Direito Constitucional

Direito de greve dos servidores públicos: análise acerca dos recentes posicionamentos do Supremo Tribunal Federal

 Lucas Vinicius Santos Silva

Resumo: O direto de greve constitui-se num direito fundamental, sendo de vital importância para a sociedade. Todavia, há lei específica para trabalhadores da iniciativa privada, o que não ocorre em relação aos servidores públicos. Esse direito em relação aos servidores está cada vez mais sendo mitigado no ordenamento jurídico brasileiro. Essa mitigação é decorrente de 2 fatores: a falta de regulamentação específica e o entendimento que se firma cada vez mais no Supremo Tribunal Federal em restringir os direitos dos trabalhadores. Em virtude disso, a omissão do Estado em legislar sobre a matéria aliada as decisões da Suprema Corte sobre o corte do ponto e a vedação das carreiras policiais de deflagrar greve, evidenciam a falta de proteção desse bem jurídico tão sensível para a coletividade.  

Palavras-chave: Direito de greve. Servidores públicos. Supremo Tribunal Federal. Estado.

Abstract: The direct strike is a fundamental right and is of vital importance to society. However, there is a specific law for private sector workers, which is not the case for public servants. This right in relation to the servers is increasingly being mitigated in the Brazilian legal system. This mitigation is due to 2 factors: the lack of specific regulation and the understanding that is increasingly being established in the Federal Supreme Court in restricting workers’ rights. By virtue of this, the State’s omission to legislate on the subject allied with the decisions of the Supreme Court on the cut of the point and the fence of the police careers to start a strike, evidences the lack of protection of this juridical good that is so sensitive for the collectivity.

Keywords: Right to strike. Public servers. Federal Court of Justice. State.

1. INTRODUÇÃO

O direito de greve atualmente reconhecido como direito fundamental dos trabalhadores foi disciplinado em diversas vezes no decorrer histórico da Constituição Federal, passando pelas fases de greve-delito, greve-liberdade e greve-direito. Após a referência histórica do direito de greve, passamos à análise do tema central deste trabalho, que visa examinar recentes posicionamentos do Supremo Tribunal Federal, primeiramente no que diz respeito ao direito de greve dos servidores públicos e a recente decisão do Pretório Excelso na qual o Plenário decidiu que a administração pública deve fazer o corte do ponto dos grevistas, mas admitiu a possibilidade de compensação dos dias parados mediante acordo corte de ponto dos funcionários públicos em período de greve, e seus aspectos constitucionais no que diz respeito ao artigo 37, VII da CF que garante expressamente o direito de greve aos servidores públicos, com os devidos requisitos.

No seguinte tópico, é justa a reflexão acerca de outro recente entendimento da Corte Excelsa e o direito de greve das carreiras policiais o julgamento que, na prática, equiparou as carreiras policiais, leia-se agentes da Polícia Federal, Civil, Militar, Rodoviária Federal, Ferroviária Federal, Corpo de Bombeiros Militares e demais funcionários que atuem na Segurança Pública, aos militares no que se refere à restrição de direitos gerou intensas críticas no meio jurídico. No campo do direito trabalhista, violou o direito fundamental de mobilização dos trabalhadores.

Por fim, a crítica feita com relação à ausência de lei regulamentadora do direito de greve dos servidores públicos, apesar da existência de um projeto de lei desde o ano de 2011, o qual ainda não foi votado pelo Congresso Nacional revelam a omissão do legislador e a recorrente lacuna que delega ao Poder Judiciário que faz as vezes de legislador nos casos em que trata-se da matéria.

Neste artigo a análise será pautada nos pontos referidos, apreender acerca dos recentes posicionamentos do Supremo Tribunal Federal acerca do direito de greve no âmbito dos servidores públicos e a decisão de cassação do direito de greve das carreiras policiais, estabelecendo a relação com o texto constitucional, de modo que teceremos algumas críticas que exprimem a opinião dos autores do presente estudo, embasados nas referências bibliográficas citadas.

