Direito Administrativo

Precatórios descumpridos e a Lei de Responsabilidade Fiscal

Sumário:
1. Introdução. 1.1 Conceito de
precatório judicial e seu processamento. 1.2 A cultura do descumprimento de
precatórios. 1.3 O perigo da flexibilização das decisões judiciais. 2. Moratórias constitucionais. 2.1 Art. 33 do
ADCT. 2.2. EC n° 30/2000. 2.3. EC n° 62/2010. 3. Descumprimento de precatórios e Lei de Responsabilidade Fiscal. 3.1 Considerações
gerais. 3.2 Da inovação do conceito de dívida consolidada pela LRF.

1.
Introdução

Antes
da abordagem do tema específico convém fazermos breves considerações
preliminares para a perfeita compreensão da matéria.

1.1.
Conceito de precatório judicial e seu processamento

Precatório
judicial significa requisição de pagamento feito pelo Presidente do Tribunal
que proferiu a decisão exeqüenda contra a Fazenda Pública (União, Estados membros, DF e Municípios), por conta de
dotação consignada diretamente ao Poder Judiciário. É uma ordem judicial de
pagamento expedida contra Fazenda devedora. Funciona como sucedâneo da execução contra devedor solvente. A
satisfação do precatório é vinculada e
obrigatória, tanto quanto a submissão do devedor solvente à constrição judicial
de seus bens.

A
matéria vem disciplinada no art. 100 e parágrafos da Constituição Federal:

“Art.
100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais,
Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão
exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta
dos créditos respectivos, proibida a
designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos
adicionais abertos para este fim.

§ 1º
Os débitos de natureza alimentícia compreendem aqueles decorrentes de salários,
vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios
previdenciários e indenizações por morte ou por invalidez, fundadas em
responsabilidade civil, em virtude de sentença judicial transitada em julgado,
e serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos, exceto sobre aqueles
referidos no § 2º deste artigo.

§ 2º
Os débitos de natureza alimentícia cujos titulares tenham 60 (sessenta) anos de
idade ou mais na data de expedição do precatório, ou sejam portadores de doença
grave, definidos na forma da lei, serão pagos com preferência sobre todos os
demais débitos, até o valor equivalente ao triplo do fixado em lei para os fins
do disposto no § 3º deste artigo, admitido o fracionamento para essa
finalidade, sendo que o restante será pago na ordem

cronológica
de apresentação do precatório.

§ 3º
O disposto no caput deste artigo relativamente à expedição de precatórios não
se aplica aos pagamentos de obrigações definidas em leis como de pequeno valor
que as Fazendas referidas devam fazer em virtude de sentença judicial
transitada em julgado.

§ 4º
Para os fins do disposto no § 3º, poderão ser fixados, por leis próprias,
valores distintos às entidades de direito público, segundo as diferentes
capacidades econômicas, sendo o mínimo igual ao valor do maior benefício do
regime geral de previdência social.

§ 5º
É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de
verba necessária ao pagamento de seus débitos, oriundos de sentenças
transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários apresentados até
1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando
terão seus valores atualizados monetariamente.

§ 6º
As dotações orçamentárias e os créditos abertos serão consignados diretamente
ao Poder Judiciário, cabendo ao Presidente do Tribunal que proferir a decisão
exequenda determinar o pagamento integral e autorizar, a requerimento do credor
e exclusivamente para os casos de preterimento de seu direito de precedência ou
de não alocação orçamentária do valor necessário à satisfação do seu débito, o sequestro da quantia respectiva.”

Além
da observância dos requisitos dos artigos 58 a 64 da Lei n° 4.320/64,
aplicáveis à generalidade das hipóteses de pagamentos de despesas públicas, o
pagamento do montante oriundo de condenação judicial depende de procedimentos
específicos previstos nas normas constitucionais retrotranscritas.

