Responsabilidade Civil

A figura do dano existencial e sua ocorrência nos crimes contra a liberdade sexual

Resumo: Será apresentado nesse presente trabalho o surgimento de uma nova figura jurídica, originada nos tribunais italianos, denominada de “dano existencial”, dentro da seara da responsabilidade civil e já sendo aplicável em alguns dos Tribunais do país. A aceitação dessa figura jurídica tem o condão de ajudar a defender o livre exercício da existência e dignidade da pessoa humana. Também será apresentada a sua ocorrência nos crimes contra a liberdade sexual, disciplinados pelo Código Penal.

Palavraschaves: Dano existencial. Crimes contra a liberdade sexual. Responsabilidade civil.

Abstract: This paper will appear in the emergence of a new legal form, which originated in the Italian courts, called existential damage” within the harvest and civil liability already being applied in some of the courts of the country. The acceptance of this legal concept has the power to help defend the free exercise of existence and human dignity. It will also be presented to their occurrence in crimes against sexual freedom, disciplined by the Criminal Code.

Keywords: Damage existential. Crimes against sexual freedom. Civil liability.

1.    INTRODUÇÃO.

            A ciência moderna do Direito sempre apresenta novas (e por muitas vezes interessantes) tendências tanto em seu campo teórico como prático. A existência de novas figuras ou ampliações de antigos conceitos é necessária para poder caminhar de forma harmônica com a sociedade.

            Dentre essas novas ideias que vem se apresentando no ordenamento jurídico, será tratada nesse presente artigo, em linhas gerais, a figura de uma nova forma de dano civil, denominado de “dano existencial”, dentro do instituto da responsabilidade civil.

            Além de apresentar essa figura que vem recentemente ganhando espaço em nosso direito pátrio, também será trabalhada uma das hipóteses de incidência desse dano, qual seja nos casos em que ocorra a violação da liberdade sexual de uma pessoa.

2.    O DANO EXISTENCIAL.

2.1. A diferença entre dano imaterial com dano moral.

Inicialmente, vale apontar que o presente artigo irá discorrer sobre a existência de mais uma figura de dano civil, figura essa que integra o instituto da responsabilidade civil.

Por dano entende-se como uma lesão a um bem e/ou interesse jurídico de uma pessoa decorrente de um ato ilícito causado pela ação ou omissão de terceiros.

      Trata-se de um dos elementos constitutivos da responsabilidade civil, e um dos mais difíceis de demonstrar, conforme aponta Sergio Cavalieri Filho:

O dano é, sem dúvida, o grande vilão da responsabilidade civil. Não haveria que se falar em indenização, nem em ressarcimento, se não houvesse o dano. Pode haver responsabilidade sem culpa, mas não pode haver responsabilidade sem dano.

(…) Daí a afirmação, comum praticamente a todos os autores, de que o dano é não somente o fato constitutivo, mas, também, o dever de indenizar[1].

            Atualmente, é pacífico na doutrina a existência de dois danos: dano material (ou patrimonial) e dano imaterial (ou extrapatrimonial).

            Por dano material (ou patrimonial), como próprio nome aponta, diz a lesões que atinge os bens patrimoniais de uma pessoa, sendo subdividido em dano emergente e lucros cessantes.

            Já o dano imaterial, prevalece o entendimento que este é sinônimo de dano moral, ainda mais em razão do artigo 159 do Código Civil de 1.916:

Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. (grifo nosso).

           

O dispositivo acima citado, do antigo Codex civil, previa a possibilidade jurídica de um dano que ia além do patrimônio da vítima, porém, por mais que utilizou a expressão “ainda que exclusivamente moral” (sic), pecou o legislador de 1.916 em não fazer uma especificação melhor na letra da lei, conforme aponta Rui Stoco:

O legislador ordinário olvidou e desprezou a teoria da inviolabilidade da personalidade e do dever de compor a ofensa moral. Tanto isso é certo que o art. 186, viga mestra e ponto fulcral da responsabilidade civil, limitou-se a fazer menção ao dano moral apenas en passant, fruto de inclusão posterior pela própria Comissão, na redação final do preceito[2].

