Direito Administrativo

Processo Disciplinar e Eqüidade

Processo Disciplinar e Eqüidade

Aplicar a lei com eqüidade é dosar o rigor da norma

 

 

Léo da Silva Alves *

 

 

Quem trabalha na complexa seara do processo administrativo disciplinar precisa ter sensibilidade para avaliar os casos concretos. Não está apertando parafusos de uma máquina inerte, mas operando em torno da vida, da subsistência, da dignidade de alguém. É aqui que entra, para que as soluções sejam justas, a figura jurídica da “eqüidade”.

 

Ensina Maria Helena Diniz[1]:

 

“Eqüidade. Disposição do órgão judicante para reconhecer, com imparcialidade o direito de cada um. 2. Sentimento seguro e espontâneo do justo e do injusto na apreciação de um caso concreto (Lalarde). 3. Justiça no caso singular. 4. Autorização, explícita ou implícita, de apreciar, eqüitativamente, um caso, estabelecendo uma norma individual para o caso concreto e tendo por base as valorações positivas do ordenamento jurídico. É um ato judiciário, um poder conferido ao magistrado para revelar o direito latente.”

 

Equidade, assim, consiste na adaptação da regra existente à situação concreta. A lei traz a solução em tese. Cabe ao aplicador da lei interpretar o comando legal e ajustar a sua aplicação àquilo que se apresenta para resolução. Isso é de grande relevância no processo disciplinar, sobremaneira na aferição das condutas, uma vez que, pela atipicidade das faltas disciplinares, as figuras infracionais são, muitas vezes, abertas, genéricas, amplas, exigindo que o seu intérprete faça o devido ajuste á realidade em pauta.

 

Pode-se dizer, então, que a eqüidade adapta a regra a um caso específico, a fim de deixá-la mais justa. Ela é uma forma de se aplicar o Direito, de tal maneira que seja o mais próximo possível do equilíbrio e da justiça.

 

Essa adaptação, contudo, não pode ser de livre-arbítrio e nem pode ser contrária ao conteúdo expresso da norma. Costuma-se dizer que buscar uma solução pela equidade “não corrige o que é injusto na lei, mas completa aquilo que a interpretação literal não alcança.” Sem a presença da eqüidade no ordenamento jurídico, a aplicação das leis criadas pelos legisladores e outorgadas pelo chefe do Executivo acabariam por se tornar muito rígidas, o que beneficiaria grande parte da população; mas ao mesmo tempo, prejudicaria alguns casos específicos aos quais a lei não teria como alcançar.

 

Wladimir Flávio Luiz Braga explica[2]:

 

Por imperativo da ordem e da seguridade jurídica, a vida se pauta pelo princípio da justiça legal, da legalidade ou reserva legal. Se a cada um fosse lícito decidir arbitrariamente acerca da justiça ou da injustiça das leis e sobre a conveniência de seu cumprimento, o ordenamento jurídico teria sua estabilidade ameaçada.

 

Mas, em relação ao juiz, a rigidez do princípio comporta certo abrandamento. O juiz não é um autômato, uma máquina de aplicar leis; é um órgão vivo do direito e a sua função, ao aplicar a lei, é a de realizar um prévio trabalho de adaptação, de flexibilização, para melhor adequá-la às realidades da vida; e nisso sobra-lhe margem para mitigar as asperezas da lei, para corrigir-lhe os desacertos e para melhorá-la em função dos interesses humanos que se destina a tutelar.

 

As comissões de inquérito, ao produzirem o relatório, preparam o ato de julgamento. Pode-se até mesmo dizer que, na prática, “julgam”. Afinal, como regra, o julgamento acatará o relatório, como reza o art. 168 da Lei nº 8.112/90. Por conseguinte, essas comissões têm a grande responsabilidade de conduzirem o resultado pelos caminhos do equilíbrio, da sensatez, da justiça. Não são operadores mecânicos de uma norma inanimada; são aplicadores de uma regra social que se vincula à dinâmica do mundo, às peculiaridades do serviço público e às realidades da vida.

 

A aplicação da norma geral aos casos particulares, sem um trabalho prévio de ajustamento importaria em graves riscos de injustiça; seria transformar o Direito num aparato legal ultra-resistente a mudanças; seria equiparar cada membro de comissão de inquérito a um computador cego, programado para aplicar friamente a lei, funcionando mecanicamente, indiferente ao bem ou mal que pode ocasionar. É aqui que entra a eqüidade como um elemento de adaptação da norma ao caso concreto.

 

Rizatto Nunes explica que a eqüidade funciona como “um corretivo da lei, que acabou não estatuída de forma adequada em função de sua alta generalidade”[3].

 

Quando se fala em interpretação eqüitativa do direito, não se pode deixar de considerar, também, que, em nosso ordenamento, herança dos ideais racionalistas, o julgamento com base na eqüidade sofre certa restrição, prevista no art. 127 do CPC brasileiro:

 

“Art. 127. O Juiz só decidirá por eqüidade nos casos previstos em lei.”