2. BREVE HISTÓRICO DO DIREITO DE GREVE NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

A Constituição Cidadã de 1988, no seu art. 9º, caput, reconheceu a greve como direito fundamental dos trabalhadores. Ainda que o direito de greve dos servidores públicos tenha sido tratado em dispositivo próprio (art. 37, VII), o qual necessita de complementação legislativa, há que se reconhecer também neste caso o status de direito fundamental.

Este fenômeno social surge com a Revolução Industrial, transformando o trabalho em emprego, quando se consolidou o regime de trabalho assalariado na Europa. Isso acabou causando, em consequência um maior número de desempregados, surgindo conflitos trabalhistas em virtude da intensa exploração da classe operária gerou a necessidade de uma luta coletiva pelos interesses comuns, da qual emergia a consciência de classe. Os quais, passaram a se reunir para reivindicar melhorias salariais, paralisando seus trabalhos como um mecanismo de autodefesa, ocasionando desta forma a greve. (MASCARO, 2001).

Contudo, nos primórdios do Estado liberal a greve foi tratada como recurso “antissocial”. Num período histórico em que se propagavam as ideias de liberdade, igualdade e fraternidade, o Estado negava aos trabalhadores a liberdade de se organizar e realizar movimentos grevistas.

Estêvão Mallet (2014) classifica o tratamento jurídico da greve pelo Estado em três fases históricas sucessivas, verificadas em escala global, embora possuindo particularidades em cada país: a) greve-delito, em que a paralisação coletiva é tipificada como ilícito penal; b) greve-liberdade, em que o Estado deixa de tratar a greve como ilícito penal, sem, porém, reconhece-la como direito (a paralisação gera mero inadimplemento contratual); e c) greve-direito, na qual o Estado passa a reconhecer a greve como direito dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que o Direito positivo regulamenta os contornos e limites deste direito.

No Brasil, a greve passou a ser um fenômeno social relevante a partir do início do século XX em razão da nossa industrialização tardia. A Constituição 1824 bem como a Constituição de 1891 não se manifestaram sobre o direito de greve. Todavia, o Código Penal de 1890 considerou crime o “ato de provocar cessação ou suspensão de trabalho” (art. 206). Esta disposição legal não durou muito, pois foi logo alterada pelo Decreto nº 1.162 de 12/12/1890, que passou a criminalizar apenas “a violência no exercício da greve”.

A Constituição de 1934, embora inserida num contexto histórico do início da Era Vargas, marcado por fortes greves, também foi omissa sobre o tema. Todavia, com a instauração do Estado Novo, o Brasil sofreu um retrocesso para a fase greve-delito.

A redação original da Consolidação das Leis do Trabalho (1943), condicionava a greve à prévia autorização do tribunal competente (art. 723). Na ausência desta autorização, os grevistas estavam sujeitos às penas de suspensão do emprego por até seis meses e demissão. O art. 724 estabelecia punições para o sindicato que “ordenasse” o movimento grevista.

O governo de Vargas, durante o Estado Novo (1937-1945), merece reflexão especial, porquanto foi um período marcado por importantes avanços nos direitos trabalhistas de cunho individual, embora tenha havido notório retrocesso no campo dos direitos coletivos e da liberdade sindical, pois foi uma época ditatorial a começar pela carta constitucional de 1937 sendo outorgada.

Com o fim do Estado Novo, em 1946, o General Eurico Dutra assumia o comando do Estado brasileiro e iniciava um processo de redemocratização no país e, por conseguinte aprovou o Decreto-Lei nº 9.070, considerado por alguns como a primeira lei de greve no Brasil, com regramento severo e restritivo. O Decreto-Lei autorizou a greve nas atividades acessórias, após ajuizamento do dissídio coletivo, mas a proibiu nas atividades fundamentais.