1.2.
A cultura do descumprimento de precatórios

O
descumprimento de precatórios judiciais tornou-se uma rotina, principalmente
após ter o STF sinalizado a adoção da tese de que esse fato, por si só, não
importa em descumprimento de ordem judicial a ensejar intervenção federal no
Estado-membro, ou intervenção estadual no Município. A Corte Suprema assentou a tese de que a medida excepcional
se limita à hipótese de atuação dolosa e deliberada do ente devedor de não
efetuar o pagamento, não bastando a simples demora do pagamento na execução de
ordem ou decisão judiciária, por falta de numerário1. O que é relevante, na
verdade, é indagar porque há falta de numerário se as receitas realizadas
superam as estimadas, como vem acontecendo ao longo dos exercícios.

Quanto
maiores as facilidades com que acenam o Judiciário e o Legislativo para efetivação dos pagamentos de precatórios, maior a má vontade e o
descaso demonstrado pelos governantes para solução da dívida que vem crescendo
vertiginosamente.

Alguns
governantes incorporaram em sua rotina de trabalho a cultura do calote de precatórios planejando, de forma
sistemática e contínua, o desvio de verbas destinadas ao pagamento de
precatórios para realização de outras despesas que trazem maior visibilidade da
ação governamental, com reflexos positivos na mídia.

1.3.
O perigo da flexibilização das decisões judiciais

A
flexibilização do cumprimento de decisões judiciais transitadas em julgada refletidas, em última análise, nos
precatórios judiciais, abre um precedente perigosíssimo para a normalidade do
Regime Democrático de Direito. Não são apenas os interesses dos credores, por sinal,
relevantíssimos, pois milhares deles estão morrendo na fila dos precatórios, mas, outros interesses de
natureza pública serão fatalmente atingidos. Logo virão as generalizações que,
aliás, já são passíveis de constatação nos descumprimentos de medidas
liminares.

Hoje,
essas rebeldias às ordens do Judiciário vêm camufladas em forma de „equívocos?
na interpretação da determinação judicial. Amanhã, o seu descumprimento será
ostensivo!

No
dia em que as decisões do Judiciário forem cumpridas quando os
governantes se dispuserem a cumpri-las, e não nos termos da Constituição
Federal e das leis em vigor, pode-se dizer que desapareceu o Estado Democrático
de Direito, proclamado no art. 1° da

Carta
Política. É que o Poder Judiciário, que detém o poder jurisdicional em regime
de monopólio estatal, é o único capaz de assegurar esse Estado Democrático de
Direito, no exercício de suas funções inafastáveis e intangíveis (art. 5°, XXXV
da CF).

2.
Moratórias constitucionais

Como
fruto da cultura do calote de precatórios, moratórias constitucionais vêm sendo
decretadas periodicamente para livrar os maus governantes de sanções políticas,
administrativas e criminais.

Primeiramente
pelo legislador constituinte original, ao depois, por via de Emendas
Constitucionais que violentam a ordem jurídicoconstitucional.

2.1.
O art. 33 do ADCT

O poder constituinte originário, por meio
do art. 33 do ADCT,decretou, pela primeira
vez, a moratória para pagamento de precatórios em 8 (oito) parcelas anuais nos
seguintes termos:

“Art.
33. Ressalvados os créditos de natureza alimentar, o valor dos precatórios
judiciais pendentes de pagamento na data da promulgação da Constituição,
incluído o remanescente de juros e correção monetária, poderá ser pago em moeda
corrente, com

atualização,
em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de oito anos, a
partir de 1º de julho de 1989, por decisão editada pelo Poder Executivo até
cento e oitenta dias da promulgação da Constituição.

Parágrafo
único. Poderão as entidades devedoras, para o cumprimento do disposto neste
artigo, emitir, em cada ano, no exato montante do dispêndio, títulos da dívida
pública não

computáveis
para o efeito do limite global de endividamento”.

Para
assegurar a fonte de receitas para a
realização de despesas com os pagamentos de parcelas anuais o parágrafo único, do art. 33, acertadamente, possibilitou a emissão de títulos da dívida
pública pelo ente político devedor, títulos esses não computáveis para efeito
de limite global de endividamento de que cuida o inciso VII, do art. 57 da CF.

