Raíssa Saback Maltez Gurgel
Sumário: Introdução – 1 A Lei de Improbidade Administrativa – 2 A impossibilidade de reexame de provas em sede de recurso especial e a revaloração – 3 A análise das ações civis públicas por improbidade administrativa no Superior Tribunal de Justiça –Conclusão – Reeferências.
Resumo
O presente estudo tem como objetivo aprofundar a discussão em torno da aplicabilidade do óbice da Súmula 7 do Superior Tribunal de Justiça – que obsta o conhecimento do recurso especial que busca o reexame do conjunto fático-probatório dos autos – no que diz respeito a três momentos processuais da Lei de Improbidade Administrativa, quais sejam: a decretação de indisponibilidade dos bens dos acusados, a identificação do elemento subjetivo e a aplicação das sanções. Não obstante os limites constitucionais de atuação jurisdicional dos Tribunais Superiores, passou-se a questionar se o referido óbice, no tocante aos temas mencionados, vem sendo aplicado como filtro político ao conhecimento dos apelos, ou se realmente existe uma inviabilidade técnica à apreciação da matéria em sede de recurso especial.
INTRODUÇÃO
A proteção à probidade na Administração Pública é tema constitucional – art. 37, § 4º, da Constituição Federal –, regulamentado pela Lei 8.429/1992 e busca a tutela ao patrimônio público em face daquele que, na condição de agente público, pratique ato que importe em enriquecimento ilícito, prejuízo ao erário ou violação aos princípios da Administração Pública.
Essa regulamentação infraconstitucional trata não só dos tipos de atos de improbidade administrativa, mas também das penas, do processo administrativo e do processo judicial. Diante dessa regulação, surgem diversos temas controvertidos sobre os quais há interessante campo de pesquisa acerca da atividade jurisdicional aplicada à matéria.
No presente estudo, busca-se uma reflexão sobre o provimento jurisdicional do Superior Tribunal de Justiça no que diz respeito à admissibilidade do recurso especial frente ao óbice da Súmula 7/STJ – que obsta o conhecimento do apelo que busca o reexame de matéria fática – e a análise de três momentos do processo judicial por improbidade administrativa, quais sejam: a decretação de indisponibilidade dos bens dos acusados, a identificação do elemento subjetivo e a aplicação das sanções.
Com efeito, o estudo relacionado à aplicação do referido óbice sumular com relação a esses temas faz surgir o questionamento acerca da natureza do filtro recursal que obsta a reanálise de fatos e provas: se político ou se realmente existe uma inviabilidade técnica à apreciação da matéria em sede de recurso especial.
1 A Lei de Improbidade Administrativa
A Lei de Improbidade Administrativa – Lei 8429/92 – foi sancionada em 1992, ante a necessidade de regulamentação infraconstitucional do art 37, § 4º, da Constituição Federal que, ao tratar da Administração Pública, trouxe a previsão de suspensão dos direitos políticos, de perda da função pública, da indisponibilidade dos bens e do ressarcimento ao erário em caso do cometimento de ato de improbidade administrativa, na forma e gradação previstas em lei.
À época, o país passava por período de grande instabilidade política, com o recente impeachment do então Presidente Fernando Collor de Mello, de modo que a promulgação da Lei de Improbidade Administrativa, que tramitava desde 1991, atendeu aos anseios populares no que diz respeito ao combate às condutas ímprobas
Nesse sentido, a exposição de motivos da Lei 8.492/92 em que o Ministro da Justiça daquela legislatura, Jarbas Passarinho, que destaca a necessidade de combate efetivo aos atos de corrupção:
Sabendo Vossa Excelência que uma das maiores mazelas que, infelizmente, ainda afligem o País, é a prática desenfreada e impune de atos de corrupção, no trato com os dinheiros públicos, e que a sua repressão, para ser legítima, depende de procedimento legal adequado – o devido processo legal – impõe-se criar meios próprios à consecução daquele objetivo sem, no entanto, suprimir as garantias constitucionais pertinentes, caracterizadoras do estado de Direito. [1]
Diante desse contexto, desde a promulgação da Lei de Improbidade Administrativa, muitas ações judiciais foram ajuizadas com a finalidade de punir e coibir a prática de atos ímprobos. Surgiram, portanto, diveras problemáticas a serem dirimidas pelo pronunciamento jurisdicional dos Tribunais brasileiros.
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, algumas controvérsias merecem destaque, haja vista o grau de dificuldade relacionado ao seu conhecimento e provimento. Isso porque alguns temas relacionados à Lei de Improbidade Adminisrativa estão instrinsecamente ligados ao contexto fático da causa, o que pode ensejar o não conhecimento do apelo ante a vedação sumular ao reexame no conjunto fático-probatório dos autos.
2 A impossibilidade de reexame de provas em sede de recurso especial e a revaloração
Com efeito, há hipóteses em que não será possível a apreciação direta do tema pelo Superior Tribunal de Justiça em sede de recurso especial. Isso ocorre quando a questão controvertida suscitar o prequestionamento da matéria de fato e o Tribunal de origem não tiver se manifestado sobre o tema.