            A má redação do artigo acabou transformando sinônimas as expressões “dano imaterial” com “dano moral”, quando, na verdade, esta é espécie daquela[3]. Neste mesmo sentido vale citar Natália de Campos Grey:

É tecnicamente inadequado equiparar o conceito de dano moral com o conceito de dano imaterial porque o primeiro é espécie enquanto o segundo é gênero muito mais abrangente. A equivocada equiparação causou grandes erros de avaliação em casos concretos, nos quais as circunstâncias não permitiam que os danos respectivos fossem propriamente considerados como danos morais, sendo que, consequentemente, esses danos acabaram por ficarem desprotegidos, em razão do “enquadramento” adequado[4].

Portanto, dano imaterial, é todo dano que vai além da esfera patrimonial da vítima. Já o dano moral é o dano que causa sofrimento interno a pessoa, ou que lesione a imagem daquela, que fere a dignidade humana da vítima.

            Sendo assim, como se percebe, o dano imaterial não se limita a apenas ao dano moral, conforme o legislador de 1.916 menciona, mas trata-se de um gênero que abrange outras formas possíveis de danos a imagem da própria vítima, como se pode citar, a título de exemplo: a) Dano estético, entendido como dano a aparência externa da pessoa (o Código Civil de 1.916 previa essa espécie de dano imaterial em seu artigo 1.538); b) Dano psíquico, aquele em que a vítima sofre lesões (transtornos) mentais; e, c) Dano existencial, objeto de estudo deste artigo e a qual passará a tratar adiante.

2.1  Conceito e surgimento.

            Por dano existencial, tem-se entendido tratar de dano imaterial que resulta na impossibilidade da vítima em executar seu projeto de vida como também dificuldade de desenvolver, sadiamente, relações interpessoais, ou, numa visão mais genérica, como a violação de qualquer direito fundamental da vítima e não apenas ao direito a saúde, pois causa dano à própria existência de uma pessoa.

            A figura do dano existencial é de origem italiana, seu surgimento ocorreu com as sentenças 184 de, 14 de julho de 1.986, a sentença n. 500 proferida em 22 de julho de 1.999 na Corte de Cessação Italiana como também na sentença n. 7.713 de 07 de junho de 2.000 proferida pela mesma corte.

            Nessas primeiras sentenças não houve o reconhecimento específico do dano existencial, mas foi aponta as razões de ser dessa mesma figura jurídica para a condenação ao ressarcimento do dano a pessoa, ou seja, a proteção aos direitos fundamentais das pessoas como base a sua existência. Só no ano de 2.000, aquela Corte, com a sentença n. 7.713, reconheceu, de forma expressa o dano existencial.

            O caso da sentença n. 7.713 se deu quando um pai foi processado penalmente pelo crime de abandono material do filho menor. Foi absolvido. O menor promove ação de indenização contra o pai, pelo abandono material. A questão foi levada a Corte Italiana que, com base nas sentenças 184 e 500, condenou o pai ao pagamento do valor exigido, pela conduta injusta do abandono que resultou em grave lesão a própria existência do menor[5].

            Também já houve o reconhecimento do dano existencial nos Tribunais portugueses, em duas situações conhecidas, decisões essas proferidas pelo STJ daquele país, uma reconhecendo o dano em razão da morte do genitor de três menores (processo n. 04B3527-JSTJ000) em 2.003, e outro, proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em indenização por acidente de trânsito que resultou na perda da capacidade parcial da vítima (processo n. 1152/04-2), no ano de 2.004[6].