Como
já é do conhecimento público, os maiores Municípios devedores, como o de São Paulo, emitiram títulos muito além
das dívidas representadas por precatórios. O que é pior, a maior parte dos recursos financeiros
captados, por sinal, a custos
elevadíssimos, foram

desviados.
Esses fatos geraram a CPI dos Precatórios que, apesar da constatação dos
desvios financeiros, nenhuma conseqüência produziu sobre os responsáveis pela
burla constitucional e legal.

Essa
primeira moratória agravou a dívida
pública em vários dos Municípios. Ela não cumpriu a sua finalidade, a exemplo
da segunda moratória adiante mencionada, tanto é os entes políticos devedores aumentaram as suas dívidas e estão sendo beneficiados com a inclusão dos
débitos remanescentes de moratórias anteriores no novo regime de pagamento
especial de precatórios.

2.2.
EC n° 30/2000

Como
conseqüência dos desvios de recursos propiciados pela primeira moratória, legitimada pelo poder constituinte
original, houve necessidade de decretar a segunda moratória para pagamento dos precatórios
em 10 (dez) parcelas anuais, por meio da
EC nº 30/2000 que inseriu o art. 78 no ADCT2, nos seguintes termos:

“Art.
78. Ressalvados os créditos definidos em lei como de pequeno valor, os de
natureza alimentícia, os de que trata o art. 33 deste Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias e suas complementações e os que já tiverem os seus
respectivos recursos

………………………………………………………

§
2º. As prestações anuais a que se refere o caput deste artigo terão, se não
liquidadas ate o final do exercício a que se referem, poder liberatório do
pagamento de tributos da entidade devedora”.

A
grande falha dessa moratória é que não se previu fonte de custeio para
pagamento das parcelas anuais, contrariando regra elementar de Direito
Financeiro. A cada moratória os defeitos são agravados, tanto no que diz
respeito aos vícios jurídicos, como no que tange a dilação do prazo de
pagamento, de oito anos para dez anos.

Na
prática, os governantes foram utilizando verbas do exercício para pagamento das
parcelas de precatórios antigos, fazendo com que os credores não atingidos pela
moratória ficassem em situação pior do que aqueles alcançados pela moratória que, ao menos, continuaram recebendo
1/10 por ano.

Para
conferir efetividade à obrigação de pagamento de parcelas anuais, o § 2°, do
art. 78, do ADCT conferiu poder liberatório do pagamento de tributos da
entidade devedora em hipótese de inadimplemento.

Travou-se
intensa discussão jurisprudencial acerca da autoaplicabilidade desse § 2°, ou
se sua implementação dependia de regulamentação, ao teor do art.
170 do CTN que faz menção à lei autorizativa da compensação.

Na
verdade, a hipótese do § 2°, do art. 78 do ADCT é de dação em pagamento,
auto-aplicável, e não de compensação, conforme demonstramos em escrito anterior3.

Por
conta de uma interpretação literal do § 2°, do art. 78, do
ADCT os precatórios alimentícios, que gozam de privilégios, ficaram alijados
dos benefícios da compensação, que ficou limitada às hipóteses de parcelas
anuais inadimplidas.

Os
precatórios não privilegiados, por isso mesmo atingidos pela moratória, contam com o mecanismo assecuratório da
realização do direito de crédito, ao passo que, os precatórios alimentícios que, na dicção do texto constitucional e da
jurisprudência unânime, gozam de

privilégios
absolutos sobre os demais, não contam com qualquer mecanismo asseguratório na
hipótese de seu descumprimento.

Essa
postura jurisprudencial fez com que os governantes congelassem a fila de
precatórios alimentares dando preferência ao pagamento das parcelas anuais. Por
isso, o estoque de dívidas públicas representadas por precatórios alimentares
decuplicaram em poucos anos, e, milhares de precatoristas já faleceram sem receber o que lhes era devido. E ao mesmo
tempo cresceram as demandas judiciais dos servidores contra o poder público,
sinalizando aumento de supressões ilegais e inconstitucionais de vantagens
pecuniárias dos servidores pelo Executivo, contando com a morosidade no
pagamento de precatórios alimentícios.