Tal óbice ao conhecimento do recurso tem relação direta com a própria criação do Superior Tribunal de Justiça, eis que a Corte Cidadã foi concebida com o objetivo constitucional de uniformizar a interpretação da lei federal no país[2]. Assim, os recursos especiais não podem ser confundidos como mais uma instância recursal com devolutividade ampla.
Essa impossibilidade de revolvimento do conjunto fático-probatório dos autos em sede de recurso especial está sedimentada há muito tempo e se traduziu da edição da antiga Súmula 7/STJ.
Súmula 7/STJ. A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.[3]
Quanto ao ponto, cumpre observar que o recurso especial deve ter como objetivo o reexame do critério legal aplicado pelo Tribunal de origem sobre determinado caso concreto e não a reapreciação de circunstâncias de fato presentes dos documentos que instruíram o feito. Em sede de recursos extraordinários, a análise da valoração de determinada circunstância fática por parte da Corte a quo somente ocorre quando é possível verificar a partir da análise do acórdão unicamente a violação a determinada lei federal[4].
Sendo assim, é possível concluir que o conhecimento do recurso especial relacionado à reapreciação de circunstâncias fáticas que compõem o caso concreto depende da valoração, pelo Tribunal de origem, acerca do contexto probatório dos autos de forma tal que seja possível, a partir da leitura do acórdão recorrido, extrair-se nova conclusão acerca da interpretação e aplicação do dispositivo infraconstitucional que foi violado ou que lhe foi negada vigência.
No tocante à incidência da Súmula 7/STJ ou à verificação das hipóteses em que será possível a revaloração das provas contidas no acórdão recorrido, destaca-se algumas temáticas relacionadas à improbidade administrativa, quais sejam: a constrição patrimonial – prevista no art. 7º da Lei 8.429/92 –, a análise acerca da presença ou não do elemento subjetivo caracterizador da prática do ato ímprobo e a dosimetria das penalidades aplicadas.
2 A análise das ações civil públicas por improbidade administrativa no Superior Tribunal de Justiça
Conforme mencionado anteriormente, a decretação de indisponibilidade dos bens, o reconhecimento acerca da presença do elemento subjetivo necessário à configuração do ato de improbidade administrativa e a dosimetria da penalidade, são temas que, ao compor as razões do recurso especial, ensejam, muitas vezes, a incidência da Súmula 7/STJ, mas também podem evidenciar hipótese de revaloração dos elementos probatórios consignados no acórdão recorrido.
Ocorre que, ao estudar a jurisprudência da Corte Superior, é possível surgir certo questionamento acerca dos parâmetros de julgamento dos recursos especiais que tratam sobre tais matérias. Isso porque a possibilidade ou não de aplicação do filtro recursal pode ensejar uma análise política da causa antes mesmo que ocorra a verificação da viabilidade de revaloração dos fatos e provas consignados no acórdão recorrido.
Com efeito, é possível verificar que a jurisprudência se revela oscilante frente à falta de parâmetros claros acerca do conhecimento da matéria apresentada em sede de recurso especial. Isso porque, não obstante a objetividade do raciocínio jurídico que permite a revaloração do contexto probatório consignado no acórdão recorrido, as decisões do Superior Tribunal não evidenciam a necessária fundamentação a demonstrar a aplicação da técnica adequada à revaloração dos fatos.
Nesse sentido, tem-se que a análise do mérito no recurso especial que se insurge sobre a decretação ou não da indisponibilidade de bens passa pela análise acerca da comprovação de fortes indícios da prática ímproba que cause prejuízo ao erário[5]. Assim, é certo que a verificação de tais pressupostos necessita da análise exauriente do Tribunal de origem no tocante aos fatos e às provas do caso concreto, para que seja possível a revaloração de todo contexto a ensejar conclusão diversa daquela proferida no acórdão recorrido.
Assim como na verificação acerca do elemento subjetivo do acusado na prática do ato de improbidade administrativa. Pressuposto muito delicado na configuração da conduta como ímproba, eis que reflete o liame subjetivo do agente em relação ao ato. A análise da existência desse requisito dentro da conduta individualizada de cada acusado necessita do pleno exercício da ampla cognição por parte do Tribunal de origem e consignada nas razões de decidir do acórdão.
O mesmo ocorre com a dosimetria das penalidades aplicadas em sede de condenação por ato de improbidade administrativa. Com efeito, só a valoração detalhada das condutas permite que haja nova análise do tema em sede de recurso especial.
Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça tem afastado a aplicação da Súmula 7/STJ mesmo quando o contexto fático delineado no acórdão recorrido não permite a revaloração jurídica.
Com efeito, apesar do ímpeto de combate à corrupção e ao mau uso do dinheiro público, é certo que a análise sobre a incidência ou não da Súmula 7/STJ não pode oscilar frente aos pressupostos de admissibilidade do recurso especial que, constitucionalmente, não deve servir à instauração de mais uma instância recursal.
