Direito Constitucional

O Império da Lei – Parte Sete: A Democracia

Análise do Direito Constitucional como refém dos princípios democráticos

Pretendendo iniciar essa digressão em um clima mais ameno, ouso uma simplória definição sobre Democracia; pode-se dizer que democracia consiste em aceitar que na sua televisão a cabo, quase metade dos canais sejam dedicados ao futebol, mesmo que você deteste tal esporte e jamais pretenda assistir uma partida televisionada …, a democracia, ainda de modo simples, é o governo do povo, ou melhor, da vontade da maioria.

Deixando de lado todos os aspectos históricos que servem de contexto para a democracia, procuraremos nos aprofundar nela enquanto um conceito que, muitas vezes, pode assegurar e evolução constitucional, como também pode significar um retrocesso, na medida em que aflige o mundo moderno com um sistema onde a maioria pode não ser a melhor solução para problemas.

Sendo um regime político em que a soberania é exercida pelo povo, vemos que esta soberania é exercida, de fato, por uma maioria e não por uma totalidade, o que podemos conceituar como sendo um dos efeitos indesejáveis de tal regime. E quando olhamos para a soberania do ponto de vista das liberdades individuais, vemos ainda mais que o regime da maioria também se refere aos assuntos privados de cada um.

Todavia, nos dias atuais, observa-se que a democracia, enquanto regime, encontra-se limitada por um componente essencial para seu funcionamento: o componente econômico que torna cova rasa qualquer discussão política que não a leve em consideração, vez que, é através dela que poder-se-á reduzir as desigualdades sociais. E esse torna-se um fundamento essencial para que a democracia caminhe ao lado da economia, privilegiando interesses que, algumas vezes, podem redundar em desatendimento à vontade da maioria.

E esse quadro torna-se ainda mais crítico na chamada “democracia representativa”, na qual elegemos pessoas que nos representarão, decidindo em nosso noma. E porque isso tornar-se crítico? Porque, na maioria das vezes, este representante deixará de expressar a vontade dos representados, seja por interesses de ordem corporativista, seja ainda mais, por questões de interesse pessoal, colocando à margem os interesses coletivos. E quanto mais longo for o mandato e mais fraca for a opinião pública, ocorrerá uma permissão tácita para que o representante se afaste, mais e mais, de suas próprias convicções …, as mesmas convicções que comprometeu-se em defender e representar.

Este cenário, a princípio desolador, não melhora; pelo contrário, ele tende a agravar-se quase como uma patologia crônica; explica-se: no momento em que o representante opta por apoiar medidas com as quais seus representados não concordariam, acaba agindo em desacordo com a própria representação, e, consequentemente, com os princípios orientadores do regime chamado democrático.

Essa patologia denota uma discrepância irremediavelmente associada ao cerne da democracia; diz respeito ao fato de que o representante eleito, pertencendo a um grupo cuja potência majoritária faz-se apenas o suficiente para manter-se no poder, precisa negociar com a chamada “oposição” para obter resultados que lhe sejam favoráveis. Isso deságua em um universo de coalizões, tráfico de influência e transações políticas que, aos olhos dos representados jamais serão vistas como dignas e corretas.

Vincula-se, portanto, os representados ao representante que vale-se de todo o tipo de transação política que lhe aufira benefícios, e que, ainda de acordo com seu raciocínio, são os melhores resultados, se vistos em consonância com os anseios dos representados, mesmo que isso não seja o que a realidade mostre.

Neste contexto, temos como elemento fundamental para exercer controle sobre a democracia, um instrumento indispensável: O Estado de Direito, que consiste na limitação do poder político, submetido ao Estado e ao Direito, através do texto constitucional. Somente desse modo, pode-se, efetivamente, delimitar o campo de ação do representante político, evitando excessos e abusos.

Todavia, como é possível exercer controle pelo Estado de Direito sobre a atividade do representante político, que também é o responsável pela propositura de legislação atinente ao controle social, posto que cabe a ele, mediante concessão nascida do voto popular da maioria a elaboração de leis que integrarão o ordenamento jurídico? E essa resposta não é tão fácil quanto parece, já que, muitas vezes, o representante político parece ser mais poderoso que seus representados, agindo como se sua vontade fosse mais relevante que a vontade coletiva.

Inicialmente, e sem o temor de errar, cremos que apenas pelo Estado de Direito é que a Democracia pode fluir da maneira mais harmônica possível, já que é pela via dos direitos que se exprime a pressão popular sobre o poder. E há de se destacar que esse conceito abrange, ainda, muito mais os direitos civis que os direitos sociais …, fato que a recente reforma da Consolidação das Leis do Trabalho comprova em texto e verbo.