Atualmente,
pende de julgamento o RE n° 566.349-MG, no qual foi reconhecida a repercussão
geral sobre a questão da autoaplicabilidade ou não do § 2°, do art. 78, do ADCT
e sobre a questão de saber se os precatórios alimentícios descumpridos podem ou
não ensejar compensação.

2.3.
EC n° 62/2010

A
terceira moratória foi decretada pela EC n° 62/2009 que acrescentou o art. 97 ao ADCT contendo 18 parágrafos. É a moratória mais violenta em
termos de desrespeito aos princípios constitucionais protegidos por cláusulas
pétreas e a mais confusa de todas elas.

Tamanha
a prolixidade trazida por essa Emenda que apesar de o Município de São Paulo, por exemplo, já ter depositado bilhões por conta de
precatórios, o Tribunal de Justiça de São Paulo não conseguiu, até hoje, quitar
um único precatório. Antes não se pagava porque não havia recursos financeiros
disponíveis. Agora, não se paga porque não se sabe como fazer esses pagamentos,
respeitando-se os credores privilegiados (precatoristas alimentares) e credores com privilégios qualificados (precatoristas alimentares idosos ou com doenças graves).

Para
complicar as coisas a Procuradoria-Geral do Município de São Paulo introduziu o regime de pagamento
de precatórios por acordo, independentemente do pagamento a cargo do Poder
Judiciário, como determina a Emenda 62. Alternam-se os mecanismos de protelação
de pagamentos mediante revezamento de órgãos e instituições. O certo, no nosso
entender, seria o Tribunal expedir um edital com prazo de trinta dias para que
os precatoristas com privilégio e com privilégio qualificado requeressem
precedência no pagamento de seus créditos, comprovando a idade e doença grave,
respectivamente. Decorrido o prazo, sem manifestação dos interessados os
precatórios alimentícios seriam pagos na ordem cronológica.

Essa
Emenda colocou sob o regime especial de pagamento em 15 anos Estados, DF e
Municípios que na data da promulgação da Emenda, 9-12-2009, estivessem em mora
na quitação de precatórios vencidos, abarcando, inclusive, aqueles precatórios atingidos pelas moratórias
dos arts. 33 e 78 do ADCT. Esse fato, por si só, revela que as moratórias não
resolvem o problema de precatórios descumpridos, ao contrário, estimulam o
calote. Só os legisladores não percebem o óbvio.

A
indigitada Emenda prescreveu, ainda, que enquanto estiver no regime especial de pagamento não serão aplicadas aos precatórios futuros
as regras permanentes inscritas no art. 100 e parágrafos, da CF, dentre as
quais a inserção na ordem cronológica e a prévia inclusão orçamentária. A menos
que a jurisprudência fixe um termo certo de vigência desse regime especial para
os entes políticos que optaram pelo depósito mensal de determinado percentual de sua receita
líquida a moratória não terá fim: poderá levar 20, 50, 100 ou 300 anos. A tendência
dos Tribunais é a de fixar limite máximo
de 15 anos,pressionando os entes devedores a aumentarem o percentual de depósitos
judiciais mensais.

Com
tais expedientes os jejunos em Direito Financeiro quebraram o princípio
constitucional de fixação de despesas fazendo desaparecer a figura de
precatório em mora, ou seja, não há mais previsão de crédito de precatório a
ser satisfeito no prazo certo, atingindo o direito fundamental do precatorista.

O §
6°, do art. 97 reservou 50% dos recursos depositados para pagamento dentro da
ordem cronológica, respeitadas as preferências dos precatoristas com
privilégios qualificados (precatoristas alimentares idosos e os com doenças
graves), estes limitados ao triplo do valor das obrigações para RPV.

Os
outros 50% depositados, conforme prescreve o § 8, poderão a critério do ente
serem destinados:

a)
ao pagamento por meio de leilão pelo critério do maior deságio;

b)
ao pagamento mediante observância da ordem cronológica respeitadas as
preferências;

c)
ao pagamento por acordo direto com os credores.

