Direito Constitucional

Ordem Econômica: breves considerações acerca de sua evolução histórica

ECONOMIC ORDER: BRIEF CONSIDERATIONS ABOUT HISTORICAL EVOLUTION

Mayara Rayanne Oliveira de Almeida[1]

RESUMO

O presente estudo científico tem por objetivo tecer considerações acerca de institutos de Direito Econômico, mais especificamente, a ordem econômica. O tema será abordado em linhas gerais, destacando a sua evolução histórica, passando pelas suas diferentes fases, até demonstrar a sua atual situação no direito vigente, através de uma pesquisa de cunho bibliográfico, por meio do método descritivo.

Palavras-chave: Direito Constitucional. Direito Econômico. Ordem Econômica. Evolução histórica.

ABSTRACT

This scientific study aims to make considerations about institutes of Economic Law, more specifically, the economic order. The theme will be approached in a general way, highlighting its historical evolution, going through its different phases, until it demonstrates its current situation in the current law, through a bibliographical research, through the descriptive method.

Keywords: Constitutional Law. Economic Law. Economic Order. Historic evolution.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por desiderato discorrer, mesmo que perfunctoriamente,  acerca da ordem econômica.

A priori, busca-se uma análise conceitual do tema para, em seguida, discorrer sobre as diversas fases pelas quais o Estado interveio direta ou indiretamente, com maior ou menor intensidade, na atividade econômica.

De fato, trata-se de um tema polêmico polêmico e causador de muita controvérsia na doutrina e na jurisprudência, em razão de sua complexidade, eis que de um lado tem-se uma sociedade moderna que reluta em legitimar a intervenção estatal, e de outro, ainda que indiretamente, a mesma socieda luta pelo equilíbrio das relações baseado na mencionada interveção.

2. CONCEITO DE ORDEM ECONÔMICA

Num primeiro plano, a palavra ordem transmite-nos a ideia de organização. Partindo desse prisma, Gerard Farjat (2002, p. 49)  chegou a conceituar a ordem econômica como o conjunto de atividades desempenhadas pelo Estado com o desiderato de organizar as diversas relações econômicas.

Eros Roberto Grau (2012, p. 53), embora salientando a existência de uma gama de ambigüidades quando do emprego da palavra ordem no meio juridico- econômico, focaliza a ordem econômica como sendo “o conjunto de normas que define, institucionalmente, um determinado modo de produção econômica”. Para ele, a ordem econômica deve ser apreciada sob dois enfoques interrelacionados: o do mundo do dever-ser (parcela da ordem jurídica) e o do mundo do ser, isto é, aquele presente sobre determinado modo de produção econômica.

Vital Moreira (2003, p 37), por seu turno, define a “ordem econômica” sob três enfoques: o fático (mundo do ser), o normativo (dever-ser) e o econômico. São suas as palavras:

Em um primeiro sentido ordem econômica é o modo de ser empírico de uma determinada economia concreta: a expressão, aqui, é termo de um conceito de fato e não de um conceito normativo ou de valor (é conceito do mundo do ser, portanto), o que o caracteriza é a circunstância de referir-se não a um conjunto de regras ou normas reguladoras de relações sociais, mas sim a uma relação entre fenômenos econômicos e materiais, ou seja, relação entre fatores econômicos concretos, conceito do mundo do ser, exprime a realidade de uma inerente articulação do econômico como fato que designa Em um segundo sentido, ‘ordem econômica’ é expressão o conjunto de todas as normas (ou regras de conduta), qualquer que seja a sua natureza Jurídica, religiosa, moral etc.), que respeitam à regulação do comportamento dos sujeitos econômicos; é o sistema normativo (no sentido sociológico) da ação econômica. Em um terceiro sentido, “ordem econômica’ significa ordem jurídica da economia.

Por sua vez, Washington Albino Peluso (2008, p. 189) prefere efetuar uma análise entre duas ordens, a econômica e a jurídica, para salientar em que ponto se distinguem e, ao final, traçar as balizas conceituais da ordem econômica. Assim se expressou o mestre:

_____ A Ordem Econômica compõe-se de princípios fornecidos pela Ciência Econômica, baseando-se na explicação dos fatos econômico harmonizados segundo valores econômicos.

