Direito Constitucional

Modelo de recurso extraordinário interposto por parte do Estado – irregularidades em Projeto

EXMO. SR. DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO ….

APELAÇÃO CÍVEL Nº …….

APELANTE: ESTADO DE …..

APELADO: ……..

O ESTADO DE ……., já devidamente qualificado nos autos do processo em que contende com ….., não se conformando, data venia, com a r. decisão deste Egrégio Tribunal, que houve por bem dar provimento parcial à remessa ex officio, vem, mui respeitosamente, interpor

RECURSO EXTRAORDINÁRIO

em conformidade com o que dispõe o artigo 102, inciso III, alínea “a”, da Constituição Federal, para o Colendo Supremo Tribunal Federal, visando desconstituir, parcialmente, o v. acórdão, pelo que junta à presente as suas razões de recurso, como de direito.

Nesses Termos,

Pede Deferimento.

[Local], [dia] de [mês] de [ano].

[Assinatura]

EGRÉGIO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

APELAÇÃO CÍVEL Nº ………

RECORRENTE: ESTADO ………

RECORRIDO: ……….

O ESTADO DE ……., já devidamente qualificado nos autos do processo em que contende com ….., não se conformando, data venia, com a r. decisão deste Egrégio Tribunal, que houve por bem dar provimento parcial à remessa ex officio, vem, mui respeitosamente, interpor

RECURSO EXTRAORDINÁRIO

pelos motivos de fato e de direito a seguir aduzidos.

RAZÕES RECURSAIS

COLENDA SUPREMA CORTE,

DOS FATOS

Constituem fatos incontroversos necessários ao julgamento do presente recurso:

1.O recorrido é um conhecido político de Alagoas, que sempre obteve bom desempenho nos pleitos em que se candidatou;

2. enquanto esteve à frente da Secretaria de Planejamento do Estado de …………….., no Governo do Senhor …………, lançou o “Projeto ‘………….'”, visando abrigar e educar menores abandonados;

3. por estarem pairando suspeitas de irregularidades em torno do referido Projeto, o então Vice-Governador do Estado, Dr. …………….., “considerando a necessidade de esclarecer a opinião pública sobre as atividades do Projeto ………………..”, baixou, no exercício da Governadoria, a Portaria n. 18, de 7 de janeiro de 1988, nomeando uma Comissão de Sindicância, com o objetivo de “procederem a rigorosa sindicância sobre o referido Projeto, particularmente no tocante ao levantamento e emprego de recursos arrecadados diretamente da população”;

4. a Comissão de Sindicância, ao apurar o caso, concluiu que existiam, de fato, irregularidades em torno do Projeto “…………..”, opinando pela sumária exoneração do recorrido, por se tratar de cargo de confiança, demissível ad nutum, devendo as demais responsabilidades ser apuradas pelos órgãos competentes;

5. tendo sido a “notitia criminis” enviada ao Ministério Público estadual, houve a determinação de abertura de inquérito policial, na estrita forma da legislação aplicável;

6. em 9 de maio de 1988, seguindo o procedimento prático e comum antes da Constituição 5 de outubro de 88, o recorrido procedeu a sua identificação criminal;

7. após a conclusão do inquérito policial, a Procuradoria Geral de Justiça, diante dos indícios da existência do crime e de sua autoria, denunciou o recorrido por crime de peculato;

8. o magistrado processante do delito, após verificar a presença dos seus pressupostos, recebeu a denúncia, prosseguindo, em conseqüência, à instrução criminal;

9. após todo o trâmite do processo criminal, seguindo a orientação do Ministério Público em suas alegações finais, o Tribunal de Justiça, por seu órgão pleno, decidiu que “não havendo prova de haverem os indiciados praticado os crimes previstos a denúncia, devem ser eles absolvidos, nos termos do artigo 386 – VI do Código de Processo Penal”;

10. durante o período em que estava respondendo pelo processo criminal, o recorrido teve a sua imagem pública denegrida, em face da divulgação, pelos meios de comunicação locais, de matérias negativas a seu respeito. Em razão da campanha engendrada pelos meios de comunicação, o recorrido, candidato a Prefeito de ………….. no pleito de 1988, obteve apenas 552 votos, bem abaixo do número de votos que costumava obter na Capital, em eleições anteriores. Por este motivo, optou o recorrido por ir morar no Rio de Janeiro, onde possuía grande prestígio como jornalista e já tinha um projeto para escrever um livro sobre a política alagoana.

Estes são os fatos, não havendo quanto a eles nenhuma controvérsia. A valoração das provas, portanto, é totalmente desnecessária, não incidindo, no caso, a vedação da súmula 279 do STF.

DO DIREITO

Com base nestes fatos, a 1a Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas, confirmando, em parte, a v. sentença monocrática, assim decidiu, resumidamente:

1. por conta da divulgação dos fatos relacionados com o Projeto “…………..”, o recorrido foi submetido a um desgastante processo de desmoralização e execração pública, somente corrigido quando do decisum absolutório proferido na instância superior;

2. “a apuração dos fatos atinentes ao Projeto ‘…………..’ produziu uma cadeia de efeitos lesivos, atingindo o autor em sua honra e imagem de homem público, fruto de uma imputação caluniosa, o que gerou seqüelas de ordem moral, traduzidas na crescente diminuição do conceito e do prestígio político desfrutados pelo Autor” (fls. 115). Razão pela qual, confirmou-se a sentença no que tange à condenação do Estado pelos danos morais, com a ressalva da forma de sua execução (v. fl. 117);

3. quanto ao dano material, a Corte Estadual decidiu que “inexiste nos autos qualquer tipo de prova quanto a tal lesão, sequer um único documento foi anexado para a devida comprovação do alegado. Por outro lado, não se pode entender como dano patrimonial a derrota sofrida na eleição para Prefeito de ………….. (…). Assim sendo, há que se inacolher a pretensão indenizatória manifestada no aspecto inerente ao dano patrimonial” (fl. 115);

4. por fim, após analisar a responsabilidade do Estado, o v. acórdão conclui que o decisum de 1º grau merece reparo em dois aspectos: 1. quando acolhe a pretensão ressarcitória por danos materiais; 2. quando determina a apuração dos danos morais mediante perícia, em liquidação, ao passo que o correto seria determinar a liquidação por artigos, vez que há necessidade de se provar fatos novos para determinar o valor da condenação.

