendo a um retrocesso liberal e à contradição em relação ao princípio da saúde como universal, integral, gratuita e igualitária. Outro resultado proveniente da omissão estatal é o ativismo judicial cada vez mais utilizado nas questões pertinentes, tendo em vista o próprio acesso à justiça estar deturpado (mesmo após muitas conquistas) em nossa sociedade atual.

4. O PAPEL DO JUDICIÁRIO NA EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

A partir da evolução sociopolítica, consolida-se no Brasil um modelo de estado pautado no interesse preventivo intervencionista, modelo este reconhecido como Estado do Bem-estar, onde a boa saúde populacional não era tida apenas como a erradicação de doenças, mas, como afirma FIGUEIREDO (p.28), diz respeito à vida digna numa perspectiva jurídica, política, psíquica, física e afetiva dos seres e de seu habitat. Consolidaram-se então os direitos fundamentais, buscando a legitimação de direitos que viriam proteger e garantir, de forma geral, a população defesa contra abusos e atentados contra sua integridade, garantindo o melhor convívio social.

Postulado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), órgão fundado pela ONU, com o intuído de buscar a melhor condição de saúde para os povos, sem distinção de raças e gêneros, em seu preâmbulo, datado de 26 de julho de 1946: A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade. Cria-se o pensamento que, no Brasil, passa a ser defendido e legitimado a partir da Constituição Federal de 88, onde o quesito saúde passa a ser citado a partir do Art.6º, expresso como direito social e conceituado no Art.196, expresso:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Entende-se por Estado todo seu conjunto federativo, União Federal, Estados e Municípios, em que possuem a obrigação da constituição de políticas públicas para o mantimento e asseguração do cumprimento a saúde, assim como garantias para a universalização deste direito, buscando uma maior amplitude e pondo o Estado no papel de devedor e o cidadão no papel de credor.

Mesmo com o direito a saúde sendo conceituado e legitimado, observa-se uma grande deficiência na sua efetivação, onde grande parte da população mundial, em sua maioria de baixa renda, carece de um sistema que garanta minimamente o bem-estar. Como demonstram as pesquisas de Kliksberg, onde constata que:

Quase 60% das mortes dos 20% mais pobres da população mundial são causados por doenças transmissíveis, pela desnutrição e pela mortalidade materna e perinatal. Essa cifra poderia ser reduzida se os pobres tivessem acesso à saúde preventiva e curativa e a uma nutrição adequada. (2001, p.74)

Observa-se a necessidade da real afirmação do direito à saúde e para isso, no contexto brasileiro, faz-se essencial a participação do Poder Judiciário como mediador e defensor dos direitos legitimados na Constituição Federal, observando que, a conscientização e reconhecimento de seus direitos por parte da população, a busca pela acessibilidade à justiça e o livre acesso a informação, garantidos pelo Estado Democrático de Direito, fazem do Poder Judiciário um órgão com a capacidade de exercer pressão sobre o Estado, com o intuito de fazer valer o dever que o Estado tem de garantir a saúde, como exposto no art. 196.

Ressalta-se que o Poder Judiciário não possui a qualidade de criador de políticas públicas, mas é responsável por contestar a real efetivação destas políticas para com a garantia e manutenção do direito à saúde. No contexto brasileiro, o judiciário é uma importante defesa para a população, visto que ainda há de se buscar a real afirmação material do direito à saúde, para se chegar a um patamar de confortável bem-estar social e cumprir, realmente, com o que se expressa na legislação.

4.1 A FUNÇÃO SOCIAL DO MAGISTRADO

O Poder Judiciário brasileiro passa por uma intensa modificação, onde a partir do clamor público e surgimento de crescentes conflitos é levado a deixar sua postura secundária, positivista e complexa, surge, então, a necessidade da sua inserção no meio social, como participante ativo e simplificador dos seus meios para se suprir a carência e a confiança social exigida pela população. Vale salientar que este poder é o principal responsável pela defesa contra abusos por parte do estado e de conflitos entre cidadãos, demonstrando a importância de se manter atualizado, garantindo a segurança jurídica necessária.

A partir da contemporaneidade, a magistratura começou a abandonar o sistema legalista-positivista, adquirindo uma atribuição de maior destaque, com uma maior autonomia legislativa, admitindo-se que seu papel vai além da simples aplicação técnica do texto legislativo, mas possui toda uma relevância interpretativa, conceitual e social. Atribui-se, portanto, o papel ativo na busca pela plena defesa na efetivação dos direitos humanos e sociais, observando a realidade na qual está inserido e adequando o texto aos casos concretos.

O magistrado deve sempre se manter atento às mudanças e diferenças existentes com o avanço do tempo, participando diretamente na modificação e adequação que o próprio direito deverá possuir. Buscando a igualação entre os conceitos de legislação e justiça, para a real consolidação do estado democrático de direito e pacificação social, possuindo um papel inovador na busca pela adequação da lei a fins sociais, garantindo não só o direito no seu meio formal, mas também em seu meio material.

