Direito Administrativo

Controle da Disciplina e o Devido Processo Legal

Controle da Disciplina e o Devido Processo Legal

 

 

Léo da Silva Alves *

 

 

            O processo disciplinar é o devido processo legal para aferir administrativamente a responsabilidade de servidor. Note-se, todavia, o sentido da expressão “devido processo legal”. Esta é uma garantia com dignidade universal. As Cartas de Direito no mundo civilizado, nos Estados democráticos, contemplam que todos têm direito ao devido processo legal. Resta compreender o efetivo sentido dessas palavras, a partir do exame em separado:

 

·         Devido – Significa o processo específico em razão do mérito. Quando se trata de crime, o devido processo é a ação criminal; quando há um litígio entre particulares, o processo devido é o cível; quando interesses na relação de trabalho entram em conflito, o processo devido é a ação perante a Justiça do Trabalho. E assim podemos prosseguir, tanto no campo judicial quanto no administrativo, evocando o processo eleitoral (perante as Cortes Eleitorais); o processo fiscal (perante as autoridades administrativas fazendárias); o processo de rescisão de contrato (previsto na Lei de Licitações de Contratos pelo qual a Administração pode, unilateralmente, viabilizar a rescisão de um contrato público ainda que a contragosto da outra parte). Para cada caso (cada mérito), um processo próprio. E, assim, o processo administrativo disciplinar é o processo eleito para aferir responsabilidade na seara da disciplina.

 

·         Processo – O vocábulo processo tem um conceito jurídico a ser considerado. Trata-se do encadeamento lógico de atos para a formação da vontade jurídica. Isso, por sua vez, quer dizer:

 

§         que os atos devem ser encadeados, unidos, postos em seqüência;

§         que esse encadeamento não é meramente físico, mas especialmente lógico;

§         que os atos a serem encadeados dentro de uma lógica são atos processuais e, portanto, só podem ser praticados de acordo com as leis do processo[1];

§         que, ao final desse processo, precisa resultar a expressão da vontade do legislador – ou a expressão do Direito na sua amplitude. A vontade jurídica, dessa forma, é diferente da vontade de quem instaura, da vontade de quem relata, da vontade de quem julga.

 

 

·         Legal – O processo deve seguir rigorosamente o formato da lei. Não é lícito, não é lógico, não é decente que a Administração, para censurar um funcionário por transgressão de uma norma disciplinar volte-se contra ele com expedientes que agridem a ordem jurídica. O processo existe exatamente como um espaço para respeitar regras. Nele, os ímpetos arbitrários são freados. Antes de tudo, então, o processo é garantia. E a garantia se materializa pela observância, por parte do poder repressor, de regras que se encontram na ordem jurídica.

 

 

A história da gênese do devido processo legal, tal como hoje é conceituado pela Constituição Federal de 1988, fundamenta-se na Magna Carta de João Sem Terra, do ano de 1215, quando esta se referiu à law of the land (art. 39). O devido processo legal surgiu no nosso ordenamento jurídico como meio de defesa do cidadão após o desenvolvimento da cláusula due process of law do Direito inglês e norte-americano, uma vez que o due process foi criado inicialmente na Inglaterra com intuito de proteção primordial ao baronato e segundo a lei da terra que, não obstante, era o próprio soberano quem ditava.

 

A denominação “due process of law” foi utilizada em lei inglesa de 1354, baixada no reinado de Eduardo III, quando se denominou de Statute of Westminster of the Liberties of London, por meio de um legislador desconhecido (some unknown draftsman). Não obstante a Magna Carta fosse criada como uma espécie de garantia dos nobres contra os abusos da coroa inglesa, continha certos institutos originais e eficazes do ponto de vista jurídico, admirados atualmente por estudiosos da história do Direito e da historiografia do Direito Constitucional.

 

Nos Estados Unidos, anteriormente à promulgação da sua Magna Carta de 1787, algumas constituições estaduais já consagravam a garantia do due process of law. São exemplos as de Maryland, Pensilvânia e Massachusetts, repetindo-se a regra da Magna Carta e da Lei de Eduardo III. Vieram a “Declaração dos Direitos” da Virgínia, a “Declaração de Delaware”, a “Declaração dos Direitos” da Carolina do Norte, todas de 1776, seguindo-se o mesmo modelo nas Constituições das colônias de Vermont, de Massachusetts e de New Hampshire, transformadas depois em Estados federados. O mesmo aconteceu na Constituição da Filadélfia. Todos adotaram o mesmo princípio do due process of law em seus territórios.

 

No Brasil, tão somente na Constituição Federal de 1988 – pela primeira vez em nossa história – é que trouxe o princípio do devido processo legal de maneira explícita no seu art. 5º, inciso LIV:

 

“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;”

 

            São também bens jurídicos, portanto tutelados pelo direito, a vida, a integridade física, a propriedade, a subsistência e a honra. O funcionário, acusado de transgressão, tem a sua dignidade pessoal posta em prova. Para algumas pessoas, o simples questionar da sua conduta é uma agressão de tal monta que causa profundo abalo na auto-estima, na motivação e no convívio social. Logo, ninguém poderá ter a sua dignidade ofendida, com a imposição de pena por suposta infração, se não tiver a possibilidade de, perante o devido e legal processo, oferecer a contraprova e apresentar amplamente as razões da sua defesa.

 

Assim, pelo breve histórico, associado ao sentido do comando constitucional, podemos compreender que o devido processo legal é uma garantia do homem. Logo, o processo não pode ser visto como um rolo compressor que o Estado (Administração) usa para triturar a honra, a subsistência e a vida de um funcionário ou de um cidadão.

 

 

* Léo da Silva Alves é conferencista especializado em Direito Disciplinar, com trabalhos no Brasil e na Europa. Autor de 35 livros



[1] Consideramos, como “leis do processo”, nessa ordem: 1) o próprio estatuto dos servidores, que traz, ainda que com deficiências, uma parte processual; 2) a “Lei do Processo Administrativo” (para a Administração federal, a Lei nº 9.784/99); 3) o Código de Processo Penal; 4) o Código de Processo Civil.

Como citar e referenciar este artigo:
, Léo da Silva Alves. Controle da Disciplina e o Devido Processo Legal. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-administrativo/controle-da-disciplina-e-o-devido-processo-legal/ Acesso em: 28 mar. 2024