A responsabilidade civil do Estado pela reparação dos supostos danos morais e à imagem causados ao recorrido foi fundamentada pela Corte de Justiça Estadual unicamente com base em dispositivos constitucionais, quais sejam:

“Art. 5º. (…)

V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além de indenização por dano material, moral ou à imagem; (…)

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

E mais:

“Art. 37. (…)

§ 6o – As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

Tendo como únicos fundamentos os dispositivos constitucionais acima transcritos, mostra-se irrefutável o cabimento do presente Recurso Extraordinário, não incidindo, na hipótese, a vedação da súmula 283 do STF. Vale dizer: não se valeu o v. acórdão, para condenar o Estado a indenizar o recorrido, da responsabilidade subjetiva, mas tão somente da responsabilidade objetiva, sem culpa.

Ao cabo da presente petição, será demonstrado que o v. acórdão contraria frontalmente o próprio §6o, do art. 37, da Constituição, que lhe serviu de fundamento, razão pela qual merece ser reformado, afastando-se, integralmente, a responsabilidade civil do Estado.

Qunato ao prequestionamento, a matéria foi amplamente debatida nos autos. Aliás, o próprio ponto nodal da questão é, justamente, saber se, no caso, está configurada ou não a responsabilidade civil do Estado e se, em conseqüência, tem o Poder Público o dever de indenizar os danos morais sofridos pelo recorrido, em razão de haver procedido a investigação criminal de um suposto delito por ele cometido e que, ao final do processo-crime, foi julgado improcedente, decretando-se a sua inocência por insuficiência de provas.

As premissas para o reconhecimento da responsabilidade do Estado foram as seguintes: 1. o recorrido foi submetido a investigação criminal, cujo procedimento foi desencadeado por uma portaria do Chefe do Executivo, e, em razão da divulgação sensacionalista dos fatos pela imprensa local, a sua imagem pública foi denegrida; 2. a Comissão de Sindicância, logo no início, não foi capaz de elucidar toda a questão, devendo ter propiciado aos sindicados o contraditório e a ampla defesa; 3. o prosseguimento do inquérito pela autoridade policial, com o posterior oferecimento da denúncia pelo Ministério Público, seguido do seu recebimento pelo magistrado processante, ocorreram de forma equivocada por parte dos agentes públicos respectivos; 4. a responsabilidade civil do Estado é objetiva, fundada no risco administrativo, dispensando a prova da culpa da Administração, bastando tão somente o nexo de causalidade entre a conduta e o dano; embora escamoteadas por uma aparente legalidade ou licitude, houve abuso de direito por parte dos agentes públicos, cabendo a Administração responder pelas conseqüências danosas que dele resultar.

Conforme será demonstrado, essas premissas são falsas e completamente contrárias ao que determina o §6o, do art. 37, da Constituição Federal, ressalvado, é óbvio, ao que tange à doutrina da responsabilidade civil do Estado que, realmente, é objetiva, dispensa a prova da culpa, sendo necessário tão somente a demonstração do nexo de causalidade entre a conduta e o dano.

Ao fim destas razões, chegaremos às seguintes conclusões, bastantes ao acolhimento do presente recurso:

1. malgrado seja a responsabilidade do Estado objetiva, fundada na teoria do risco administrativo, cuja comprovação não exige a demonstração de culpa por parte do Poder Público, é irrefutável que a Administração não responde por atos de terceiros, no caso, a imprensa. Em outras palavras: os danos causados à imagem do recorrido, de fato, existiram, mas foram causados unicamente por atos da imprensa local, razão pela qual o Estado não pode ser responsabilizado;

2. não houve nexo de causalidade entre os atos dos agentes públicos e os danos sofridos pelo autor;

3. os agentes públicos, jungidos que estão ao princípio da legalidade e da oficialidade, têm o dever de impulsionar a persecução criminal. No caso, a autoridade policial agiu dentro do estrito cumprimento de seu dever legal, sendo certo que, antes da Constituição de 1988, não constituía constrangimento ilegal a submissão do indiciado à identificação criminal. Da mesma forma, o Promotor de Justiça ofereceu a denúncia seguindo seu dever funcional, e o juiz a recebeu de acordo com a sua íntima convicção, ainda perfunctória, resultante de um juízo provisório e preliminar, sendo certo que os atos jurisdicionais, salvo previsão legal, não ensejam a responsabilidade civil em caso de eventual erro;

4. o Estado não pode ser responsabilizado civilmente por atos legítimos de persecução criminal, que se deram dentro dos limites autorizados por lei, e em obediência ao due process of law, porquanto os ônus decorrentes de uma persecutio criminis são normais, inerentes à própria natureza da processo, devendo ser suportados pelos administrados em nome do interesse público;

5. o jus puniendi não apenas é um direito do Estado, como também um dever, mormente em face da entronização do princípio da moralidade no texto constitucional;

6. o recorrido foi absolvido por insuficiência de provas, o que demonstra que os atos de persecução criminal foram não apenas lícitos e legais como, igualmente, legítimos, afastando toda e qualquer responsabilidade objetiva do Estado, até porque os danos foram causados não pela persecução penal, mas pelas maliciosas e sensacionalistas notícias veiculadas pela imprensa, notícias estas das quais o Estado não teve qualquer participação;

7. por fim, mas não menos importante, com base no critério da dimensão de peso e importância dos princípios constitucionais, verificar-se-á que o interesse público, decorrente da elucidação dos fatos supostamente irregulares, deve prevalecer no caso em questão, pois este foi e é o valor constitucional que o ordena-mento jurídico, em seu conjunto, desejou – e deseja – ver preservado, principalmente por se tratar o recorrido de um homem público, sujeito a uma fiscalização social mais rigorosa.