 

Nathália Arruda Guimarães[4] explica:

 

Tal disposição legal é fundada no receio de que o Juiz, ao deparar-se com lacuna decorrente de deficiência da lei, decida de acordo com seus designos, atuando como legislador.

 

E a autora rebate:

 

De fato, o Juiz age como legislador ao decidir de acordo com suas convicções, ainda que promova o melhor direito entre as partes. Porém, buscar um sistema em que a norma seja de tal forma imutável, anula o aplicador da lei, tolhindo-o na interpretação legislativa, o que provoca o “engessamento” do direito, que se torna inviável e insuficiente para responder aos anseios sociais.

 

Importante frisar que, ausência de lei nem sempre significa ausência de princípios, que são normas de direito e que, juntamente com a eqüidade, devem nortear as decisões judiciais e administrativas. Na verdade, ao decidir com base na eqüidade, o julgador lança mão de inúmeros princípios gerais do direito para promover e fundamentar sua decisão. Até porque, para dar a cada um o direito que lhe pertence, deve-se buscar nos princípios a direção a ser seguida. Não há como negar o vínculo existente entre ambos.

 

Válida, ainda, a lição do professor Leon Frejda Szklarowsky[5]:

 

A eqüidade é a humanização do Direito. É a mitigação da lei, segundo Aristóteles. Por meio dela, o juiz ameniza o rigor das regras jurídicas, tempera com justiça a rigidez da norma de direito, foge da norma escrita, pois o direito é bom senso, na acepção sempre atual do jurisconsulto romano Cícero.

 

Diz, ainda, o autor:

 

O juiz deve fazer as adaptações possíveis à realidade social, na busca de uma solução mais justa e equilibrada, sem desprezar, naturalmente, a ética, a boa razão e, sem dúvida, a moral, princípio basilar, que atualmente, está expresso na Constituição.

 

O eminente professor, humanista, que dignifica a cultura jurídica nacional, destaca a importância da adaptação na busca da “solução mais justa e equilibrada”. Nesta linha, sustentamos que uma solução que desequilibre as relações e que não esteja na pauta da justiça não é solução jurídica: é mero exercício da burocracia sem alma.

 

Wladimir Flávio Luiz Braga nos traz as referências de conclusão:

 

A eqüidade consiste em corrigir a impessoalidade das leis para aplicá-las com espírito de compreensão e coerência, medindo a intensidade das sanções. Não é, pois, forma especial de justiça, mas um critério de aplicação que tem em vista harmonizar o abstrato e rígido da norma jurídica com a realidade concreta. O juiz que se acorrenta à legalidade aplica a lei tal como está escrita, como “escravo do processo”, considerando que “o que não está nos autos não está no mundo”, sem atenção ao resultado; esquece que o escravo não pode manifestar vontade própria: é comandado. Já o magistrado que age com eqüidade tem a lei não como um fim em si mesma, mas como meio de realizar justiça, opondo-se a um critério de julgamento ou tratamento demasiado rigoroso e estritamente pautado na letra impassível da lei.

 

As comissões, e tantos quantos operam no processo disciplinar (consultores jurídicos, defensores, autoridades julgadoras) não podem ser escravos da norma no sentido de lhe dar aplicação geral sem avaliar o impacto no resultado. Pela eqüidade, devem ponderar, avaliar e estimar os resultados práticos que a aplicação da norma produziria em determinadas situações fáticas. Se o resultado prático a ser obtido concorda com as valorações que inspiram a norma, ela deverá ser aplicada. Se, ao contrário, a norma aplicável a um caso singular puder produzir efeitos que contradigam as valorações éticas e os ideais de justiça que devem modelar a ordem jurídica, então, indubitavelmente, não deve ser aplicada.

 

Não se trata de nenhuma incitação à desobediência civil, via descumprimento frontal e deliberado da lei. É questão mais sutil, onde situações bastante específicas demandam análise séria e profunda sobre a possibilidade de se “contornar” a norma para evitar prejuízo maior que poderia advir de sua fiel (e cega) observância.

 

 

 

* Léo da Silva Alves é conferencista especializado em Direito Disciplinar, com trabalhos no Brasil e na Europa. Autor de 35 livros



[1]Dicionário Jurídico” – Ed. Saraiva, Vol. 2.

 

[2]Equidade” – disponível na Web.

[3]Manual de Introdução ao Estudo do Direito” – Ed. Saraiva, 8ª edição, pág. 315.

 

[4] Seguro-saúde. Uma abordagem jurídica sobre o princípio da eqüidade e sua aplicabilidade nos conflitos decorrentes das relações de consumo” – disponível na Web.

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[5] “Arbitragem por eqüidade ou de direito” – disponível na web in Jus Navengadi.

 

Como citar e referenciar este artigo:
ALVES, Léo da Silva. Processo Disciplinar e Eqüidade. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-administrativo/processo-disciplinar-e-equeidade/ Acesso em: 19 abr. 2024