______ A Ordem Jurídica oferece-nos as normas de conduta que determinam quando os fatos econômicos podem ou não podem ser postos em prática na sociedade organizada isto é, juridicamente ordenada, garantindo-lhes harmonia segundo valores jurídicos.

Nas palavras do professor Peluso (2008, p. 189), “podemos com a Ordem Econômica a partir da ideia de um conjunto de princípios que, funcionando harmoniosamente, oferecem-nos tanto a concepção de ‘sistema econômico’ quanto a de ‘regime econômico’. O primeiro corresponderia à concepção teórica, ao modelo econômico idealizado, ao tipo ideal. O segundo já se afirma como traduzindo a realidade da vida econômica.

Destarte, seguindo a mesma linha de entendimento dos mestres, poderíamos definir ordem econômica, sob o aspecto jurídico-normativo, como sendo aquele conjunto de normas esposadas pelo Estado com o afã de disciplinar o fenômeno econômico interno a ser desempenhado pelos diversos agentes econômicos.

3. Evolução histórica[2]

Entendemos importante discorrer acerca das diversas fases pelas quais o Estado interveio direta ou indiretamente, com maior ou menor intensidade, na atividade econômica.

Achamos por bem realizar um retrospecto histórico das diversas ideologias econômicas adotadas pelos países capitalistas ocidentais, dentre os quais o Brasil. O ponto de largada se dá com a apreciação do sistema liberal, passa pelo estado providência (Welfare state) e alcança o regime neoliberal hodierno.

O leitor observará que essas diversas etapas ou ordens econômicas nada mais espelham do que os vários disciplinamentos pelos quais o Estado atuou com maior ou menor intensidade na atividade econômica.

Nessa linha de raciocínio, Alberto Venâncio Filho (2009, p. 7) chegou a enfatizar que “todo regime estatal, admitindo a propriedade individual, admite, por esse motivo, que um mínimo de relações econômicas se desenvolva fora de sua ação. Entre esse mínimo de intervenção e esse mínimo de liberdade, o regime estatal comporta, em matéria econômica, as modalidades de ação as mais diversas: do simples exercício de poderes gerais de legislação e de polícia necessários para estabelecer o quadro jurídico das atividades privadas e manter a ordem pública, até o grau de intervenção que implica em que o Estado assuma a responsabilidade de organizar e de dirigir o conjunto da economia do país”.

O estudo que iremos realizar a seguir observará a seguinte ordem cronológica: o liberalismo, onde se vislumbra um grande afastamento do Estado da atividade econômica (Estado Liberal), o intervencionismo (Estado do Bem-Estar Social), onde o poder público exerceu, em grande escala – diretamente, através de empresas públicas e sociedades de economia mista, em regime de monopólio, ou através de competição com a iniciativa privada -, parcela considerável da atividade econômica e, por último, o neoliberalismo, em evidência na atualidade, onde o Estado assume com preponderância o papel de agente normativo e regulador do mercado, mas não a condição de empresário.

É no regime econômico capitalista neoliberal que surgem no Brasil as agências reguladoras da atividade econômica.

3.1 A Ordem econômica liberal

Pode-se dizer que o Estado Liberal emergiu da Revolução Francesa e predominou durante os séculos XVIII e XIX.

A partir dos ideais libertários da Revolução Francesa, da qual se obteve a delimitação dos poderes do rei[3], a propagação do ideal de se proteger certos direitos individuais do cidadão (a propriedade privada, por exemplo), a concessão da autonomia da vontade individual a livre iniciativa, originaram-se os marcos propícios para germinar e se implantar a ordem econômica liberal.