Veja-se o seguinte exemplo: é notório que os chamados “crimes do colarinho branco” sejam aqueles que podem ser classificados como piores, pois, tiram da sociedade e de seus integrantes direitos básicos para, unicamente, saciar o desejo alheio pelo supérfluo, razão pela qual, como afirma Renato Janine Ribeiro em sua obra “Democracia”: “Não cabe associar miséria ao crime”, e completamos: enfatizar o que desemprego aumenta a criminalidade é desviar o foco do verdadeiro mal que aflige a sociedade moderna, que são os crimes contra a Administração Pública que, ao desviar recursos para bolsos individuais, retira da maioria direitos básicos e essenciais, gerando miséria e, até mesmo, morte!

E nosso cenário abre-se de uma maneira triste, e até mesmo, cruel; percebemos em nossa democracia moderna que é permissivo condenar a diferença, sem no entanto, buscar compreendê-la e respeitá-la, o que deságua no funesto caminho de se castigar o divergente como se fosse imoral, indecente. Mais uma vez vemos o triunfo da irracionalidade fundada na moralidade, ou na sua falsa visão de que, essa condenação prévia às diferenças opera resultados que são frutíferos para a maioria, quando não o são.

Na recentíssima discussão sobre a previsão contida no edital do ENEM acerca de “zerar” a redação que contenha comentários ofensivos, classificados conforme constante do verbete editalício, viu-se uma celeuma instalada a partir de um erro técnico de elaboração, associado ao descontentamento de um grupo sobre a previsão de zerar a nota da redação, já que deve ser constitucionalmente protegida a liberdade de expressão. Eis aqui o exemplo mais que cristalino do exercício da democracia e a conformação estabelecida pelo Estado de Direito.

Vê-se que a interveniência da Suprema Corte operou-se sob o aspecto do controle de constitucionalidade, deixando livre e assegurado o direito de cada um, tanto dos insatisfeitos como também dos satisfeitos.

Algumas perguntas que ficam: porque tal evento não foi precedido de amplo debate? Porque os tecnocratas agiram ao alvedrio da vontade da lei maior? E ainda: Porque a entidade que impetrou a medida judicial não buscou canais mais adequados e imediatos para resolver a questão, esperando apenas a manifestação do Judiciário, através da Suprema Corte. Esse evento comprova a ideia de que a democracia é um jogo, e que por essa razão é mais eficaz na aceitação da derrota.

Vemos que, cabe à democracia promover o engajamento dos eleitores, tolerando diferenças e estimulando o debate contínuo, deixando que a população aclame a necessidade de regulamentação legislativa de qualquer aspecto relevante tanto para seu bem-estar como também para maio envolvimento social. E este engajamento permite uma conscientização, posto que aqueles que “perderam” em um pleito sintam-se mais conformados ao perceberem que o jogo foi limpo, aceitando melhor o resultado do que engolir algo que pareceu desonesto ou fraudulento. O jogo democrático é sempre melhor jogado quando as regras são claras e os objetivos, mesmo em confronto evidenciam a prevalência do interesse público acima do interesse particular. Vale dizer ainda que a democratização do Estado inicia-se pela democratização da sociedade, o que, nas palavras de Renato Janine Ribeiro significa que “a política não se dá apenas no momento da eleição, mas ao longo do tempo”.

Ainda na análise da obra do pensador Renato Janine Ribeiro, a democracia é “por definição, é o sistema onde todos mandam e todos obedecem”, exigindo que se abra mão dos desejos para melhor realizar-se uma obra de cunho amplo e geral. E, neste cenário, a proteção aos direitos humanos, somados aos direitos civis, carecem de representantes que compreendam a importância e a relevância de sua tarefa; uma tarefa árdua e cuja recompensa não se mede em valores físicos, mas de valores sentimentais.

Melhor explicando: se eu, cidadão, que não votou no atual Chefe do Executivo Municipal vejo que, ao longo de seu governo, ele tem dado relevância aos aspectos sociais que promovam a melhoria contínua da sociedade (saúde, educação, segurança, moradia, entre outros), eu não apenas me conformo com a derrota, como também passo a crer ser ele uma pessoa digna que espalha dignidade para o meio social.

Assim é que a democracia é o princípio legitimador da constituição, integrando-a como princípio encartado no ordenamento jurídico. É através da democracia que se criam as condições determinantes para a elaboração do texto constitucional, nele reunindo todos os estamentos políticos organizados de modo a atender às expectativas de grupos, partidos e outras organizações envolvidas tanto no processo criativo, como também no procedimento de aplicação. E temos ainda que democracia como princípio constitucional informa e forma a compreensão, produção e aplicação do Direito Positivo – como princípio normativo diferenciado da ordem jurídica globalmente considerada.

Inarredável a ideia de que o texto constitucional é um arcabouço estratégico e tático para todo aquele que ocupar cargo executivo junto ao poder, dele se exigindo e também esperando que haja uma atuação consciente e concisa no sentido de fiel observância.