A Constituição democrática de 1946 reconheceu o direito de greve de forma lacônica (art. 158), deixando os contornos de seu exercício a ser disciplinado por lei – que acabou sendo, por muito tempo, o restritivo Decreto-Lei 9.070. A Constituição autoritária (outorgada) de 1967, fruto do golpe civil-militar de 1964 que destituiu João Goulart, assegurou formalmente o direito de greve aos trabalhadores (art. 158, XXI), embora tenha proibido expressamente a greve nos serviços públicos e atividades essenciais (art. 157, § 7º). A Emenda Constitucional nº 01/69 manteve a mesma previsão.

Na seara infraconstitucional, durante o regime militar, foi aprovada pelo Congresso a Lei nº 4.330/1964, uma verdadeira “lei anti-greve” que estabelecia uma série de condições desmedidas para o exercício deste direito. O governo instituiu o Decreto-Lei nº 1.632/1978 como um obstáculo a mais para a greve nos serviços essenciais. E no Decreto 898/1969 (que definia os crimes contra a segurança nacional) foi previsto o crime de “promover greve em serviços públicos ou atividades essenciais”, a ser punido com reclusão, de 4 a 10 anos. 

No final da década de 70 e início da década de 80, o movimento sindical foi parte essencial do movimento pela redemocratização do Brasil, e as greves operárias atingiram seu ápice na história do país.

A Constituição de 1988, chamada de Constituição Cidadã, foi fruto desse processo de reabertura democrática, e no que diz respeito ao direito de greve, evidentemente representou um grande avanço, por dois motivos principais: a) reconheceu a greve como direito fundamental dos trabalhadores (art. 9º, caput); b) estendeu, pela primeira vez, o direito de greve aos servidores públicos (art. 37, VII), um avanço histórico “que tornou a vida funcional dos servidores públicos mais protegida dos abusos administrativos que até então perduravam” (CERNOV, 2011, p. 21).

Após esse apanhado histórico podemos perceber com maior nitidez a evolução na legislação brasileira acerca do direito de greve, principalmente no âmbito da Constituição Federal, o que apesar de assegurar tal direito como inerente aos trabalhadores, possui pontos passíveis de críticas, que serão feitas posteriormente no decorrer da análise realizada neste trabalho.

3. DECISÃO SOBRE O CORTE DO PONTO DOS SERVIDORES PÚBLICOS EM CASO DE GREVE

Em princípio, cabe conceituar a expressão servidor público. É uma espécie do gênero “agente público”, este sendo designado como toda pessoa que física que, mesmo transitoriamente e sem remuneração, exerça qualquer forma de investidura ou vínculo a função pública. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (2014) servidor público “ são os que entretêm com o Estado e com pessoas de Direito Público da Administração indireta relação de trabalho de natureza profissional e caráter não eventual sob vínculo de dependência”.

A lei 8.112/90 dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis, das autarquias, e das fundações públicas federais. Na Constituição Federal de 1988, o direito de greve está situado entre os direitos e garantias fundamentais. O art. 9º, caput, preceitua que compete aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercer o direito de greve e sobre os interesses que devam por meio dele defender. Para os servidores públicos, a previsão consta em dispositivo próprio da Constituição (art. 37, VII), situado no Capítulo que trata da Administração Pública. 

A lei de greve dos trabalhadores do setor privado foi aprovada pouco depois da entrada em vigor da Constituição de 1888 – trata-se da Lei nº 7.783/1989. Todavia, o Congresso Nacional não aprovou, até hoje, a lei específica sobre o direito de greve dos servidores públicos. Esta omissão legislativa tem gerado, durante as últimas décadas, inúmeras dúvidas e polêmicas sobre a possibilidade jurídica, os limites e contornos específicos da greve no serviço público.

Se, por um lado, o direito de greve dos servidores públicos foi reconhecido pelo constituinte de 1988, por outro, “há muito, doutrina e jurisprudência reconhecem que nem toda norma constitucional é suscetível de aplicação imediata” (GROTTI, 2008, p. 40).