Por outro ângulo, o constitucionalismo foi fundamental para a implantação dos novos rumos que repercutiram sobretudo na economia. Acerca desse movimento, que permitiu uma reestruturação do Estado, liberdade do cidadão e limitação do poder reinol, lecionou Hertha Urquiza Baracho (2007, p. 35): “o movimento constitucionalista teve como objetivo por fim ao autoritarismo monárquico e estruturar o Estado, estabelecendo o ordenamento jurídico, mediante uma Constituição escrita. Surge a noção formal de Constituição como um conjunto de leis reunidas em um documento escrito e com superioridade sobre as leis ordinárias. Foi uma grande conquista dos povos civilizados o reconhecimento da necessidade de uma segurança jurídica com base na Lei Maior. O ideário constitucionalista se consagrou com a Constituição dos Estados Unidos da América do Norte de 1787, a qual se seguiu à Constituição francesa de 179”.

Essa ordem tinha por principal característica o afastamento do Estado da atividade econômica, que ficaria sendo regida pelas próprias leis mercado. Apregoava-se, in casu, o princípio da mão invisível.

A intervenção do Estado na atividade econômica ocorreria em apenas duas situações: quando não houvesse interesse privado em exercê-la ou quando se tornasse impossível a sua prestação em regime de concorrência. Em outras palavras, a atuação estatal na economia seria subsidiária (princípio da subsidiariedade).

Francisco José Soares Teixeira (2006, p. 208), apreciando os dogmas liberais e analisando o que se dizia sobre a mão invisível, transcreve de forma lapidar o que se apregoava à época: “se a cada indivíduo for garantida a liberdade de agir por conta própria, e o Estado não interferir na economia, cada país poderá atingir o pleno desenvolvimento econômico e com ele o bem-estar geral da sociedade.”

Coube a Adam Smith (2012, p 201), a maior expressão do liberalismo econômico, traçar os pilares da ordem econômica liberal. Para ele, o Estado teria tão- somente três deveres a cumprir: a) proteger a sociedade da violência e da invasão de outros pais b) proteger os cidadãos da injustiça e da opressão de qualquer outro membro da coletividade e c) executar obras e manter determinadas instituições, as quais nenhum indivíduo tivesse interesse ou condições de implementar. Tudo o mais ficaria sob a responsabilidade e risco da iniciativa privada.

De uma exegese da teoria de Smith, extrai-se uma concepção negativista do Estado Liberal. A ausência de regulação estatal, afirmava, seria a melhor maneira para se alcançar a prosperidade, a felicidade e o bem-estar geral.

Não faria sentido o Estado se imiscuir nas relações privadas, fossem elas econômicas ou sociais. Se tal ocorresse, haveria o risco de um desequilíbrio na ordem natural das coisas com consequências imprevisíveis.

Paulatinamente, a teoria econômica liberal foi sendo acolhida pelos diversos países europeus e americanos.

A opção deveu-se, sobretudo, pelo fato de que, à medida que o Estado se afastava da atividade econômica e punha em prática os postulados liberais, o crescimento econômico era cada vez maior.

Com efeito, a comprovação do enorme desenvolvimento econômico do período liberal pode ser facilmente observado realizando-se um estudo comparativo entre os padrões econômicos dos países antes e depois da adoção do aludido sistema econômico.

Nesse pensar expressou-se Francisco Ayala (1972, p. 2): “o grande impulso econômico e técnico, em virtude do qual nossa civilização chegou a ser o que é hoje. se cumpriu, como é sabido, debaixo do princípio de abstenção do Estado nas relações sociais de produção e distribuição de bens. A parte mais característica e intensa desse impulso teve lugar no curso do século XIX: se se compara o tonus médio da vida na Europa e na América antes da Revolução Francesa com o que chegou a adquirir quando, em 1914, estalou a 1ª Guerra Mundial, o resultado da comparação evidenciará uma diferença assombrosa”.

Tendo a mesma conclusão, pontificou Celso Ribeiro Bastos (2010, p. 81): “Cumpre dizer que mesmo sem jamais se ter realizado plenamente, o Estado liberal foi o verdadeiro propulsor da civilização moderna. A ele deve-se a estrondosa revolução produzida na tecnologia e o engrandecimento sem par na história da quantidade de bens produzidos. Foi, portanto, sob as leis de mercado que se deu o mais formidável surto econômico de todos os tempos”.