Constitui ponto pacífico: a responsabilidade extracontratual do Estado por danos derivados de comportamentos administrativos de seus agentes é objetiva, ou seja, independe da culpa do agente. É o que se extrai de uma adequada ilação do dispositivo constitucional insculpido no § 6o, art. 37:

“§ 6º – As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”

Com efeito, evoluindo da total irresponsabilidade dos atos praticados pelos agentes públicos, em decorrência do princípio norteador dos regimes absolutistas segundo o qual o rei nunca erra (“the king can no wrong”), o conceito de responsabilidade pública da Administração, sempre crescendo em direção à proteção dos Administrados, atingiu um estágio de evolução – compatível com o espírito democrático e solidário de um Estado de Direito – pelo que a obrigação de indenizar surge tão só da equação: FATO + DANO + NEXO CAUSAL. É a Teoria do Risco Administrativo, na qual a jurisprudência pátria tem-se firmado:

“RESPONSABILIDADE CIVIL DO PODER PÚBLICO – TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO – EXEGESE. De acordo com o art. 37, § 6º, da CF, as pessoas jurídicas de direito público respondem pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros. Nosso legislador constitucional adota a teoria do risco administrativo, e por esta não se exige a prova da culpa do agente público. São suficientes para caracterizar a sua responsabilidade a prova do dano causado pelo agente público e o nexo causal entre a ação do agente e os danos” (STJ – Ac. unân. da 1ª T. publ. em 8-11-93 – Rec. Esp. 38.666-7-SP – Rel. Min. Garcia Vieira – Advs.: Maria Beatriz de Biagi Barros e Carlos Alberto de Freitas).

Quanto a esta matéria, o v. acórdão não destoou, consignando expressamente ser, realmente, objetiva a responsabilidade extracontratual do Estado.

Bastam, portanto, a demonstração de apenas três fatores para que se configure responsabilidade da Administração, a saber:

a) que haja um fato, uma ação ou omissão de um agente estatal (lato sensu), implicando tal conduta ou ação num evento danoso;

b) que haja um dano, ou melhor, uma vítima lesada em decorrência daquele fato comissivo ou omissivo;

c) e finalmente, que haja um nexo de causalidade entre o fato e o dano, ou seja, um vínculo entre a causa e o efeito.

Feitas essas brevíssimas anotações teóricas acerca da responsabilidade civil do Estado, passemos à análise da primeira premissa hábil a exonerar o Estado de Alagoas de qualquer responsabilidade no presente caso: a Administração não responde por atos de terceiros.

Ensina a moderna doutrina administrativista, cujas lições são integralmente ecoadas na jurisprudência pátria, que o Estado não responde objetiva-mente por atos de terceiros, que não sejam agentes públicos. Em casos tais, a responsabilidade do Estado é condicionada à demonstração da culpa do serviço público (faute du service). Nesta hipótese, explica DI PIETRO, “o Estado responderá se ficar caracterizada sua omissão, a sua inércia, a falha na prestação do serviço público” (Direito Administrativo. 10a ed. Atlas, São Paulo, 1999, p. 425). É o caso, por exemplo, de danos causados por delinqüentes ou por multidão: a responsabilidade estatal fica jungida à demonstração da omissão culposa do Estado.

No caso dos autos, os danos morais causados à imagem do re-corrido – que não se discute – não se deu por ato da Administração, mas – isto sim – única e exclusivamente pela “malévola publicidade promovida” (fl. 10). Tanto é verdade que, em seu pedido, suplica o recorrido pela condenação do Estado pelos “danos morais conseqüentes da publicidade da calúnia forjada pelos agentes do Réu e que denegriu a sua reputação, assegurando-lhe, às expensas dele, Réu, o direito a uma reparação pela divulgação da verdade dos fatos através dos mesmos meios de comunicação usados para noticiar a calúnia e na mesma proporção…” (fl. 26).

Ora, quem divulgou os fatos – de forma, a princípio, maldosa – foi a imprensa. Esta – e somente esta – é quem deve responder pelos danos causados à imagem do recorrido.

Com efeito, o Estado, na atual fase de evolução do nosso constitucionalismo, não possui nenhuma interferência no que concerne ao controle dos meios de comunicação. A Carta Magna é bastante clara quanto a isto:

“art. 5º (…). IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

“art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

§ 1º – Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

§ 2º – É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.

Não há que se falar, desta forma, em omissão culposa: o Estado não tem o dever – nem mesmo a faculdade, assinale-se – de interferir nos meios de comunicação de massa, salvo naquelas excepcionais situações discriminadas na própria Carta Magna. Esta constatação é ainda mais marcante se levarmos em conta que o princípio da publicidade informa, por força mandamental da Lei Fundamental, os atos da Administração Pública (art. 37, caput, da CF/88). Assim, o Poder Público estadual não pode ser responsabilizado, de qualquer forma, por atos praticados pela imprensa: já vimos que o Estado não responde por atos de terceiros.

Dessume-se, portanto, que ação deveria ter sido instaurado contra os meios de comunicação que divulgaram as matérias que denegriram a imagem do recorrido, nunca contra o Estado.

Explica CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO que, “nos casos de responsabilidade objetiva o Estado só se exime de responder se faltar o nexo entre o seu comportamento comissivo e o dano. Isto é: exime-se apenas se não produziu lesão que lhe é imputada ou se a situação de risco inculcada a ele inexistiu ou foi sem relevo decisivo para a eclosão do dano” (Curso de Direito Administrativo. 5a ed., Malheiros, São Paulo, 1994, p. 498).