Importante frisar que a existência de forte corrente doutrinária advogando se tratar o art. 37, VII, de norma de eficácia limitada, de modo que a greve de servidores públicos só seria juridicamente possível após a edição da lei específica prevista pelo constituinte. Esta posição foi defendida inclusive por José Afonso da Silva (2004, p. 681), nos seguintes termos:

Quanto à greve, o texto constitucional não avançou senão timidamente, estabelecendo que o direito de greve dos servidores públicos será exercido nos termos e nos limites definidos em lei complementar, o que, na prática, é quase o mesmo que recusar o direito prometido; primeiro, porque, se a lei não vier, o direito inexistirá; segundo, porque, vindo, não há parâmetro para seu conteúdo, tanto pode ser mais aberta como mais restritiva.

O Mandado de Injunção nº 20 – DF que concluiu que o direito de greve do servidor público é de eficácia limitada, portanto dependia da edição de lei posterior a viabilizar o exercício do direito reclamado.

Segundo esta posição, que prevaleceu na jurisprudência pátria, a ausência de lei regulamentadora redundava na impossibilidade de exercício do direito de greve pelos servidores públicos. Esse entendimento gerou o justo protesto de Bandeira de Mello:

Tal direito existe desde a promulgação da Constituição. Deveras, mesmo à falta de lei, não se lhes pode subtrair um direito constitucionalmente previsto, sob pena de se admitir que o Legislativo ordinário tem o poder de, com sua inércia até o presente, paralisar a aplicação da Lei Maior, sendo, pois, mais forte do que ela (MELLO, 2014)

Mas a orientação do Supremo foi sendo alterada paulatinamente, até a adoção da teoria concretista em 2007 – a qual sustenta que o Poder Judiciário deve implementar o exercício do direito constitucional, até que sobrevenha norma regulamentadora através do poder competente (LIMA e BELCHIOR, 2008, p. 2186). Está subdividido em duas: a) teoria concretista geral, sustentando que a decisão judicial tem efeitos erga omnes; b) teoria concretista individual, que defende a concretização do direito apenas para a parte litigante.

No ano de 2007, o STF julgou três Mandados de Injunção (712/PA, 670/ES e 708/DF), impetrados por sindicatos de servidores públicos que se insurgiam contra a omissão do Congresso Nacional em regulamentar o art. 37, VII, da Constituição. Neste julgamento, a Corte promoveu um giro histórico no seu entendimento sobre o Mandado de Injunção, resolvendo enfim concretizar o direito de greve dos servidores públicos, através da aplicação analógica da Lei nº 7.783/1989. GROTTI (2008, p. 49) apresenta boa síntese deste julgamento histórico:

O Plenário do Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento dos referidos mandados de injunção em 25 de outubro de 2007 e, por unanimidade, decidiu declarar a omissão legislativa quanto ao dever constitucional em editar a lei que regulamente o exercício do direito de greve no setor público e, por maioria, aplicar ao setor, no que couber, a lei de greve vigente no setor privado. (…) ao final, a Corte não só decidiu o conflito que lhe foi apresentado, mas também determinou as regras aplicáveis a futuros casos semelhantes, ou seja, pela aplicação da Lei nº 7.783/89 sempre que se tratar de greve de servidores públicos. Adotou, portanto, o Supremo a posição concretista geral.

Entretanto, além da concretização do direito de greve dos servidores públicos, o STF se moveu por uma alegada necessidade de impor limites às greves no serviço público, conforme se verifica no Acórdão proferido no MI 708/DF:

Além de o tema envolver uma série de questões estratégicas e orçamentárias diretamente relacionadas aos serviços públicos, a ausência de parâmetros jurídicos de controle dos abusos cometidos na deflagração desse tipo específico de movimento grevista tem favorecido que o legítimo exercício de direitos constitucionais seja afastado por uma verdadeira “lei da selva”.

Logo, tendo em vista impor limites às greves no serviço público, o STF determinou a aplicação da Lei nº 7.783/89, embora facultando aos tribunais a imposição de regime de greve mais severo em razão de tratar-se de “serviços ou atividades essenciais”.