O crescimento econômico gerado trouxe, em contrapartida, um elevado custo social. De fato, foi no período áureo do liberalismo econômico que se vislumbrou a maior exploração do homem (proletário) pelo homem (capitalista).

O sistema liberal havia proclamado a soberania contratual e a liberdade de contratar. O empresariado estava livre para fixar as cláusulas trabalhistas a seu livre talante. Nessa seara prevalecia a lei da oferta e da procura e o Estado permanecia como mero espectador.

Com o rompimento da Revolução Industrial e a elevação quantitativa da massa proletária, a exploração do trabalho pelo capital se tornou ainda maior. Não suportando os reclamos populares, o Estado foi obrigado a intervir na atividade econômica, mediante introdução de normas cogentes de ordem pública, o que viria mais adiante a descaracterizar o Estado Liberal e levar ao nascimento do Estado intervencionista (Welfare State).

A passagem do período liberal para o de Bem Estar Social foi bem retratada por Alberto Venâncio Filho (2009, p. 10).  Disse ele:

Durante todo o transcorrer do século XIX, importantes transformações econômicas e sociais vão profundamente alterar o quadro em que se inserira esse pensamento político-jurídico.

As implicações cada vez mais intensas das descobertas cientificas e de suas aplicações, que se processam com maior celeridade, a partir da Revolução Industrial, o aparecimento das gigantescas empresas fabris trazendo, em consequência, a forma de grandes aglomerados urbanos, representam mudanças profundas na vida social e política dos países, acarretando alterações acentuadas nas relações sociais, que exigirá que paulatinamente, sem nenhuma posição preestabelecida, o Estado vá, cada vez mais, abarcando maior número de atribuições, intervindo mais assiduamente na vida econômica e social, para compor os conflitos de interesses de grupos e de indivíduos.

A ordem econômica intervencionista será estudada a seguir.

3.2 A ordem econômica social (Welfure State)

Sob o aspecto doutrinário, duas grandes obras foram importantes e cruciais para demonstrar o sofrimento E exploração da classe operária por parte dos proprietários dos meios de produção no sistema econômico liberal: o Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels, de 1848, e a Encíclica Rerum Novarum. do Papa I.cão XIII, de 1891.

Mesmo no apogeu do capitalismo liberal, ou seja, na segunda metade do século XIX, as teorias socialistas iam sendo criadas e propagadas. A introdução de uma nova ideologia era apregoada como indispensável para se evitar a continuação da exploração do homem pelo homem. Vaticinava-se a necessidade premente de o Estado intervir na atividade econômica com maior intensidade para atenuar ou mesmo suprimir as desigualdades sociais reinantes.

Na Encíclica Rerum Novarum (Coisas Novas), o Papa Leão XIII (1991, p. 23) acentuou o sofrimento e exploração da classe operária pelo empresariado durante o liberalismo. O Estado, segundo o pensamento papal, deveria intervir em favor dos operários menos afortunados. Nesses termos manifestou-se Sua Santidade o Papa Leão XIll:

O que se pede aos governantes é um concurso de ordem geral que consiste em toda a economia das leis e das instituições. Queremos dizer que devem fazer de modo que da mesma organização e do governo da sociedade brote espontaneamente o oficio da prudência civil e o dever próprio de todos aqueles que governam (…) Dissemos que não é justo que o indivíduo ou a família sejam absorvidos pelo Estado, mas é justo, pelo contrário, que aquele e esta tenham a faculdade de proceder com liberdade, contanto que não atentem contra o bem geral e não prejudiquem ninguém. Entretanto, aos governantes pertence proteger a comunidade, porque a natureza confiou a sua conservação ao poder soberano, de modo que a salvação publica não é somente aqui a lei suprema, mas a causa mesma e razão de ser do principado.

No campo fático, no entanto, no período intermediado entre os anos vintes e início da década de trinta[4], milhões de trabalhadores perderam o emprego, empresas faliram em todo o mundo, além de ter havido uma retração na economia e elevação nos índices de inflação.

Foi nesse contexto que o Estado Liberal cedeu lugar ao Estado do Bem Estar Social (Welfare State).