Aliás, é o que se deduz do seguinte excerto:

“… função programadora da atividade futura do Estado e da sociedade; é acompanhada pela ideia de programação conformadora da ação estatal e social. Assim, a normatividade constitucional não se endereça somente aos órgãos do Estado, exigindo-lhe abstenções, inações e não-interferências; ela também vincula os órgãos estatais a ações positivas, à produção de políticas públicas tendentes a realizar os fins constitucionais plasmados na ordem jurídica. Políticas públicas realizáveis por meio de atos, processos e medidas administrativas; de leis e sentenças, através do Judiciário, do Legislativo e do Executivo”.1

Não restam dúvidas acerca do vínculo entre direito constitucional e democracia, razão esta que nos permite afirmar que em uma democracia onde os valores insculpidos na Carta Magna deixam de ser fielmente observados, seguidos e, principalmente, respeitados, não há campo fértil para que essa democracia frutifique em favor da maioria de seus integrantes.

Lamentavelmente, o cenário atual descreve uma situação de penúria tanto do respeito ao texto constitucional, como também ao princípio democrático, uma vez que, nossos representantes, em todas as esferas de poder, fazem alarmante preponderância de interesses que não conferem resultados para o povo; antes disso, conferem apenas a satisfação de interesses pessoais, inclusive com valoração de interesses escusos.

Tal permissividade em nada contribui para que o texto constitucional encontre eco na sociedade, que, por sua vez, vê-se alijada de todos os interesses que lhe dizem respeito, criando uma atmosfera indesejável de insatisfação, descontentamento e, como consequência, descrença, ou mesmo revolta. Não é nosso intuito estimular tais comportamentos, inclusive porque eles nada contribuirão para melhoria das relações entre Estado/Poder/Povo. O que se almeja é enfatizar a importância da valorização do voto popular, remodelação dos partidos políticos, não apenas em aspectos estéticos ou de propaganda e uma imediata renovação de candidaturas que tenham por pressuposto seriedade, dignidade e respeito.

A plenitude da democracia consiste no seu exercício consciente, não apenas por parte do cidadão/eleitor, como também, senão principalmente, dos mandatários eleitos com a finalidade de representar uma vontade popular. E esse exercício consciente pode ser descrito como o exercício das liberdades constitucionalmente instituídas, inscritas em uma esfera de responsabilidade; ou seja, exerço meus direitos e liberdades, como também observo meus deveres na órbita social como uma dignidade a ser valorizada continuamente.

Vemos, portanto, que os princípios constitucionais tornam-se reféns de uma democracia exercida com consciência, enfatizando que não é suficiente denominar-se de modo comum democracia com liberalismo, impondo-se que a primeira seja vista como o direito à diferença, do mesmo modo que os direitos assumem uma nuance de reivindicação que se exprime pela pressão popular sobre o poder, que, de seu lado, deve ouvir esse clamor, respeitando-o e dando-lhe o verdadeiro valor de motor da aplicação de constantes melhorias sociais.

Se não nos detivermos sobre esse aspecto, relegando-o a um plano inferior ao interesse particular, estaremos, via de regra, denegrindo e conspurcando a própria democracia, o que pode desaguar em um clamor que, crescendo no seio social, encontre meios para ecoar junto aos extremismos, intolerâncias e radicalismos que já foram observados historicamente, e cujos resultados, além de nefastos são absolutamente indesejáveis.

Bibliografia essencial:

Ribeiro, Renato Janine – A Democracia – 3ª edição – São Paulo – Publifolha – obtido no seguinte endereço eletrônico: http://www.tre-sc.jus.br/site/resenha-eleitoral/revista-tecnica/edicoes-impressas/integra/2012/06/democracia-constituicao-e-principios-constitucionais-notas-de-reflexao-critica-no-ambito-do-direito-constitucional-brasileiro/indexc692.html?no_cache=1&cHash=b7bf79b129bc42f148fe4b5e477aa8bf 

 

1 – Democracia, Constituição e princípios constitucionais: notas de reflexão crítica no âmbito do direito constitucional brasileiro, de Por: Ruy Samuel Espíndola. Disponível em http://www.tre-sc.jus.br/site/resenha-eleitoral/revista-tecnica/edicoes-impressas/integra/2012/06/democracia-constituicao-e-principios-constitucionais-notas-de-reflexao-critica-no-ambito-do-direito-constitucional-brasileiro/indexc692.html?no_cache=1&cHash=b7bf79b129bc42f148fe4b5e477aa8bf

Como citar e referenciar este artigo:
TROVÃO, Antonio de Jesus. O Império da Lei – Parte Sete: A Democracia. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2017. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/o-imperio-da-lei-parte-sete-a-democracia/ Acesso em: 28 mar. 2024