Direito de Família

Parecer sobre Guarda Compartilhada e a pandemia de Covid-19

Gisele Leite[1]

Ramiro Luiz Pereira da Cruz[2]

A guarda compartilhada veio estabelecer um regime de convivência que distribui, com equidade, o tempo de convivência que cada genitor ou genitora passa com seus filhos. Evidentemente que, normalmente, as crianças e adolescentes se revezam entre a casa do pai e da mãe, passando algum tempo com cada um.

De certo cabe esclarecer que a guarda compartilhada não será um remédio milagroso para cura de todos os distúrbios familiares, nem que a divisão do tempo entre pais seja sempre pacífica e equilibrada.

Mas, a guarda compartilhada definitivamente cria uma cogestão na autoridade parental, de acordo com grande doutrinador Rolf Madaleno, para que os filhos não percam suas referências afetivas e ocorra a pluralização de responsabilidades, conforme preconiza Maria Berenice Dias e, também, funciona como um freio oportuno para eventual guarda individual nociva.

Enfim, a guarda compartilhada institui o salutar cooperativismo familiar instituindo a convivência harmoniosa de pais separados, onde o trânsito natural da prole entre os dois lares ocorra de forma transparente e, sempre exercida em prol do melhor interesse da criança e do adolescente conforme propõe o imperativo constitucional.

Com o cenário formado e impactado pela pandemia de coronavírus, passamos a vivenciar excepcional situação de quarentena, além da orientação de isolamento social e distanciamento social a fim de evitar o contágio ou a propagação da doença.

Em nosso país, alguns governadores dos Estados adotaram medidas mais severas para a devida contenção da transmissão da Covid-19, entre as quais incluem a suspensão de atividades escolares, imposição de teletrabalho ou home office aos funcionários e servidores e, até mesmo, fechamento do comércio e atividades não-essenciais.

Com esse contexto, surgiram não apenas restrições, cautelas, mas, principalmente, incertezas sendo natural que as pessoas passem a ter dúvidas sobre a viabilidade de manter o compartilhamento da guarda de crianças e adolescentes, conforme pactuado em sentença de guarda compartilhada.

Evidentemente, torna-se temerário que a criança continue a transitar livremente entre as casas de seus pais, e até poderia ocorrer algum fenômeno em que o genitor pode ser impedido de conviver com seu filho, caso tenha sido contaminado pela Covid-19, ou esteja exposto ao vírus com frequência e que seja um forte suspeito de estar com a doença. Tal fato, não impedirá a convivência de forma remota ou on line, através de chamadas por meio de Skype, ou ligações com áudio e vídeo.

Primeiramente, cumpre destacar que o direito de crianças e adolescentes à convivência familiar é direito fundamental com leito constitucional previsto no artigo 227 do vigente texto constitucional brasileiro. O mesmo dispositivo ainda prevê que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar às crianças e adolescentes, com absoluta prioridade, o direito à saúde, sempre colocando-os a salvo de toda forma de negligência.

O questionamento trazido para ser respondido é se a guarda compartilhada deveria ser adaptada em seu exercício em face da pandemia de Covid-19 e demais protocolos sanitários.

Sim. A bem dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, o exercício da guarda compartilhada deve ser adaptado a excepcional situação gerada pela pandemia de Covid-19. Em verdade, o tema da suspensão compulsória da convivência entre pais e filhos em face da pandemia aparentemente coloca em conflitos dois direitos fundamentais.

Pois, por um viés, o filho ou filha tem assegurado, constitucionalmente, o direito à convivência familiar, especialmente com seus pais. Doutro viés, cabe a ambos pais, o Estado e, também à sociedade preservar a saúde de crianças e adolescentes com absoluta prioridade.

Como é sabido, nenhum direito fundamental deverá se sobrepor totalmente ao outro. Sempre deve haver uma solução que, na medida do possível, equalize e respeito ambos os direitos. Foi assim que o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou o afastamento, por quinze dias, o convívio de pai com filha de dois anos de idade, em razão de ter acabado de retornar de país onde o contágio virótico estava consideravelmente disseminado[3].

Assim, ao decidir pelo afastamento compulsório temporário o TJSP[4] preservou a saúde da criança, evitando o contato com pessoa portadora de real suspeita de ter contraído o Covid-19. A Corte paulista fora igualmente razoável ao estabelecer que o afastamento não se prolongasse mais tempo do que o necessário.

Eis, portanto, que a medida de afastamento compulsório temporário é possível e, quiçá, recomendável quando a convivência apresentar real risco à saúde da criança. Também determinou que o referido afastamento deverá cessar assim que houver condições para plena retomada do convívio familiar.

Diante de variados acordos e sentenças de guarda compartilhada que possuem regras de convivência norteadas pela rotina escolar das crianças e com as aulas suspensas, havendo crianças e adolescentes fora da escola, os pais passaram a ter a hercúlea tarefa de acompanhar os filhos para não as deixar desassistidas em casa enquanto trabalham. Mesmo com a opção de home office, são notórias as dificuldades que surgem para se trabalhar com a criança em peso dentro de casa, tendo que ficar retidas em razão de protocolos sanitários.