A intervenção estatal, antes tida como indevida e imprópria, veio a ser incentivada.

A atividade econômica, outrora praticada quase com exclusividade pela iniciativa privada, passou a ser exercida pelo próprio Estado em regime de monopólio ou competindo com o particular tal como um verdadeiro empresário.

Nascia, a partir de então, como salienta Soares Teixeira (2006, p. 212), “um novo sistema de produção: o modo social-democrático de produção’, que irá viver os seus anos gloriosos desde a Segunda Guerra Mundial até meados da década de setenta”.

 Esse novo papel estatal intervencionista foi muito bem retratado por Paulo Bonavides (2013, p. 186):

Quando o Estado, coagido pela pressão das massas, pelas reivindicações que a impaciência do quarto estado faz ao poder político, confere, no Estado constitucional ou fora deste, os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços combate ao desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produz financia as exportações, concede crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à iniciativa individual, nesse instante o Estado pode, com justiça, receber a denominação de Estado social.

No plano jurídico, é digno registrar que foi nessa época de implantação do Estado Intervencionista que nascia um novo ramo do conhecimento jurídico: o Direito Econômico. Sobre essa ocorrência, lecionou Fábio Nusdeo (2011, p. 204): ” a ampliação da presença do Estado no sistema econômico e o seu caráter de pervasividade, com a multiplicação de normas legais de toda a espécie para pôr em prática a politica econômica, deram origem a uma mudança radical na própria forma de encarar o Direito e a aplicação de suas normas”.

Ademais, as cartas políticas dos povos ocidentais sendo as primeiras, a Constituição do México, de 1917, c a Constituição alemã de Weimar, de 1919 – passaram a disciplinar a ordem econômica em título especifico.

A ideologia intervencionista, entrementes, levou o Estado a ampliar de forma acentuada o seu rol de atribuições sociais e econômicas.

Esse novo Estado agigantou-se. Observou-se a implantação de uma enorme estrutura econômico-empresarial estatal, com o Estado intervindo em quase todos os setores da atividade econômica tais como metalurgia, telefonia, hotelaria, bancando, petrolífero, telecomunicações, energia, hospitalar, dentre outros.

O crescimento exacerbado da intervenção do Estado na seara econômica gerou uma série de consequências funestas, que serviriam para, mais adiante, possibilitar a sua queda e o surgimento da ordem econômica neoliberal.

Com efeito, ao invés de solucionar os problemas sociais, que já eram elevados na época do liberalismo, o Estado interventor não teve competência para resolvê-los. Pelo contrário, a miséria e as desigualdades sociais se mostraram ainda mais elevadas, sobretudo nos países capitalistas periféricos subdesenvolvidos e em desenvolvimento, como é o caso do Brasil.

Por outro ângulo, outros fatores contribuíram para a derrocada do Estado interventor. São elencados, dentre outros, os seguintes: a) aumento da
burocracia e ineficiência na prestação de serviços públicos estatais; b) endividamentos interno e externo do poder público, c) escassez de recursos para investir nas atividades consideradas essenciais (educação, saúde, segurança, habitação), d) aumento do déficit público, e) crise fiscal, e f) inflação exorbitante.

Eurico de Andrade Azevedo (2014, p. 141), em síntese memorável, chegou a diagnosticar os motivos ensejadores da derrocada do Estado do Bem Estar Social e ascensão do neoliberalismo com a implantação do Programa Nacional de Desestatização e o fortalecimento da função reguladora e fiscalizadora estatal, através da instituição das agências reguladoras como autarquias sob regime especial, in verbis:

A política do Estado intervencionista – em contraposição ao Estado liberal gerou duas consequências graves: a) o crescimento desmesurado do aparelho administrativo estatal, sobretudo de empresas públicas e sociedades de economia mista e suas subsidiárias; b) o esgotamento da capacidade de investimento do setor público ocasionando a deterioração dos serviços públicos em geral.