Em 27 de outubro de 2016, o Supremo Tribunal Federal julgou o RE 693.456, fixando a repercussão geral:

A Administração pública deve proceder ao desconto dos dias de paralisação decorrentes do exercício do direito de greve pelos servidores públicos, em virtude da suspensão do vínculo funcional que dela decorre permitida a compensação em caso de acordo. O desconto será, contudo, incabível se ficar demonstrado que a greve foi provocada por conduta ilícita do Poder Público.

Como se depreende de aplicação análoga da lei de greve, o entendimento do STF, o corte dos dias parados se justifica pela interpretação análoga que o “contrato” seria rompido e a não prestação dos serviços decorrente da deflagração de greve, faz com que os dias não trabalhados não sejam pagos pela Administração Pública. Assim, a posição que foi tomada, evidencia um conflito de normas constitucionais, tendo em vista que a greve é um direito fundamental, todavia nenhum direito é absoluto, assim, apresentando limites.

Entendemos que o direito de greve está sendo mitigado pela Corte Excelsa. Por mais que a omissão do Estado em legislar sobre o assunto traga sérios danos, a instituição guardiã da carta constitucional não pode tomar decisões que vão contra a mesma. Os servidores públicos, assim como os trabalhadores da iniciativa privada, estão sofrendo séria restrição de reivindicação, seja por melhorias salariais e/ou condições de trabalho.

O serviço público deveria representar o exemplo de prestação de serviços a sociedade, mas diante da realidade brasileira o que se vê é uma defasagem. Assim, se os próprios servidores não podem se manifestar acerca de um direito que lhes é previsto constitucionalmente, sem uma severa penalidade que lhes é imposta pela Suprema Corte que deveria resguardar esse direito, e o Estado que se omite diante de tal situação, os mesmos estão entregues à própria sorte, pois agora, o que fica evidente, que o trabalhador fica sem voz e se tenta falar é amordaçado.

4. RECENTE DECISÃO DO STF SOBRE O DIREITO DE GREVE NO ÂMBITO DAS CARREIRAS POLICIAIS

Para uma melhor síntese, faremos uma breve explanação a priori sobre a vedação constitucional sobre o direito de greve a bombeiros e militares, posteriormente adentrando no mérito da decisão.

Historicamente no Brasil a atividade policial sempre esteve ligada ao militarismo, isto é, trata-se do fenômeno da militarização da segurança pública, que é o inverso da proposta contemporânea, que à exemplo de países como Canadá, Japão, Estado Unidos, Inglaterra onde entendem que o conceito almejado é o da “polícia cidadã”, isto é, baseada num diálogo produtivo para as condições necessárias da preservação da ordem e controle da criminalidade.

No Brasil o militarismo da segurança pública foi reafirmado no Regime Ditatorial a partir de 1964 e ratificado com a Constituição de 1988, mantendo-se, portanto, o controle da lei e da ordem pela militarização de tais atividades, em que pese sua natureza civil.

Ao firmar-se o fenômeno da militarização da segurança pública, ocorreram limitações aos direitos e garantias de tais profissionais e com isso foi proibido o sindicalismo, assim como o direito de fazer greve, perdendo-se, por conseguinte, as vias de um diálogo isonômico com o Poder Público para garantir seus direitos e desse fato decorre o desmerecimento das reivindicações da categoria.

A polícia, de acordo com o texto constitucional, possui como função a preservação da ordem pública, da incolumidade de pessoas e do patrimônio. Trata-se, indubtavelmente, de atividade ligada a pôr em ação as limitações que a lei impõe à liberdade dos indivíduos e dos grupos para salvaguarda e manutenção da ordem pública, em suas várias manifestações (BOBBIO).

Celso Antônio Bandeira de Mello em uma de suas obras apresenta o argumento da essencialidade do serviço, enquanto Lúcia Valle Figueiredo aborda o tema no sentido de que “o direito de greve não pode esgarçar os direitos coletivos, sobretudo relegando serviços que ponham em perigo a saúde, a liberdade ou a vida da população” (MELLO, 2014). Todavia, será que existe uma ponderação bem equilibrada nesses bens jurídicos tutelados? Ao nosso ver, não.