Sem receito de equívoco, não se faz presente, na hipótese dos autos, o nexo de causalidade, que é um pressuposto fundamental à configuração da responsabilidade extracontratual do Estado. É óbvio que, sem a instauração do processo, não haveria a divulgação de sua existência – naturalmente não. Contudo, é de evidência solar que a mera existência do processo não foi a causa precípua do dano (conditio sine qua non). Não se deveu a ele a produção do evento lesivo. Ou seja: inexistiu a relação causal que ensejaria a responsabilidade do Estado.

A pergunta que se faz para resolver toda a questão é a seguinte: a lesão à imagem do recorrido foi determinada por algum comportamento do Estado? É evidente que não. Afinal, não foi o Estado quem veiculou as notícias que denegriram a boa reputação do recorrido.

No caso, responsabilizar o Estado pelos danos à imagem do re-corrido, seria o mesmo que, num processo criminal, condenar os pais de um assassino pela prática de um homicídio; afinal, se os pais do criminoso não o tivessem posto no mundo, o crime nunca teria ocorrido. O absurdo deste falso silogismo, mutatis mutandis, é o mesmo que se faz ao reconhecer a responsabilidade do Estado neste caso.

A lição dos penalistas podem ser – e são – bastante úteis para aferir a existência ou não do nexo de causalidade (“vínculo de conhecimento”) no caso ora em debate. Dizem eles que “somente no caso em que se verifique uma interrupção de causalidade, ou seja, quando sobrevém uma causa que, sem cooperar propriamente com a ação ou omissão, ou representando uma cadeia causal autônoma, produz, por si só, o evento, é que este não poderá ser atribuído ao agente, a quem, em tal caso, apenas será imputado o evento que se tenha verificado por efeito exclusivo da ação ou omissão” (TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5a ed. Saraiva, São Paulo, 1999, p. 112). Portanto, extrai-se que nem tudo quanto contribui, in concreto, para o resultado é causa, sob pena de levar ao infinito, regressivamente, a cadeia causal. É a teoria da conditio sine qua non, pela qual só há de haver um vínculo causal normativo derivado da própria causalidade material ou concreta. Assim, na correta advertência de BAUMANN, quando falamos em nexo de causalidade, queremos significar somente a relação existente entre a ação e o resultado imediatamente derivado da ação.

Trazendo essas abstratas teorias para a concreta hipótese dos autos, percebe-se, sem muitas dificuldades, que a divulgação da notícia pelos meios de comunicação foi causa superveniente, absolutamente independente da ação estatal, que, por si só, produziu o resultado danoso, qual o de macular a imagem do recorrido.

Conclui-se, neste ponto, que, ante a ausência de nexo de causalidade entre a ação dos agentes estatais e o dano à imagem do autor, a responsabilidade extracontratual do Estado deve ser afastada. Afinal, como já decidiu o Pretório Excelso, “fora dos parâmetros da causalidade não é possível impor ao Poder Público o dever de indenizar” (RE 159.925-SP, Rel. Min. ILMAR GALVÃO).

III.IV – O DEVER DE IMPULSIONAR A PERSECUÇÃO CRIMINAL

Um ponto fundamental à justa solução do caso concreto ora em debate é saber se houve alguma forma de abuso de poder no procedimento de persecução criminal impulsionado pelos agentes estatais ou se, ao contrário, tal procedimento pautou-se dentro dos estritos limites da legalidade e, sobretudo, da legitimidade.

Nesse diapasão, antes de mais nada, é preciso assinalar que constitui dever de todos os agentes públicos, em todos os níveis e graus, levar ao conhecimento da autoridade competente as irregularidades de que tenha ciência em razão do cargo. Trata-se, no caso, de um dever que ganhou ainda mais importância em face da constitucionalização do princípio da moralidade administrativa, inserto no caput do art. 37, da CF/88.

A não obediência, por parte do agente público, deste dever funcional pode configurar, inclusive, o crime de prevaricação ou de condescendência criminosa, tipificados, respectivamente, nos arts. 319 e 320, do Código Penal pátrio (“retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal” e “deixar o funcionário, por indulgência, de responsabilizar subordinado que cometeu infração no exercício do cargo ou, quando lhe falte competência, não levar o fato ao conhecimento da autoridade competente”).

No caso ora em debate, à época em que os fatos vieram à tona, havia fortes indícios e rumores de que, efetivamente, estavam ocorrendo irregularidades em torno do Projeto “…………..”. Tais rumores não só podiam como deveriam, em nome do princípio da moralidade, ser apurados minuciosamente. E assim ocorreu.

Ao formar a Comissão de Sindicância, o Governador do Estado, em exercício, nada mais fez do que concretizar, isto é, realizar o princípio constitucional da moralidade, seguindo o dever que lhe é imposto por lei, qual o de não condescender com crimes supostamente cometidos por um agente público por ele nomeado, sob pena de ser-lhe imputado crime comum e mesmo de responsabilidade.

As conclusões a que chegou a Comissão foram perfeitamente normais e adequadas à espécie: exonera-se o ocupante de cargo em comissão (nem precisaria de sindicância para isto) e remetem-se os autos à autoridade competente (Ministério Público) para que seja apurada, na forma devida e legítima, a responsabilidade criminal. Onde estaria o abuso?

O membro do Parquet, ciente de que aquele sindicância não continha elementos bastantes para o oferecimento da denúncia, ato contínuo, deter-minou a abertura de inquérito policial para que fosse aferida com mais pormenores e precisão a presença dos pressupostos necessários ao oferecimento da ação penal pública. Onde estaria o abuso?