Tais circunstâncias levaram o Governo a implantar o Programa Nacional de Desestatização (Lei 8031/90, reformulado pela Lei 9491/97) tendo como uma de suas metas reordenar a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada todas as atividades que por ela possam ser bem executadas, de forma a permitir que a Administração se dedique principalmente ao atendimento das necessidades fundamentais da população. Esta nova visão da atuação do Estado na economia, com a diminuição de sua participação direta na prestação de serviços, impõe, por outro lado, a necessidade de fortalecimento de sua função reguladora e fiscalizadora. E, para esse fim, é indispensável que reestruture a sua administração,de maneira a poder controlar eficientemente as empresas privadas que venham a assumir a prestação dos serviços públicos (…). Diante dessa realidade, escolheu o Governo a figura da autarquia para criar as denominadas Agências Reguladoras, outorgando-lhes, entretanto, privilégios específicos, motivo pelo qual denominou-as de autarquias sob regime especial.

É nesse contexto de crise e de reestruturação produtiva, que os neoliberais encontram terreno fértil para difundirem a sua doutrina, a ser estudada a seguir.

3.3 A ordem econômica neoliberal

No plano das ideias, o neoliberalismo nasceu logo após o término da Segunda Guerra Mundial como reação ao regime estatal intervencionista.

Coube ao economista austríaco Friedrich Hayek atacar a intervenção do Estado na esfera econômica. Ele lançou o livro intitulado “O Caminho da Servidão”, em 1944, no qual tecia críticas acirradas à atuação do Partido Trabalhista inglês. Para Hayek, o Estado intervencionista britânico consistia numa ameaça à liberdade econômica e política.

No plano fático, no entanto, somente no final da década de 70, mais precisamente no ano de 1979, com a eleição de Margareth Thatcher, na Inglaterra, e em 1980, com a ascensão de Ronald Reagan à presidência dos Estados Unidos, resolveu-se pôr em prática o ideário neoliberal.

Ademais, outro episódio marcante para a hegemonia do neoliberalismo hodierno deu-se em novembro de 1989. Naquele ano, reuniram-se em Washington/USA, representantes do governo norte-americano e de organismos financeiros internacionais (Fundo Monetário Internacional-FMI, Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento-BID), com a finalidade de se fazer um balanço acerca das reformas econômicas levadas a cabo pelas nações latino-americanas.

Essa reunião, popularizada como o Consenso de Washington, produziu uma série de conclusões e propostas consideradas fundamentais para asnações capitalistas. Dois foram os pontos fulcrais integradores da Cartilha de Washington: a redução do tamanho do Estado e a abertura da economia. Se as nações pretendessem receber apoio financeiro e cooperação econômica dos organismos internacionais deveriam seguir as orientações tidas por consensuais.

Inúmeros países, dentre os quais o Brasil, como já era esperado pelos países centrais, passaram a acolher as regras de Washington.

Adotaram integralmente essa nova postura político-econômica todos os países da América do Sul, as nações africanas, asiáticas e europeias, inclusive do leste Europeu, após o desmantelamento da então União das Republicas Socialistas Soviéticas (URSS). A título de exemplo, na América do Sul, o Chile, sob o comando de Pinochet, foi o primeiro país a aderir ao neoliberalismo, muito antes mesmo das reformas de Reagan e Thatcher, episódio semelhante se deu na Bolívia durante os governos dos presidentes Banzer e Victor Paz Estensoro; no México, do presidente
Salinas; no Peru, do presidente Fujimori; na Venezuela, de Carlos Andres Perez; na Argentina, de Menem e no Brasil do então presidente Fernando Collor.

Insta salientar, contudo, que o neoliberalismo, não obstante a hegemonia mundial adquirida, tem-se mostrado contraditório.

De fato, embora o regime neoliberal tenha surgido como uma forma de eliminar os males do Estado-providência e proporcionar o desenvolvimento econômico e social das nações, a prática tem mostrado, a contrário sensu, elevação na taxa de desemprego, elevadíssimos endividamentos externo e interno das nações e péssimos índices de distribuição de renda. Pesa em seu favor, basicamente, eficiência no combate à inflação, que se tem permanecido estável nos países periféricos e centrais.