Vejamos alguns julgados recentes

           TJ-RS – Pai deve fazer visita virtual à filha durante a pandemia do coronavírus. O juiz da 1ª Vara Judicial da Comarca de Taquari (RS) (grifo nosso), determinou que as visitas entre pai e filha sejam por meio virtual no período em que durar a pandemia de coronavírus;

         TJ-BA – Suspensa as visitas do pai tendo em vista que a mãe é portadora de problemas respiratórios graves, hipertensão arterial, problemas renais e o menor também padece de problemas respiratórios.

A 4ª Vara da Família de Salvador, nos autos do processo nº 8057231-30.2020.8.05.0001, decidiu por suspender as visitas do pai do menor, sob as razões acima, bem como pelo fato de o pai da criança “vem desprezando e ignorando as orientações e determinações da OMS e Decretos Estaduais e Municipais de Salvador em relação ao isolamento social, realizando viagens para outros Estados, visitando parentes e familiares na cidade de Aracaju, estando em contato com diversas pessoas, recebendo visitas em sua residência, visitando amigos e familiares, participando de aniversários de amigos e familiares, possui 3 (três) filhos com idades diferentes oriundos de 3 (três) relacionamentos distintos, recebendo-os em conjunto em sua residência, levando seu filho menor em sua companhia para esses eventos quando o busca nos dias de visita aos finais de semana alternados, a cada 15 (quinze) dias, fatos que ensejam uma maior exposição do menor ao contágio do vírus, e, por corolário, à sua representante legal.” É importante mencionar que o contato com o pai foi assegurado pelo meio virtual

TJ-MG – Mantido direito de visita do pai, por não comprovar maior risco de contágio. Outra decisão sobre guarda e possibilidade de contágio pelo coronavírus, foi exarada pela 2ª Vara Cível de Três Pontas, Minas Gerais (grifo nosso). A mãe unilateralmente suspendeu as visitas do genitor da criança, sob a alegação de possibilidade de contágio, sem justificar se havia alguma patologia do menor ou algum fato relevante mencionando o trabalho do genitor que poderia ocasionar maior risco de contaminação;

TJ-PR – Juiz de Maringá proíbe visitas presenciais avoengas enquanto perdurar a pandemia. “(…) Pelo exposto, DEFIRO o requerimento formulado no seq. 171 para suspender as visitas presenciais avoengas enquanto viger no Estado do Paraná a situação de emergência para o combate da pandemia do novo coronavírus (COVID-19), determinando que até então sejam mantidos contatos regulares à distância entre os netos e os avós (…)”; MARINGÁ 2ª VARA DE FAMÍLIA E SUCESSÕES DE MARINGÁ – PROJUDI.

Na prática, muitas das crianças foram enviadas para a casa dos avós, o que não se configura como adequado, nem recomendável, sob o ponto de vista médico, pois os idosos estão entre os mais susceptíveis a desenvolver graves sintomas da Covid-19.

O mais importante é frisar que os pais sejam extremamente cuidadosos e responsáveis. Assim, se um dos pais morar com uma pessoa do grupo de risco (a saber: idosos, diabéticos, pessoas, portadoras de doenças pulmonares e cardíacas), evidentemente, não é prudente estabelecer a convivência com a criança nem que se faça o revezamento, especialmente quando se precisa utilizar do transporte público para a realização do translado.

De todo modo, enquanto houver a necessidade de isolamento social, lembremos que há a variante Ômicron da Covid-19, em franca disseminação, pode-se manter a convivência virtual com os filhos por meio de plataformas como Skype, WhatsApp, Hangouts, Google Meet e se consegue manter o equilíbrio tão referendado positivado no artigo 1.853 do Código Civil Brasileiro.

Outra dúvida arguida é se um dos genitores, injustificadamente, impedir a convivência dos filhos com o outro genitor.

Bem, segundo o artigo 1;854, §4º do Código Civil brasileira uma alteração não autorizada ou descumprimento imotivado da guarda compartilhada pode causar a redução de prerrogativas atribuídas ao genitor que assim proceder. Quaisquer medidas drásticas de afastamento da convivência com filho, só pode ser adotada, quando a manutenção da convivência representar um risco sério e real à saúde do filho.

Evidentemente, o excesso de zelo não está habilitado a justificar o rompimento da convivência do filho com um de seus pais e, vale lembrar que essa prática pode tipificar a alienação parental prevista nos termos da Lei 12.18/2010.

Caso os genitores discordem sobre a necessidade de adaptação e, eventual, suspensão da convivência com um deles, caberá ao Poder Judiciário, em derradeira instância, dirimir a controvérsia, conforme aduz o artigo 1.586 do Código Civil.