O delegado de Polícia, obrigado que está a instaurar o inquérito, agiu corretamente durante todo o iter procedimental, inclusive no que tange à identificação criminal do indiciado, tendo em vista que, à época (antes da CF/88), tratava-se de uma praxe comum, que não constituía constrangimento ilegal, conforme, inclusive, havia sumulado este Egrégio Supremo Tribunal Federal (súmula 568 do STF: “a identificação criminal não constitui constrangimento ilegal, ainda que o indiciado já tenha sido identificado civilmente”). Onde estaria, portanto, o abuso?

Seguindo a ordem dos fatos e o mesmo raciocínio:

O órgão ministerial, agindo com a atenção e cuidado que lhe são próprios, analisou acuradamente os fatos alegados e os indícios de materialidade delituosa e de sua autoria, contidos no inquérito, concluindo pela existência dos pressupostos necessários para oferecimento da denúncia. Por essa razão, dada a indisponibilidade da ação penal pública, outra opção não teve: apresentou a denúncia. Onde estaria o abuso?

Em seguida, o douto magistrado processante do feito, analisando perfunctoriamente a peça delatória, como há de ser em casos tais de juízo provisório, vislumbrou a presença dos requisitos para o seu recebimento, restando-lhe tão somente recebê-la e impulsionar o seu processamento. Se, anos depois, os réus foram absolvidos por insuficiência de provas, ter-se-á, então, uma nova verdade processual, mas não se poderá dizer que o juiz, ao receber a denúncia, cometeu algum erro ou abuso; afinal, naquele momento, o recebimento da denúncia estava perfeitamente justificado. Ademais, não é despiciendo lembrar que a responsabilidade objetiva do Estado não se aplica aos atos do Poder Judiciário em sua função jurisdicional, a não ser nos casos expressamente declarados em lei. Onde estaria, então, o abuso?

É certo que, ao término da instrução criminal, o Tribunal de Justiça do Estado absolveu todos os indiciados, seguindo a própria opinião do Ministério Público, titular da ação penal. Mas absolveu por não existirem nos autos provas suficientes à condenação, conforme consignou a ementa do acórdão: “não existindo prova suficiente dos acusados haverem praticado os crimes imputados na denúncia, serão os mesmos absolvidos nos termos do art. 386 – VI Código de Processo Penal” (fl. 59).

Por certo, se abuso houve, foi apenas na mentalidade fértil e maliciosa da imprensa, que, a despeito do princípio constitucional de presunção de inocência, estigmatizou o recorrido como um criminoso, divulgando os fatos que ainda estavam sub judice, como se verdades fossem. Quanto a isto, o Estado nada poderia fazer, jungido que estava à obediência ao princípio constitucional da liberdade de expresssão.

No mais, é preciso ter em mente que a simples movimentação da máquina persecutória criminal não constitui ato lesionador de direito individual. Todos os atos do agentes públicos, portanto, estavam e estão inseridos “em um sistema que, tendo por corolário o dever do Estado, objetiva a prestação da segurança pública, a apuração das infrações penais e a punição dos infratores” (cf. voto vencedor do Min. Maurício Corrêa, proferido na ADIn 1.517-UF).

Nesse sentido, de acordo com a lição de RUI STOCO, “a simples improcedência da ação penal não acarreta a responsabilidade civil para o vencido” (Responsabilidade Civil e sua Interpretação Jurisprudencial, 2ª ed., Ed. RT, SP, 1995, pág. 247).

Sobre o assunto, o Tribunal Federal de Recursos, em seu tempo, teve a oportunidade de se manifestar, consignando com clareza:

“RESPONSABILIDADE CIVIL. ATOS DE PERSECUÇÃO PENAL. ABSOLVIÇÃO. INDENIZAÇAO POR DANOS. Não há responsabilidade civil do Estado, em face de danos eventualmente causados por atos de persecução penal, quando o acusado vem a ser absolvido por falta de prova de sua participação na infração penal, pois que, tanto a decretação da prisão preventiva quanto a admissibilidade da denúncia repousam em juízo provisório da prática delituosa, de todo legítimo” (TFR, AC 98794 – SP, 1a Turma, Rel. Min. Dias Trindade, DJ data 28.02.89).

A lição da doutrina é no mesmo sentido. Como anota YUSSEF SAID CAHALI:

“Não há lugar para a ação de indenização por perdas e danos, no caso de pedido frustrado de abertura de inquérito policial para a apuração de fato havido como delituoso, se não ficar provada a má-fé ou malícia do requerente (‘RT’, vol. 295/200); só se legitima o direito à indenização de danos, ‘quando da denúncia surjam elementos positivos de improcedência grave ou leviandade inescusável’ (‘RT’, vol. 309/178), inadmitido o pedido indenizatório se a representação não se reveste de dolo, temeridade ou má-fé (‘RT’, vol. 249/133). Aliás, neste sentido manifesta-se a doutrina. E SALVAT, cuidando da denunciação caluniosa, a que corres-ponde o artigo 1.090, do Código Civil argentino, ressalta que, neste caso, ‘la denuncia o la querella no constituyen por sí solas el delito; para que éste exista es necesario, como dice el texto de la ley, que la acusa-ción sea calumniosa'” (Dano e Indenização. 1980, págs. 126/127)

Em um outro caso semelhante, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal ainda foi mais incisivo:

“EMENTA: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – INQUÉRITO POLICIAL INSTAURADO EM VIRTUDE DE GRAVE DENÚNCIA FORMULADA POR FAMILIARES DO INDICIADO – VEROSSIMILHANÇA DAS ALEGAÇÕES DOS PARENTES. Diante de denúncia verossímil de familiares, imputando grave crime ao indiciado, não pode o Delegado de Polícia deixar de proceder à instauração do inquérito, presentes a materialidade do delito e indícios de autoria, sob pena de responsabilizar-se criminalmente pela omissão. O ato da autoridade, justificado pelas circunstâncias, não enseja reparação civil, mesmo que o inquérito venha a ser posteriormente arquivado por falta de provas. Recurso conhecido e parcialmente provido, para reduzir a verba honorária” (Apelação Cível 50.802/98, Segunda Turma Cível, Rel. Des. George Lopes Leite)

Com efeito, o que se deve ter em mente é que o processo nada mais é do que o caminho legalmente previsto para apurar alguma conduta tida como ilegal ou irregular. Não se pode, destarte, exigir indenização sempre que os fatos levados ao conhecimento das autoridades públicas acabem por não serem comprovados, com a absolvição dos acusados, mormente em face da insuficiente colheita de provas durante a instrução criminal.