O balanço que se faz ao neoliberalismo é ainda precário. Pode-se, no entanto, adiantar que os seguidores de Hayek têm fracassado na sua empreitada de trazer um desenvolvimento econômico acompanhado de uma melhoria nas condições sociais.

Nesse diapasão, trazemos à baila ensinamentos de Perry Anderson (2013, p. 23) acerca dos fracassos econômicos e sociais até agora vislumbrados no regime neoliberal: “economicamente, o neoliberalismo fracassou, não conseguindo nenhuma revitalização básica do capitalismo avançado. Socialmente, ao contrário, o neoliberalismo conseguiu muitos dos seus objetivos, criando sociedades marcadamente mais desiguais, embora não tão desestatizadas como queria”.

Não obstante ter fracassado nos planos econômicos e sociais, o neoliberalismo mantém-se incólume nas esferas política e ideológica. Sobre esse duplo aspecto vaticinou Perry Anderson (2013, p.23 ):

Política e ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou êxito num grau com o qual seus fundadores provavelmente jamais sonharam, disseminando a simples ideia de que não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando, tem de adaptar-se a suas normas. Provavelmente nenhuma sabedoria convencional conseguiu um predomínio tão abrangente desde o início do século como o neoliberal hoje. Este fenômeno chama-se hegemonia, ainda que, naturalmente, milhões de pessoas não acreditem em suas receitas e resistam a seus regimes. A tarefa de seus opositores é a de oferecer outras receitas e preparar outros regimes. Apenas não há como prever quando ou onde vão surgir.
Historicamente, o momento de virada de uma onda é uma surpresa.

No mesmo diapasão, também tecendo críticas ao neoliberalismo, o professor Eduardo Kroeff Machado Carrion (2014, p. 157) lecionou:

Os neoliberais acreditam na superioridade da regulação pelo mercado, o intervencionismo estatal representando assim um fator de transformo e de desajustamento da economia de mercado. Entretanto, esta apologia do mercado livre não seria uma maneira de mascarar uma investida do capital contra as conquistas históricas da classe trabalhadora, expressas no pacto socialdemocrata do Estado Social? Liberar a empresa não seria na realidade uma forma de liberar a empresa de suas funções sociais e de desarmar a classe trabalhadora frente a esta nova ofensiva do capital, regredindo a economia a uma fase já superada? Aliás, a proposta neoliberal não é incompatível com a defesa de uma política de subvenções de transferência de recursos do Estado para o setor privado, o mercado livre funcionando apenas ou prioritariamente a nível das relações de trabalho.Face à crise econômica, ao invés de preconizar uma política econômica de crescimento em benefício da sociedade, ela sustenta uma política econômica de recessão e de austeridade em defesa do lucro.O mais grave parece ser o fato de esta maior liberdade econômica propugnada não se traduzir em uma ampliação das liberdades públicas. O neoliberalismo coaduna-se perfeitamente com um Estado forte e autoritário, significando, em última análise, uma subordinação da política do Estado aos interesses exclusivos da empresa privada.

Jose Martins Catharino (2012, p. 23) chega a tecer críticas quanto ao sistema neoliberal, que para ele não existe. Entende o insigne mestre que o denominado neoliberalismo é, nada mais nada menos, “o liberalismo ou individualismo ressurgido das suas próprias cinzas, como fênix ou bennu. Não outro, ele mesmo, embora estando na muda”.

Não obstante ser responsabilizado por inúmeros malefícios e transtornos social. o neoliberalismo não só existe como tem predominado e sido
acolhido por inúmeras economias na atualidade, inclusive no Brasil. Mudanças de rumo, no entanto, são esperadas e exigidas.