Esse
tipo de moratória é um verdadeiro incentivo à inadimplência dos precatórios.
Alimenta a cultura do calote e do endividamento irresponsável na contramão da
Lei de Responsabilidade Fiscal que visa implantar uma política de gestão fiscal
responsável.

Agravando
a situação dos precatoristas essa Emenda acrescentou o § 9° ao art. 100, da CF
determinando a compensação unilateral da dívida ativa constituída contra o
devedor original da entidade devedora, antes da expedição do precatório
judicial, abrangendo, pasmem os céus, inclusive as prestações mensais vincendas de parcelamento
(Refis).

Além
de tal providência atravancar ainda mais o processo de liquidação de precatório
com desenvolvimento de discussões
judiciais fora da sede própria (execução fiscal, ação anulatória do lançamento etc.)
trata-se de uma medida inconstitucional que viola em bloco os direitos e
garantias individuais do credor . Só para citar, viola o princípio do devido processo
legal, o princípio do contraditório e ampla defesa; o princípio da paridade de
tratamento das partes (só a Fazenda pode efetuar compensação; o precatorista
não pode); e viola, também, o princípio
da coisa julgada. Afrontando o princípio da simetria o legislador constituinte
derivado suprimiu a compensação com os créditos tributários da entidade
política devedora que figurava no regime da Emenda 30/2000. Ela restou como mera faculdade do Presidente do Tribunal como
sucedâneo de seqüestro nas contas dos entes políticos devedores que deixarem de
promover os depósitos judiciais mensais referidos no § 2º, do art. 97, do ADCT.

A
prevalecer o mesmo entendimento da Corte Suprema, que suspendeu parte do art. 78 do ADCT introduzido pela EC n°
30/2000,por violação da coisa julgada ao incluir na moratória os precatórios pendentes
de pagamento na data da promulgação da Emenda, tudo indica que os dispositivos
da Emenda Constitucional n° 62/2009 que atentam
contra o princípio da coisa julgada serão suspensos por ocasião do julgamento
da ADI proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

O E.
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por seu Órgão Especial, já declarou
a inconstitucionalidade da EC n° 62/2010 em diversas oportunidades.

3.
Descumprimento de precatórios e a Lei de Responsabilidade Fiscal

Algumas
considerações gerais acerca da Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF – se impõem.

3.1
Considerações gerais

Pressionado
pelo FMI, de um lado, que impunha um modelo de instrumento normativo que
pudesse manter o equilíbrio das contas públicas dos países devedores e
atendendo ao clamor da sociedade, de outro lado, que exigia o restabelecimento
da moralidade pública seriamente atingida pela crise moral que se abateu sobre
as nossas instituições políticas na década de noventa, veio à luz, à toque de
caixa, a Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF – com a aprovação e sanção da Lei Complementar n° 101, de 4 de maio de
2000.

Essa
lei teve por escopo, como o próprio nome está a indicar, a implantação de uma
política de gestão fiscal responsável combatendo as duas principais fontes de
desperdícios de recursos públicos denunciadas pela população em geral: (a) o
gasto excessivo com as despesas com pessoal a partir do advento do chamado
“cargo em comissão” introduzido pela Revolução de 19644; (b) despesas excessivas com pagamento do serviço da
dívida pública5.

Somando-se
as duas despesas pouco restava para as despesas de capital, notadamente para as
de investimento. Procurou-se, desta forma, promover o estreitamento dos dois canais por onde os recursos financeiros,
obtidos à dura pena, costumavam escorrer com voracidade e de forma desordenada.
Esses desperdícios de verbas eram invariavelmente compensados com a brutal elevação
da carga tributária. Foi assim que o nível de tributação passou da ordem de 20,41% do PIB do final da década
de noventa para os

atuais
37% do PIB.

Para
conter a escalada de verbas públicas a LRF instituiu no Capítulo IX (arts. 48 a
59) os mecanismos de transparência, controle e fiscalização da despesa pública privilegiando
o princípio da publicidade, com o fito de possibilitar o exercício da
cidadania. Outrossim, para frear as desapropriações em massa a LRF dispôs em
seu art. 16, § 4º, II que as desapropriações de imóveis urbanos a que se refere
o § 3º, do art. 182 da CF6 depende de estimativa do impacto
orçamentário-financeiro no exercício em que deva entrar em vigor e os dois
subseqüentes, além da declaração do ordenador da despesa de que o aumento tem adequação
orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual e compatibilidade com o
plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias.