Que constitui poder-dever do Estado exercer a persecução criminal não resta a menor dúvida. O Estado, assim agindo, está plenamente vinculado à satisfação dos interesses públicos (primários, diga-se de passagem). Os indivíduos, portanto, em nome do interesse público que gira em torno da persecução criminal, devem suportar todos os ônus que decorrem dos atos investigatórios estatais: é plena a utilização do brocardo jurídico in dubio pro societate. Esses ônus devem ser suportados individualmente por aqueles que sofrem suas conseqüências, pelo só fato de se viver em sociedade. Em outras palavras: em nome do princípio da prevalência do interesse público sobre o privado, é justo que o indiciado ou acusado suporte os efeitos de um ato praticado no interesse de toda sociedade; afinal, a busca da verdade real na apuração dos crimes cometidos, sobretudo nos crimes de ação penal pública, em que a sociedade é a principal vítima, deve sempre prevalecer.

Nesse sentido, o Des. George Lopes Leite, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em voto vencedor proferido na Apelação Cível 50.802/98, assim decidiu:

“Em caso de dano moral por de abuso de autoridade atribuído a Delegado de Polícia, é mister analisar minuciosamente os fatos, para que se possa aferir as ilegalidades ou arbitrariedades eventualmente praticadas, dentro daquele terreno pantanoso, onde a suspeita do cometimento de crimes graves impõe à autoridade policial, como dever inarredável, a necessidade de sua rigorosa apuração. Aqui se contrapõem interesses individuais e coletivos, e desse embate devem prevalecer, sempre, estes últimos, o que, não raro, acarreta terríveis injustiças contra o suspeito. Esse o preço que se paga por viver em sociedade”.

Mais à frente, arrematou:

“Tenho, portanto, como não caracterizados pressupostos da pretendida reparação, pois o exercício das atribuições cometidas ao agente público, em nome do Estado, manteve-se nos limites da lei. É lamentável o curso tomado na apuração dos fatos, que não resultou em nada que pudesse conspurcar a honra do apelante. Mas, indiscutivelmente, havia a necessidade de dessa apuração, já que os fatos que chegaram ao conhecimento da autoridade policial o obrigaram a instaurar o processo investigatório, pena de responder por crime de prevaricação”.

“A doutrina autorizada de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, seguindo a lição do Prof. OSWALDO ARANHA BANDEIRA DE MELLO, defende que só se configura a responsabilidade fundada na teoria do risco-proveito, se se atentar contra a igualdade de todos diante dos encargos públicos, em lhe atribuindo danos anormais, acima dos comuns, inerentes à vida em socieda-de” (Curso de Direito Administrativo. 5a ed., Malheiros, São Paulo, 1994, p. 506). Em idêntico sentido, CARLOS ARI SUNDFELD:

“quando em pauta a responsabilidade estatal por comportamentos lícitos, mister que o dano sofrido seja anormal (isto é, excedente das inconveniências comuns da vida em socidade) e especial (ou seja, atinja sujeitos determinados, não as pessoas em ge-ral)” (Fundamentos de Direito Público. 4a ed. Malheiros, São Paulo, 2000, p. 183).

Ora, no caso dos autos, as conseqüências suportadas pelo recorrido em decorrência do processo criminal a que respondeu foram naturalmente normais, inerentes à vida em sociedade, principalmente por se tratar o recorrido de um homem público, que trabalha diretamente com o Erário, estando, por conseqüência, sujeito a controles mais rigorosos por parte da população. Seria o mesmo que responsabilizar este Supremo Tribunal Federal por ter recebido a denúncia-crime contra o ex-Presidente Fernando Collor de Mello, mesmo tendo sido ele, posteriormente, absolvido por insuficiência de provas!

Em nome do interesse público, consistente na apuração da verdades dos fatos irregulares supostamente cometidos pelo recorrido, fica patente a legitimidade de todo o procedimento investigatório, não dando ensanchas a qualquer indenização por danos à imagem do recorrido.

As normas constitucionais vivem em permanente estado de tensão latente. Muitas vezes, elas parecem conflitantes, antagônicas até. Essa tensão existente entre as normas é conseqüência da própria carga valorativa inserta na Constituição, que, desde o seu nascedouro, incorpora, em uma sociedade pluralista, os interesses das diversas classes componentes do Poder Constituinte Originário. Esses interesses, como não poderia deixar de ser, em diversos momentos não se harmonizam entre si em virtude de representarem a vontade política de classes sociais antagônicas. Surge, então, dessa pluralidade de concepções – típica em um “Estado Democrático de Direito” que é a fórmula política adotada por nós – um estado permanente de conflito (colisão) entre as normas constitucionais. Como explica MÜLLER, a Constituição é de si mesma um repositório de princípios às vezes antagônicos e controversos, que exprimem o armistício na guerra institucional da sociedade de classes, mas não retiram à Constituição seu teor de heterogeneidade e contradições inerentes, visíveis até mesmo pelo aspecto técnico na desordem e no caráter dispersivo com que se amontoam, à consideração do hermeneuta, matéria jurídica, programas políticos, conteúdos sociais e ideológicos, fundamentos do regime, regras materialmente transitórias embora formalmente institucionalizadas de maneira permanente e que fazem, enfim, da Constituição um navio que recebe e transporta todas as cargas possíveis, de acordo com as necessidades, o método e os sentimentos da época (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. p. 460).