Assim sendo, observa-se que pode ser afastada a incidência da Súmula 7/STJ nos recursos especiais que tratam sobre a condenação por improbidade administrativa. Para tanto, é necessária uma análise técnica das razões do acórdão recorrido a fim de verificar se existem elementos suficientes à revaloração do contexto fático nele disposto a fim de que haja nova conclusão jurídica sobre aqueles fatos.
Conclusão
Diante da análise apresentada, verifica-se que, não obstante a necessidade histórica de combate à improbidade administrativa, o papel constitucional do Superior Tribunal de Justiça como uniformizador da interpretação da lei federal em todo o território nacional não pode ser menosprezada.
Com efeito, a incidência da Súmula 7/STJ somente deve ter como parâmetros a análise técnica acerca da profundidade do acórdão recorrido a fim de verificar a viabilidade ou não de revaloração do contexto fático-probatório ali disposto.
Sendo assim, não há falar em natureza política do aludido filtro recursal, mas sim, em ausência de fundamentação exauriente por parte do Tribunal de origem acerca dos temas tratados, de modo a obstar a análise da insurgência em sede de recurso especial
Referências
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 07. A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial. Brasília, DF: Diário da Justiça, 3 de junho de 1990. p. 6478.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. Agravo Regimental nos Embargos de Divergência no Recurso Especial nº 134.108/DF. Relator Ministro Eduardo Ribeiro. Diário de Justiça, 16 de agosto de 1999, p. 36.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma. Recurso Especial nº 1.584.404/SP. Recurso especial. Civil e processual civil (CPC/73). Ação de execução de título extrajudicial. Litisconsortes. Procuradores distintos. Incidência do prazo em dobro previsto no art. 191 do CPC. Agravo de instrumento. Instrução. Regularidade formal. Alegação de violação ao art. 535, incisos I e II, do CPC. Inexistência. Prequestionamento. Presente. Fundamentos infraconstitucionais. Atacados. Revaloração de provas. Possibilidade. Não incidência do enunciado n. 7/STJ. Dissídio jurisprudencial. Comprovado. Desconsideração inversa da personalidade jurídica. Possibilidade. Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Diário de Justiça, 27 de setembro de 2016.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 1ª Seção. Processual Civil e Administrativo. Recurso Especial repetitivo. Aplicação do procedimento previsto no art. 543-C do CPC. Ação Civil Pública. Improbidade administrativa. Cautelar de indisponibilidade dos bens do promovido. Decretação. Requisitos. Exegese do art. 7º da Lei n.º 8429/1992, quanto ao periculum in mora presumido. Matéria Pacificada pela colenda Primeira Seção.
BRASIL. Exposição de motivos nº EM. GM/SAA/0388, de 14 de agosto de 1991, do senhor Ministro de Estado da Justiça. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1992/lei-8429-2-junho-1992-357452-exposicaodemotivos-149644-pl.html. Acesso em: 9 de fev. de 2020.
[1] Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1992/lei-8429-2-junho-1992-357452-exposicaodemotivos-149644-pl.html. Acesso em: 9 de fev. de 2020.
[2] Artigo 105, III, da Constituição Federal da República, 1988. “Compete ao Superior Tribunal de Justiça julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Território, quando a decisão recorrida […]”.
[3] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 07. Brasília, DF: Diário da Justiça, 3 de junho de 1990. p. 6478.
[4] Entendimento consolidado no âmbito do STJ: “A revaloração da prova consiste em atribuir o devido valor jurídico a fato incontroverso, sobejamente reconhecido nas instâncias ordinárias, prática francamente aceita em sede de recurso especial.” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma. Recurso Especial nº 1.584.404/SP. Recurso especial. Civil e processual civil (CPC/73). Ação de execução de título extrajudicial. Litisconsortes.Procuradores distintos. Incidência do prazo em dobro previsto no art. 191 do CPC. Agravo de instrumento. Instrução. Regularidade formal. Alegação de violação ao art. 535, incisos I e II, do cpc. Inexistência. Prequestionamento. Presente[…]. Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Diário da Justiça, 27 de setembro de 2016.); “Não ofende o princípio da Súmula 7 emprestar-se, no julgamento do especial, significado diverso aos fatos estabelecidos pelo acórdão recorrido. Inviável é ter como ocorridos fatos cuja existência o acórdão negou ou negar fatos que se tiveram como verificados.” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. Agravo Regimental nos Embargos de Divergência no Recurso Especial, nº 134.108/DF. Relator Ministro Eduardo Ribeiro. Diário de Justiça, 16 de agosto de 1999, p. 36).
[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 1ª Seção. Processual Civil e Administrativo. Recurso Especial repetitivo. Aplicação do procedimento previsto no art. 543-C do CPC. Ação Civil Pública. Improbidade administrativa. Cautelar de indisponibilidade dos bens do promovido. Decretação. Requisitos. Exegese do art. 7º da Lei n.º 8429/1992, quanto ao periculum in mora presumido. Matéria Pacificada pela colenda Primeira Seção. […] no comando do art. 7º da Lei 8429/1992, verifica-se que a indisponibilidade dos bens é cabível quando o julgador entender presentes fortes indícios de responsabilidade na prática de ato de improbidade que cause dano ao Erário (…).