Vemos frequentemente que os policiais e bombeiros militares não atuam na atividade de guerra e tampouco no impedimento de invasões estrangeiras, diante disso categorizar essas categorias profissionais como militares é desafiar o que cada conceito representa, para atingir o fim de impedir uma categoria de utilizar os meios disponíveis e que a sociedade dispõe para defesa dos próprios interesses enquanto categoria profissional. Portando, trata-se de uma fraude aos direitos civis, no sentido da desvirtuação dos conceitos gerando consequências negativas aos indivíduos atingidos.

Sobre a decisão que ensejou tal posicionamento, um recurso foi interposto pelo Estado de Goiás contra decisão do Tribunal de Justiça local (TJ-GO) que, na análise de ação apresentada naquela instância pelo Estado contra o Sindicato dos Policiais Civis de Goiás (Sinpol- GO), garantiu o direito de greve à categoria por entender que a vedação por completo da greve aos policiais civis não foi feita, visto que esta não foi a escolha do legislador, e que não compete ao Judiciário, nesse caso agindo como legislador originário, restringir tal direito.

Após a decisão do Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO), que autorizou a possibilidade de parada coletiva dos policiais, a gestão do governadorMarconi Perillo (PSDB)recorreu ao STF, solicitando que a Corte elaborasse uma decisão definitiva sobre a questão. Tanto aProcuradoria-Geral da República (PGR), representada pelo vice-procurador José Bonifácio de Andrada, quanto o governo federal, representado pelaadvogada-geral da União, Grace Mendonça, corroboraram para o entendimento do governo de Goiás. A Advocacia Geral da União jáhavia adiantado, em parecer, posição contrária à paralisação.

A inconstitucionalidade das greves de policiais foi declarada no julgamento de um recurso no julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 654432, com repercussão geral reconhecida, apresentado pelo governo de Goiás contra uma decisão do TJ/GO que havia declarado legalidade deparalisação feita, em 2012 pela polícia civil.

Desde 2009, diversas decisões de ministros do STF consideraram ilegais as greves de policiais militares, civis e federais, sob o argumento de que representam risco para a segurança pública e para a manutenção da ordem.

A decisão ignorou que a Constituição veda a greve somente para militares, como também não considerou a Convenção nº 151 e a Recomendação nº 159 da Organização Internacional do Trabalho, ambas de 1978 e ratificada no Brasil em 2000 como o Decreto Legislativo nº 206, que trata dos direitos trabalhistas de funcionários públicos.

O que vemos em tal medida, é que mais uma vez o direito de greve, que é assegurado constitucionalmente, está sendo vedado justamente pelo órgão que deveria resguardar a carta constitucional.

E se os serviços públicos no nosso país são sucateados, com a segurança não seria diferente. Além de péssimas condições de serviço, baixos salários e por muitas vezes atrasados, e ainda num cenário de extrema violência, as carreiras policiais são vedadas de reivindicar por melhorias salariais e nas condições de trabalho, por uma decisão equivocada de uma Corte que se agiganta cada vez mais e toma para si o poder de legislar, por meio do chamado “ativismo judicial”, que por muitas vezes acaba sendo prejudicial à real função do Supremo Tribunal Federal.

O que se vê é que a única preocupação consiste em limitar os direitos dos policiais, afinal não são vistas ações dos governos e da justiça para uma melhoria nas condições de trabalho dessa classe, e com o objetivo de diminuir a grande precariedade do trabalho de policiais no Brasil, o que reflete diretamente na segurança pública oferecida à coletividade por tratar-se de um dos mais importantes serviços prestados à sociedade, principalmente levando-se em conta os atuais índices relativos ao tema.

5. CRÍTICAS A OMISSÃO DO LEGISLADOR NO QUE DIZ RESPEITO À LEI SOBRE GREVE DOS SERVIDORES PÚBLICOS

A Constituição de 1988 dispõe que o interesse público está pautado também na base dos direitos fundamentais e dos trabalhadores. Os servidores públicos, na medida em que o art. 9º da Constituição Federal assegura o direito de greve a todos os trabalhadores, não estão excluídos de tal direito (COELHO, 1994).