Analisando o presente caso sob uma ótica constitucional, perceber-se-á que se está diante de uma colisão de direitos fundamentais: o direito à imagem do recorrido e o direito da sociedade de apurar os crimes. É mais uma vez o interesse público em confronto com o interesse privado. E qual a solução para este conflito, já que ambos os direitos possuem fundamento constitucional?

Quem nos fornece esta resposta é o jurista RONALD DWORKIN, através do que ele denominou dimensão de peso e importância dos princípios (dimension of weights). Na sua clássica obra Taking Rights Seriously, após expli-car que as regras jurídicas são aplicáveis por completo ou não são, de modo absoluto, aplicada (dimensão do tudo ou nada), o prof. da Universidade de Oxford diz que os princípios “possuem uma dimensão que não é própria das regras jurídicas: a dimensão do peso ou importância. Assim, quando se entrecruzam vários princípios, quem há de resolver o conflito deve levar em conta o peso relativo de cada um deles (…). As regras não possuem tal dimensão. Não podemos afirmar que uma delas, no interior do sis-tema normativo, é mais importante do que outra, de modo que, no caso de conflito entre ambas, deve prevalecer uma em virtude de seu peso maior. Se duas regras en-tram em conflito, uma delas não é válida” (apud ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 65).

Portanto, somente diante do caso concreto será possível resolver o problema da aparente colisão de princípios, através de um ponderação (objetiva e subjetiva) de valores, pois, ao contrário do que ocorre com a antinomia de regras, não há, a priori, critérios formais (meta-normas) e standards preestabelecidos para resolvê-lo. O intérprete, no caso concreto, através de uma análise necessariamente tópica, terá que verificar, seguindo critérios objetivos e subjetivos , qual o valor que o ordena-mento, em seu conjunto, deseja preservar naquela situação.

In casu, afigura-se que o ordenamento jurídico – e, sintomaticamente, a sociedade – deseja preservar mesmo é o interesse público, decorrente da elucidação de irregularidades envolvendo a captação e malversação da verba pública.

A sociedade não suporta mais tanta corrupção, tanto enriquecimento pessoal e ilícito em razão de desvio do dinheiro público. Impõe-se, portanto, o sacrifício daqueles que, assumindo todo o risco, operam e trabalham quotidianamente com o Erário. É justo, pois, que, em nome deste interesse de toda a sociedade, os políticos – e todos os outros agentes públicos – submetam-se a investigações, inquéritos e processos criminais, sempre que houver razões suficientes para tanto. O que não pode são as irregularidades ficarem sem apuração, numa completa institucionalização da impunidade.

Na hipótese dos autos, é certo, o recorrido foi absolvido. Mesmo assim foi legítima a persecução penal, malgrado nada tenha ficado provado. É que a absolvição fundamentou-se pela insuficiência de provas, o que nos leva a crer que a verdade real, provavelmente, nunca chegará à tona. Portanto, se, de um lado, o recorrido sofreu as conseqüências naturais e normais de uma denúncia que se revelou in-fundada por falta de provas, de outro lado, a sociedade, ao que tudo indica, tinha razões suficientes para proceder a investigação criminal.

Por todas essas razões, o presente Recurso Extraordinário deve ser conhecido e provido, restabelecendo-se o direito fundamental da sociedade de, pelo menos, tentar apurar os crimes cometidos envolvendo a verba pública, sem que se corra o risco de se ter sempre e sempre que se indenizar o indivíduo toda vez que nada conseguir ficar, cabalmente, provado. Seria como colocar uma espada de Dâmocles sobre as cabeças dos agentes públicos responsáveis pelas investigações.

A título de corroboração de tudo o que foi exposto, vale colacionar pequeno acervo jurisprudencial em prol do que foi defendido:

“RESPONSABILIDADE CIVIL. CONDENAÇÃO CRIMINAL DESCONSTITUÍDA PELA DÚVIDA. DANO MORAL. INEXISTÊNCIA. A utilização dos meios conferidos por lei às pessoas para realizar um interesse juridicamente tutelado não constitui abuso ou violação de direito de que resulte a obrigação de indenizar, salvo se houver má fé, erro palmar ou injustificável teimosia de quem os emprega” (Apelação cível 37.912, Terceira Câmara Civil, 26 de novembro de 1991, PUBLICADO NO DJESC nº 8.395 – Pág 07 – 10/12/91, Relator: Des. Eder Graf).

“Se é injurídico conceder a alguém, impunemente, a oportunidade de acusar maldosa ou imprudentemente uma outra pessoa, não menos jurídico é tolher aos lesados apontar todos aqueles que, segundo sua persuasão sem malícia, possam lhe ter praticado alguma lesão patrimonial” (RT, 179/796).

“Responsabilidade civil. Ação de indenização por alegada denunciação caluniosa. Improcedência decretada que se confirma. Não constitui ato ilícito requerer o empregador a instauração de inquérito policial para apurar fato delituoso atribuído a empregado, se havia indícios de alguma consistência em tal sentido. Não importa que, a final, tenha sido absolvido o empregado, por insuficiência de provas, uma vez que havia base inicial para o procedimento investigatório policial, no qual se baseou o Ministério Público para o oferecimento de denúncia. Apelo desprovido” (AC 88.081189-7 (48.451), Quarta Câmara Civil, Rel. Des. João José Schaefer, 5 de março de 1998).