4.2 A QUESTÃO DA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE PÚBLICA

De acordo com FIGUEIREDO(p.257), No Brasil, a atuação do Poder Judiciário em relação à garantia do direito à saúde, incluindo o acesso a medicamentos e tratamentos de saúde pela via judicial,ganhou importância teórica e prática, pois, a partir desse ato, tido como um exemplo de cidadania exercido por parte da população brasileira, pode-se observar a relação direta entre o aumento de provocação ao judiciário e os gastos públicos com a saúde por parte do Estado.

O Poder Judiciário, por possuir a qualidade de pressionar o Estado, recebe incessantes provocações por parte da população em que, grande parte se depara com risco de vida e não possui a atenção necessária do Sistema Único de Saúde (SUS), principal órgão responsável pela saúde pública no Brasil. Dessamaneira, ainda possui relevância o aprofundamento sobre o estudo da judicialização na saúde no Brasil, haja vista que as decisões devem ser tomadas de forma justa, buscando a exclusão de decisões contraditórias e prejudiciais à vida.

É de extrema importância que, não só o Judiciário aprofunde seus conceitos e discernimentos sobre a judicialização na saúde, visto que, se faz necessário o amplo diálogo e consenso entre os gestores da saúde pública, que não devem dividir somente competências, mas também, recursos para uma melhor efetivação de políticas públicas, e o Judiciário no Brasil, a fim do melhoramento de serviços prestados e garantindo uma maior amplitude no âmbito nacional, visto que, parte populacional ainda está aquém da saúde pública, possuindo a necessidade urgente de recorrer ao judiciário, se envolvendo em prazos burocráticos.

O processo de judicialização torna-se prejudicial à saúde, pois age como um processo que restringe e individualiza o direito coletivo que é a saúde, dando origem a um sistema público de dois níveis, um voltado àqueles que possuem condições de recorrer judicialmente, conquistando maiores benefícios, e outro que por falta de formação, permanecem excluídos de cuidados especiais. Esse conceito entra em contradição ao que afirma o Art. 196, pois enquanto formalmente a saúde é um bem de todos, materialmente ela se torna um direito individual, onde cabe a população o direito de recorrer.

A realidade em que o Brasil se encontra, referindo-se à saúde, vai de confronto com a meta estipulada, onde se busca um maior envolvimento jurídico, legislativo e estatal para a consolidação de um modelo de justiciabilidade das políticas de saúdes, onde este direito se consolidará, possuindo uma implementação justa e equitativa, com políticas públicas suficientes para englobar, de forma eficiente, todos os cidadãos, consolidando a saúde como um direito coletivo.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do esforço brasileiro para a efetivação do direito à saúde nos moldes adequados estabelecidos, percebe-se uma gama de motivações de cunho constitutivo, ético e moral que num panorama histórico-conceitual emergentes de uma discussão cada vez mais atual na realidade brasileira.

Sendo o Estado Democrático de Direito responsável pela implementação de políticas públicas para a efetivação de todo e qualquer direito fundamental, sendo o direito à saúde incluso nesse rol, como alusivo ao direito à vida e à dignidade da pessoa humana, o mesmo se vê pressionado por uma realidade problemática em relação à prestação desses serviços.

A promulgação das leis referentes ao custeio e à implementação do Sistema Único de Saúde não se apresentam eficazes no parâmetro social, viabilizando, dessa forma, a criação de outras áreas com função social, tendo como destaque o magistrado e sua atividade jurisdicional de tutela garantística de tal direito, uma vez que a omissão e a inércia da implementação programática de políticas públicas impede a democratização pelos meios convenientes, sendo necessária assim, a implementação por medidas extraoficiais.

REFERÊNCIAS

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[1] Graduando de Direito da Universidade Estadual do Maranhão. E-mail: cacaioqds@gmail.com.

[2] Conceito do termo “saúde” de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS).

[3]Expressão retirada do trabalho O ACESSO À JUSTIÇA NO ESTADO CONTEMPORÂNEO: A CONCEPÇÃO CONSTITUCIONAL E PRINCIPAIS ENTRAVES SOCIAIS, POLÍTICOS E ECONÔMICOS. Disponível em < http://200.233.146.122:81/revistadigital/index.php/revistadacatolica/article/viewFile/386/346>.

[4]Lei número 1.060 de 5 de fevereiro de 1950. Estabelece normas para a concessão de assistência judiciária aos necessitados. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l1060.htm>. Acesso em 7 de novembro de 2015.

Como citar e referenciar este artigo:
SILVA, Caio Queiroz da. Análise constitucional acerca do acesso à saúde no Brasil perante a realidade paradigmática. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2019. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/analise-constitucional-acerca-do-acesso-a-saude-no-brasil-perante-a-realidade-paradigmatica/ Acesso em: 19 abr. 2024