A ausência da legislação concernente à greve dos servidores públicos evidencia um caso típico de inconstitucionalidade por omissão, caracterizada por um “non facere” do Estado, que se manifesta quando os poderes constituídos deixam de fazer o que a Constituição determina (BARROSO, 2012). Para casos como este, a Carta Magna de 1988 previu o mandado de injunção como remédio cabível a ser aplicado sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania (art. 5º, LXXI da CF/88).

O grande mestre Paulo Bonavides (BONAVIDES, 2000) explica os contornos deste instrumento constitucional:

Havendo, por conseguinte, um direito subjetivo constitucional, cujo exercício se ache tolhido pela privação de norma regulamentadora, o titular desse direito postulará, perante o Judiciário, por via do mandado de injunção, a edição de uma norma aplicável à espécie concreta. Nesse caso a edição da norma saneadora da omissão é provisoriamente do Judiciário e não do Legislador, concretizando-se graças àquela garantia, a satisfação do direito subjetivo constitucional cujo exercício ficara paralisado.

O objetivo por meio deste é assegurar o exercício de direito constitucional até então ineficaz devido à omissão do Estado. Prestigia-se, com o mandado de injunção, a força normativa da Constituição, que não pode ser relegada à mera folha de papel.

Mesmo notificado várias vezes, o Congresso Nacional, até a presente data, não editou a esperada lei. Isso, porém, não obstaculizou a ocorrência de greves em várias categorias do funcionalismo público no país. A omissão legislativa não foi capaz de solapar, na prática, o exercício deste direito. Havia, no entanto, evidente anomia, diante da ausência de parâmetros legais para a greve de servidores públicos.

Tais decisões citadas anteriormente que o STF proferiu acerca do assunto evidenciam a perplexidade gerada pela insegurança jurídica criada pelo vazio legislativo decorrente da omissão do Legislativo em regulamentar o direito de greve dos servidores públicos.

Os impasses levaram a incontáveis manifestações pela urgência quanto à regulamentação do direito de greve previsto na norma constitucional.

Inúmeros projetos de lei foram propostos, contudo, o mais relevante deles está em tramitação. Trata-se do Projeto de Lei do Senado nº 710, de 2011 de autoria do deputado Aloysio Nunes, dispõe o seguinte:

Assegura o exercício do direito de greve dos servidores públicos da Administração Pública direta, autárquica ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Dispõe que não são servidores públicos, para os fins desta Lei, Senadores, Deputados Federais, Deputados Estaduais e Distritais, Vereadores, Ministros de Estado, Diplomatas, Secretários Estaduais, Secretários Municipais, membros do Poder Judiciário e do Ministério Público. Considera exercício do direito de greve a paralisação coletiva, total ou parcial, da prestação de serviço público ou de atividade estatal dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Dispõe que o estatuto da entidade sindical deverá prever as formalidades de convocação dos servidores para assembleia geral que deliberará sobre a paralisação. Estabelece que as deliberações aprovadas em assembleia geral, com indicativo de greve, serão notificadas ao Poder Público para que se manifeste, no prazo de trinta dias, acolhendo as reivindicações, apresentando proposta conciliatória ou fundamentando a impossibilidade de seu atendimento, caso em que poderão os servidores deflagrar a greve. Dispõe que a participação em greve não suspende o vínculo funcional. Estabelece que os servidores em estágio probatório que aderirem à greve devem compensar os dias não trabalhados de forma a completar o tempo previsto na legislação. Veda ao Poder Público durante a greve e em razão dela, demitir, exonerar, remover, substituir, transferir ou adotar qualquer outra medida contra o servidor em greve, salvo, nas hipóteses excepcionais mencionadas nesta Lei. Define serviços públicos estatais essenciais aqueles que afetem a vida, a saúde e a segurança dos cidadãos. Dispõe que durante a greve em serviços públicos ou atividades essenciais, ficam as entidades sindicais ou os servidores obrigados a manter em atividade percentual mínimo de sessenta por cento do total dos servidores, com o propósito de assegurar a regular continuidade da prestação dos serviços públicos ou atividades indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. O percentual mínimo será de oitenta por cento tratando-se de servidores que trabalham na segurança pública e em caso de serviços públicos estatais não-essenciais deve-se manter em atividade percentual mínimo de cinquenta por cento do total de servidores. Dispõe que as ações judiciais envolvendo greve de servidores públicos serão consideradas prioritárias pelo Poder Judiciário. Dispõe que julgada a greve ilegal, o retorno dos servidores aos locais de trabalho deverá ocorrer em prazo não superior a quarenta e oito horas contado da intimação da entidade sindical responsável, e em caso de não haver retorno ao trabalho, será cobrada multa diária da entidade sindical responsável. Veda a greve aos membros das Forças Armadas e aos integrantes das Polícias Militares e Corpo de Bombeiros Militares.