Outrossim,
regulou a política de pessoal e de crédito público, de forma minudente, dentre
outras coisas, e tutelou penalmente as normas da Lei de Responsabilidade Fiscal
com a aprovação e sanção da Lei n° 10.028, de 19 de outubro de 2000,
criminalizando as condutas que, antes, configuravam muitas delas, simples
infrações administrativas.

3.2
Da inovação do conceito de dívida consolidada pela LRF

Dívida
consolidada ou dívida fundada é aquela contraída a longo prazo. Ela tem caráter
estável não variando de acordo com o fluxo de receitas e despesas como ocorre
com a dívida flutuante, contraída a curto prazo. Normalmente, a dívida fundada
destina-se a investimentos rentáveis e duráveis.

No
nosso sistema jurídico-constitucional, o não pagamento, pelos Estados e
Municípios, da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, sem motivo de
força maior, enseja, respectivamente, a intervenção da União e do Estado, nos
termos doas arts. 34, V, a, e 35,

I,
da CF.

A
Lei de Responsabilidade Fiscal, preocupada com o crescimento vertiginoso da dívida pública representada
por condenações judiciais, inovou o conceito de dívida consolidada,
prescrevendo no § 7°, do art. 30 que “os
precatórios judiciais não pagos durante a execução do orçamento em que houverem
sido incluídos integram a dívida consolidada, para fins de aplicação dos
limites.”

O
objetivo desse preceito legal é o de colocar tudo sob o rígido controle do
limite global do montante da dívida consolidada a ser definido por Resolução do
Senado Federal, nos termos do inciso VI, do art. 52, da CF.

Foi
a fórmula que o legislador encontrou para tentar reverter essa cultura do
calote de precatórios pelo emprego do mecanismo limitador da expansão de
crédito público por parte de entes políticos inadimplentes relativamente a
dívidas oriundas de condenação judicial.

Na
prática, porém, esse § 7° não vem
alcançando os resultados almejados. Os governantes começam por descumprir a
expressa determinação constitucional deixando de incluir na Lei Orçamentária Anual
do exercício seguinte os valores de precatórios requisitados tempestivamente
(até o dia 1° de julho de cada ano) para pagamento até o final desse exercício
(art. 100, § 5 °, CF).

Do
pouco que se inclui paga-se, anualmente, uma parcela mínima desviando-se a sua maior parte para outras despesas
que alcançam repercussão positiva na
mídia7. Pagar precatório “não dá IBOP”.

Assim,
diminuiu-se consideravelmente o montante da dívida a ser incluída no rol de
dívida consolidada. O que é pior, nem sempre essa inclusão é feita. Resultado:
os precatórios inadimplidos vêm sendo pagos
com verbas do exercício consignados diretamente ao Poder Judiciário e não com a
dotação orçamentária para pagamento da dívida consolidada como deveria ser.

Esse
§ 7°, norma moralizadora, que já não vinha sendo cumprido em sua integralidade,
agora, foi esvaziado pela EC n° 67/2010, fruto da Pec nº 12 que nós a
apelidamos de “obra do Satanás”.

Essa
Emenda, aprovada por pressões de maus governantes, suspendeu a aplicação do § 5°, do art. 100, da CF em
relação às entidades políticas devedoras de precatórios na data da promulgação
da citada Emenda, ou seja, em 9-12-2009, favorecendo quase a totalidade dos
Estados-membros e dos Municípios inadimplentes. Falta coerência legislativa ao
esvaziar o conteúdo das normas da LRF.É uma lástima que um Estado, que age com
tamanho rigor contra seus cidadãos no processo de transferência compulsória da
parcela da riqueza produzida sujeitando-os, inclusive, às penas privativas de liberdade,
continue ignorando a situação desses mesmos cidadãos enquanto credores do
Estado.