“INDENIZAÇÃO – Responsabilidade civil – Dano moral – Reparação devida independente de causar reflexos patrimoniais – Recurso não provido. A avaliação do dano moral deve ser deixada ao Juiz e há de ser concedido em todos os casos, sem indagação do que tenha sido pago a título de dano material. INDENIZAÇÃO – Responsabilidade civil – Dano moral – Inquérito policial, arquivado por falta de provas, imputando ao autor prática de atos delituosos – Inexistência de má-fé ou malícia do requerente da instauração do inquérito – Peritos, ademais, que não afastaram a possibilidade de ter o autor praticado as irregularidades apontadas – Ação improcedente – Recurso provido. O simples pedido de abertura de inquérito, para apuração de fato havido como delituoso, não dá lugar a ação de indenização por perdas e danos, por parte do envolvido na investigação, desde que não provada má-fé ou malícia do requerente” (Apelação Cível n. 196.274-1 – São José dos Campos – Primeira Câmara Civil de Férias – TJSP – 1993).

“RESPONSABILIDADE CIVIL – DANO MORAL – COMUNICAÇÃO DE IRREGULARIDADES PRATICADAS POR ADVOGADOS AO ÓRGÃO REPRESENTATIVO DA CLASSE – ABUSO DE DIREITO NÃO CONFIGURADO – PLEITO REPARATÓRIO DESACOLHIDO – HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS – FIXAÇÃO ADEQUADA – SENTENÇA CONFIRMADA – INSURGÊNCIAS RECURSAIS DESATENDIDAS. Constitui-se apenas em exercício regular de um direito a comunicação por cliente, à Ordem dos Advogados do Brasil, de fatos alegada-mente praticados pelo causídico contratado e que imputa como irregulares. O simples exercício dessa faculdade, ainda que a representação feita venha a ser desacolhida, não gera, por si só, qualquer responsabilidade reparatória para o representante, se não comprovado tenha ele atuado de forma abusiva, com dolo, má-fé ou leviandade inescusável. Não positivados nos autos esses pressupostos subjetivos, improsperável é a ação de reparação de danos morais movida pelos representados, mormente quando foram eles, ainda que de forma branda, apenados pelo Conselho Pleno da entidade classista, em conseqüência da representação feita. Nos julgamentos de improcedência de ação indenizatória, os honorários advocatícios da parte vencedora impõem-se fixados de acordo com a apreciação eqüitativa do julgador, adotada a regra embutida no art. 20, § 4º do CPC. Conquanto não arredada, com isso, a possibilidade de fixação da verba em percentual incidente sobre o valor da causa, é de se manter o arbitramento feito quando o valor conferido a tal título não se revele inadequado ou incondizente com a nobre missão de advogar” (TJSC, Apelação Cível 97.003433-4, Primeira Câmara Cível, rel. Des. Trindade dos Santos, 20 de abril de 1999).

“Quem requer a abertura de inquérito policial, para a apuração da prática de crime de espionagem industrial, e indica os prováveis envolvidos, dando ensejo ao início das investigações policiais e posterior oferecimento de denúncia pelo Ministério Público, desde que não evidenciada a má-fé, age no exercício regular de um direito. A circunstância de que tais fatos tenham sido noticiados em jornal não constitui calúnia ou difamação a justificar pedido de indenização por danos morais” (TJSC, ACV n. 96.001828-0, rel. Des. Eder Graf).

“RESPONSABILIDADE CIVIL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – REPRESENTAÇÃO À AUTORIDADE POLICIAL IMPUTANDO ÀS AUTORAS A PRÁTICA DO DELITO TIPIFICADO NO ART. 172, DO CÓDIGO PENAL – OFERECIMENTO DE DENÚNCIA E POSTERIOR ABSOLVIÇÃO – IRRELEVÂNCIA – AUSÊNCIA DE MÁ-FÉ OU MALÍCIA DO REQUERENTE. O simples requerimento de abertura de inquérito policial, para a apuração de fato tido como delituoso, constitui direito da vítima e, salvo comprovação de ter ela agido com dolo ou má-fé, não dá ensejo a pedido de indenização por dano moral, mesmo que absolvidos os acusados, porque fortes eram os indícios de que realmente haviam praticado o ato típico descrito na denúncia” (Ap. cív. n. 96.006608-0, de Blumenau, rel. Des. Eder Graf, julgada em 24.09.96).

“Não pode o réu ser responsabilizado pela prática de ato ilícito consistente em denunciação caluniosa se a representação por ele feita contra o autor à autoridade policial, não se reveste de dolo, temeridade ou má-fé” (“RT”, vol. 249/133).

“O simples pedido de abertura de inquérito, para apuração de fato havido como delituoso, não dá lugar a ação de indenização por perdas e danos, por parte do envolvido na investigação, desde que não provada má-fé ou malícia do requerente” (“RT”, vol. 290/199).

“Requerer a abertura de inquérito policial para apuração de crime de ação pública constitui direito da vítima” (“RT”, vol. 475/87).

É preciso mais? Cremos que não!

Em conclusão final: a ausência da responsabilidade civil do Estado, no presente caso, por todas as razões expostas, é irrefutável e esférica, isto é, pode ser vislumbrada de qualquer ângulo em que se ponha o operador do direto. Este sim deve ser o entendimento. Os jul-gados acima transcritos levam a esta conclusão.

DOS PEDIDOS

Isto posto, espera o Estado-recorrente que seja o presente Recurso Extraordinário conhecido e provido, decretando-se a total IMPROCEDÊNCIA da ação de reparação de danos aforada pelo recorrido, condenando-o nas custas processuais, e que seja, conseqüentemente, revertido o ônus da sucumbência.

Nesses Termos,

Pede Deferimento.

[Local], [dia] de [mês] de [ano].

[Assinatura]

Como citar e referenciar este artigo:
MODELO,. Modelo de recurso extraordinário interposto por parte do Estado – irregularidades em Projeto. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2017. Disponível em: https://investidura.com.br/modelos/direito-constitucional-modelos/modelo-de-recurso-extraordinario-interposto-por-parte-do-estado-irregularidades-em-projeto/ Acesso em: 28 mar. 2024