Percebe-se que o parlamentar segue a ideia firmada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a manutenção dos serviços de caráter essencial, definindo porcentagens para determinadas prestações de acordo com sua essencialidade, em caráter especial no que diz respeito à segurança e saúde.

Essa falha do Estado ao não editar normas sobre o direito de greve traz danos muito sensíveis aos servidores públicos, pois tal omissão acaba por “delegar” essa função ao poder judiciário, na pessoa do Supremo Tribunal Federal, o encargo de decidir acerca da questão. O que se pode perceber é que o mesmo, em virtude do seu vertiginoso agigantamento e com o discurso do ativismo judicial, vem decidindo contra a própria Constituição.

Tendo em vista que nenhum direito é absoluto, contudo, o direito de greve não pode ser mitigado de tal forma pela Corte Excelsa, a despeito de manter alguma funcionalidade dos serviços, sendo que o próprio funcionalismo público beira ao colapso muito por conta das más condições de trabalho e problemas salariais que agora, um verdadeiro governo de juízes, acaba por cercear a manifestação dos mesmos.

6. CONCLUSÃO

Por fim, após todo o exposto, cabe ressaltar que a proteção do direito de greve não interessa apenas aos servidores públicos, mas à sociedade de modo geral. Ao exercer o direito de greve, os servidores reivindicam, via de regra, ações do poder público que visam melhorar as condições de trabalho e garantir qualidade na prestação dos serviços públicos.

Não se deve, portanto, considerar a greve no serviço público como movimento antagonista dos interesses da sociedade, e tampouco como um fato anormal que atenta contra a Administração Pública. A greve é, na verdade, um componente natural e saudável num Estado Democrático de Direito, desde que exercida com responsabilidade.

As análises realizadas no presente estudo demonstram o descompasso das decisões emitidas pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal com a própria Carta Magna, nas críticas feitas buscamos demonstrar tais desconformidades, com base nas leituras utilizadas como referências, que possibilitaram a reflexão acerca do tema.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva ; Malheiros Editores, 2008.

BARROSO, Luís Roberto. O novo direito constitucional brasileiro: contribuições para a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. Belo Horizonte, Fórum, 2012.

BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco ; Dicionário de Política / Norberto Bobbio, tradução Carmen C. Varriale; coordenação de tradução João Ferreira; revisão geral João Ferreira e Luís Guerreiro Pinto Cascais. 5 ed. – Brasília : Editora Universidade de Brasília : São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10.ed – Malheiros Editores, 2000.

CERNOV, Zênia. Greve de servidores públicos. São Paulo, LTr, 2011.

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Como citar e referenciar este artigo:
SILVA, Lucas Vinicius Santos. Direito de greve dos servidores públicos: análise acerca dos recentes posicionamentos do Supremo Tribunal Federal. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2019. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/direito-de-greve-dos-servidores-publicos-analise-acerca-dos-recentes-posicionamentos-do-supremo-tribunal-federal/ Acesso em: 19 abr. 2024