Apesar de que o Judiciário está funcionando apenas em esquema de plantão, a Justiça continua a apreciar as causas urgentes conforme recomenda a Resolução do Conselho Nacional de Justiça 313, de 19 de março de 2020. Porém, antes da judicialização, recomenda-se que os pais busquem as extrajudiciais alternativas para a boa solução do conflito, seja através da mediação ou conciliação que se apresenta como excelente ferramenta de solução pacífica da controvérsia. Jamais se esquecendo que toda solução deve ser tomada em prol do melhor interesse da criança ou adolescente.

Diante das dúvidas e questionamentos apresentados pelo caso em razão do exercício da guarda compartilhada durante a pandemia de Covid-19. É o parecer, que deverá haver adaptações e modulações das regras de exercício da guarda compartilhada, visando proteger a saúde de crianças e adolescentes, cumprir os protocolos sanitários bem como atuar em total direção do melhor interesse da criança ou adolescente, visando tanto atender a saúde física como mental (grifo nosso).

Referências:

ANGELO, Tiago. Sem marco legal para guarda dos filhos na epidemia, pais devem priorizar acordos. Disponível em:  https://www.conjur.com.br/2020-abr-20/fica-guarda-compartilhada-tempos-coronavirus Acesso em 31.01.2022.

COLTRO, Antônio Carlos Mathias; DELGADO, Mário Luiz. (Coordenadores) Guarda Compartilhada. 3ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

DE MELLO, Hellen Havana Saturno; NAKAYMA, Juliana Kiyosen. O exercício da guarda compartilhada em tempos de pandemia da COVID-19. Disponível em:  https://ibdfam.org.br/artigos/1726/O+exerc%C3%ADcio+da+guarda+compartilhada+em+tempos+de+pandemia+da+COVID-19 Acesso em 31.01.2022.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 15ªª edição. Salvador: Editora JusPODVM, 2022.

DORIA, Isabel I.Z. Guarda Compartilhada em tempos de pandemia de Covid-19. Disponível em:  https://ibdfam.org.br/artigos/1397/Guarda+compartilhada+em+tempos+de+pandemia+de+COVID-19 Acesso em 31.01.2022

MADALENO, Rolf. Manual de Direito de Família. São Paulo: Grupo Gen; Rio de Janeiro: Forense, 2020.

ZAMATARO, Yves Alessandro Russo. Direito de Família em Tempos Líquidos. Prefácio de Leandro Karnal. São Paulo: Almedina, 2021.



[1] Professora universitária há três décadas. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Pesquisadora -Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Presidente da Seccional Rio de Janeiro, ABRADE – Associação Brasileira de Direito Educacional. Vinte e nove obras jurídicas publicadas. Articulistas dos sites JURID, Lex Magister. Portal Investidura, Letras Jurídicas. Membro do ABDPC – Associação Brasileira do Direito Processual Civil. Pedagoga.

[2] Advogado, Pós-Graduado em Direito Processual Civil. Articulista de várias revistas e sites jurídicas renomados.

[3] Houve uma decisão em que se fixou a guarda unilateral com motivação na pandemia, mas também havia outro argumento muito forte, a de que o comportamento do pai era muito violento, fixando o convívio por meio de vídeo chamadas, com dias marcados, três vezes na semana, com duração de trinta minutos, isso ficou determinado pelo período da pandemia por prazo de seis meses, ou após o término da pandemia. Existiram, também, decisões se tratavam de que um dos genitores pleiteava a alteração da guarda compartilhada para unilateral, por motivos da pandemia. Porém entenderam-se cinco julgados que isso não era suficiente para fazer a alteração, e que não se via comprovação efetiva de que havia risco para a criança. Notou-se que o artigo 227 da Constituição Federal, foi a base argumentativa da decisão, lembrando que os pais têm o dever de proteger a criança. Interessante que dentre essas decisões, um dos casos tratava-se da mãe que laborava na área da saúde, e o pai alegou que a criança estava em ambiente propício a risco, pelo fato da mãe ter contato no dia a dia do trabalho com a Covid-19, a juíza entendeu que essa mãe possuía conhecimento técnico da situação e poderia agir com consciência, e assim ficou determinado que a guarda seria compartilhada, com convívio presencial, buscando a criança na residência da mãe.

[4] Em um caso, o juiz Eduardo Gesse, da 2ª Vara de Família e Sucessões de Presidente Prudente (SP), proibiu que um piloto de avião visitasse a filha por 14 dias, prazo recomendado para a quarentena. Segundo o magistrado, “em razão da pandemia decorrente da propagação do coronavírus, é realmente recomendável, por força da profissão exercida pelo requerido”, evitar contato com terceiros.

Como citar e referenciar este artigo:
LEITE, Gisele; CRUZ, Ramiro Luiz Pereira da. Parecer sobre Guarda Compartilhada e a pandemia de Covid-19. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2022. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-de-familia/parecer-sobre-guarda-compartilhada-e-a-pandemia-de-covid-19/ Acesso em: 18 abr. 2024