4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

À guisa de conclusões poderemos asseverar:

a) Pode-se definir ordem econômica, sob o aspecto jurídico-normativo, como sendo aquele conjunto de normas esposadas pelo Estado com o afã de disciplinar o fenômeno econômico interno a ser desempenhado pelos diversos agentes econômicos.

b) O Estado interveio na economia em diversos e diferentes momentos, passando pelas fases do liberalismo, do intervencionismo e do neoliberalismo.

c) O Estado Liberal emergiu da Revolução Francesa e predominou durante os séculos XVIII e XIX.

d) A ordem econômica neoliberal visava proteger os direitos individuais do cidadão e tinha por principal característica o afastamento do Estado da atividade econômica, que ficaria sendo regida pelas próprias leis de mercado.

e) A atuação estatal na economia era subsidiária, ou seja, só ocorreria se não houvesse interesse privado em execê-la ou quando se tornasse impossível a sua prestação em regime de concorrência.

f) Com o rompimento da Revolução Industrial e a elevação quantitativa da massa proletária, a exploração do trabalho pelo capital se tornou ainda maior. Não suportando os reclamos populares, o Estado foi obrigado a intervir na atividade econômica, mediante introdução de normas cogentes de ordem pública, o que viria mais adiante a descaracterizar o Estado Liberal e levar ao nascimento do Estado intervencionista (Welfare State).

g) A intervenção estatal passu a ser incentivada no contexto da ordem econômica intervencionista.

h) Contudo, ao invés de solucionar os problemas sociais existentes da época do liberalismo, o Estado interventor não teve competência para resolvê-los. Pelo contrário, a miséria e as desigualdades sociais se mostraram ainda mais elevadas.

i) Alguns fatores contribuíram para a derrocada do Estado interventor, entre eles: I) aumento da burocracia e ineficiência na prestação de serviços públicos estatais; II) endividamentos interno e externo do poder público, III) escassez de recursos para investir nas atividades consideradas essenciais (educação, saúde,segurança habitação), IV) aumento do déficit público, V) crise fiscal, e VI) inflação exorbitante.

j) O neoliberalismo surgiu após o término da Segunda Guerra Mundial como reação estatal intervencionista.

k) Adotaram esse política-econômica todos os países de América do Sul, as nações africanas, asiáticas e europeias, inclusive o leste europeu, após o desmantelamento da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

l) Não obstante ser responsabilizado por inúmeros malefícios e transtornos social. o neoliberalismo não só existe como tem predominado e sido acolhido por inúmeras economias na atualidade, inclusive no Brasil.

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VENÂNCIO FILHO, Alberto. A intervenção do estado no domínio econômico. Rio de Janeiro: FGV, 2009.



[1] Mayara Rayanne Oliveira de Almeida é bacharela em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Pos-graduanda em Direito Civil, Processual Civil e Consumidor pela FESP Faculdades. Advogada militante (OAB/PB 23.567).

[2] A abordagem histórica terá por marco inicial o surgimento do Estado Liberal. Não faremos análises acerca do Estado absolutista e o mercantilismo que predominavam nos séculos precedentes. 

[3] No Estado Absolutista, substituído pelo Estado Liberal, os poderes estatais eram todos concentrados nas mãos de uma só pessoa: o rei. Essa situação, no pensamento de Montesquieu, em seu livro intitulado Espirito das Leis” não poderia mais perdurar, eis que o monarca, em virtude do seu poder incontrastável e irresponsável, muitas vezes se tornava tirânico e levado a não respeitar inclusive os direitos naturais que são inerentes à coletividade em geral. Pregava Montesquieu, portanto,  a limitação dos poderes do rei e o estabelecimento de um novo regime. Nascia a Teoria da Separação dos Poderes, ou seja, as três principais funções do Estado (legislar, administrar e julgar) passariam a ser exercidas por pessoas distintas (Cf Montesquieu Charles de Secondat, O espírito das leis. São Paulo: Saraiva, 1994, passim.

[4] Nesse período ocorreram dois fenômenos marcantes na alavancagem do novo regime econômico: a 1ª Guerra Mundial e a quebra da Bolsa de Valores de New York

Como citar e referenciar este artigo:
ALMEIDA, Mayara Rayanne Oliveira de. Ordem Econômica: breves considerações acerca de sua evolução histórica. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2017. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/ordem-economica-breves-consideracoes-acerca-de-sua-evolucao-historica/ Acesso em: 28 mar. 2024