Espera-se
que o STF julgue rapidamente o pedido de liminar na ADI n° 4.357 proposta pelo
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil contra os dispositivos da EC
n° 62/2009 na esteira da decisão tomada em sede de medida cautelar na ADI n°
2.362-DF que atacou o art. 78 do ADCT,
que instituiu a moratória de 10 anos. Como se recorda, a Corte Suprema declarou a inconstitucionalidade
da expressão “os precatórios pendentes
na data da promulgação desta Emenda” constante daquele art. 78, a fim de excluir os efeitos da moratória os
precatórios acobertados pelo princípio da coisa julgada.

Na
EC nº 62/2009 vários dispositivos violam o princípio da coisa julgada, a
começar pelo caput do art. 97 do ADCT que inclui na moratória os
precatórios vencidos na data da promulgação da Emenda, dia 9-12-2009, alcançando os débitos remanescentes das duas

moratórias
anteriores.

Nesse
particular o STF poderia conceder a medida cautelar tendo em vista o precedente
jurisprudencial para excluir, desde logo, os precatórios pendentes de pagamento
na data da Emenda n° 62, eliminando, de
vez, o clima de absoluta insegurança jurídica que reina e

que
vem impedindo, inclusive, o pagamento desses precatórios, mesmo havendo
recursos financeiros de monta depositados à disposição da Justiça.

SP,
10-03-11.

Notas:

1 IF
492/SP, Rel. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, por maioria de votos, DJ de
01-08-2003, p. 00111; no mesmo sentido
as seguintes decisões do Pleno: IF 2772/SP, Rel. Min. Marco Aurélio e IF
2926/SP, Rel. Min. Marco Aurélio; decisões monocráticas: IF 4426/SP, Rel. Min.
Maurício Corrêa, DJ de 11-12-2003, p. 006; IF 1909/DF, Rel. Min. Maurício
Corrêa, DJ de 19-12-2003, p. 041 e IF 3728/SP, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de
19-12-2003, p. 045.5

2 O
rigor dessa moratória veio a ser abrandado pela EC nº 37/02 que inseriu os arts.
86 e 87 ao ADCT. liberados ou depositados em juízo, os precatórios pendentes na
data de promulgação desta Emenda e os
que decorram de ações iniciais ajuizadas
até 31 de dezembro de 1999 serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido
de juros legais, em prestações anuais,
iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez
anos, permitida a cessão dos créditos.

3 Desapropriação
doutrina e prática. 8ª ed. São Paulo: Atlas 2009, p. 174-177.

4 A
Ditadura se foi, mas o “cargo em comissão” continua firme como uma rocha
resistindo heroicamente aos ventos que sopram na nova República.

5 As
desapropriações desenfreadas em muito contribuíram para o crescimento da dívida
pública.

6 Art.
182. A plítica de desenvovimento urbano, executada eplo Poder Público
municipal, conforme diretrizes gerais
fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pelno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e garantir o bem-estar
de seus habitantes.

…………………………………..


As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa
indenização em dinheiro”.

7 Verifica-se,
por exemplo, do exame de contas do Executivo municipal de São Paulo pela E. Câmara
Municipal, relativas ao exercício de
2009, que foram requisitadas naquele exercício R$1,5 bilhão e a Prefeitura paulistana só incluiu no orçamento
R$830 milhões, tendo pago apenas R$112 milhões, ou seja, 1,04% da dívida, enquanto mantinha aplicado no
mercado financeiro R$3,7 bilhões. Cometeu-se crime de responsabilidade política; crime de
prevaricação e atos de improbidade administrativa, sem que, até hoje, nenhuma medida tenha sido tomada pelas esferas
competentes.

*
Jurista, com 22 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy
Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico Titular da cadeira nº 7 (Bernardo
Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Sócio fundador
do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica
do Município de São Paulo.

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kiyoshi@haradaadvogados.com.br

Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. Precatórios descumpridos e a Lei de Responsabilidade Fiscal. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-administrativo/precatorios-descumpridos-e-a-lei-de-responsabilidade-fiscal/ Acesso em: 09 jul. 2025