           

            2.2. O projeto de vida e a relação de vida – os parâmetros para o dano existencial.

            Como se denota do conceito apresentado sobre o dano existencial, esse “concerne à privação de aspecto da vida de relação e/ou do projeto de vida do ofendido”[7]. Razões que possuem estrita ligação o plano existencial de uma pessoa.

            Sendo assim, têm-se como elementos para sua constituição essas duas figuras: relação de vida e projeto de vida. Aos quais serão tratados a seguir.

           

2.2.1. O Projeto de vida.

             Um dos parâmetros para a configuração do dano existencial se dá pelo dano no próprio projeto de vida da pessoa. Como apontado acima, aqui discute sobre a existência de uma pessoa diante, não só a ela própria (em-si), mas como também para os outros (ser-no-mundo-com-os-outros).

            O dano ao projeto de vida pode ser entendido como uma forma de atentado a livre escolha da pessoa na realização de seus objetivos, metas ou ideais para desenvolver sua própria existência.

            Quando voltamos à filosofia e nos socorremos às lições de grandes nomes como Jean-Paul Sartre, ao dizer que “somos condenados a ser livres”, percebemos que o homem possui total liberdade para desenvolver sua vida da forma como deseja.

            A lesão sofrida pelo homem, que resulta no enfraquecimento desse exercício de liberdade é entendida como um dano ao seu projeto de vida. Aqui não se diz apenas nas limitações de fácil percepção que interromperiam o projeto de vida, por exemplo, a perda de um membro do corpo, mas também se adentra num plano psíquico-existencial de um indivíduo.

            Sua incidência não é sentida apenas pelo próprio indivíduo, mas como também reflete em sua relação com aqueles que o cercam.

O dano ao projeto de vida refere-se às alterações de caráter não pecuniário nas condições de existência, no curso normal da vida da vítima e de sua família. Representa o reconhecimento de que as violações de direitos humanos muitas vezes impedem a vítima de desenvolver suas aspirações e vocações, provocando uma série de frustrações dificilmente superadas com o decorrer do tempo. O dano ao projeto de vida atinge as expectativas de desenvolvimento pessoal, profissional e familiar da vítima, incidindo sobre suas liberdade de escolher o seu próprio destino. Constitui, portanto, uma ameaça ao sentido que a pessoa atribui à existência, ao sentido espiritual da vida[8].

            A frustração em seus planos de vida é a ocorrência do dano existencial.

           

2.2.2. O dano a relação de vida.

           

            A outra hipótese de ocorrência de dano existencial, se dá pelo dano causado a relação de vida do indivíduo, que esta relacionada a capacidade de estabelecer e manter suas próprias relações interpessoais nos diversos ambientes em que se encontra. O dano existencial se torna tão profundo que acaba dificultando ao indivíduo de manter relações saudáveis com os demais seres, havendo a diminuição nas relações entre a família, amoroso, no trabalho e etc.

O dano existencial, admitido recentemente pela doutrina e pela jurisprudência brasileira (mas ainda com alguma controvérsia), advém da lesão a qualquer direito fundamental da pessoa, ou seja, não se refere apenas ao direito à saúde, por exemplo. Essa espécie de dano não é prevista na clássica divisão que normalmente conhecemos entre dano patrimonial e dano não patrimonial. Consubstancia-se numa ação (intencional ou não intencional) que gera uma brusca mudança no dia-a-dia da pessoa humana, modificando, assim, a sua relação com a sociedade, com a família etc.

Em outras palavras, o dano existencial constitui-se num dano à existência da pessoa, de modo a não permitir ou não contribuir para que esta seja feliz, impossibilitando a execução de um projeto de vida no campo pessoal (mulher vítima de erro médico que a impede de ter filho; férias não concedidas ao empregado; bullying no ambiente escolar ou de trabalho; pais que perdem o filho vítima de acidente automobilístico causado por terceiro…)[9].

            Como se bem pode observar, as duas hipóteses de dano existencial praticamente caminham juntas, afinal é humanamente impossível estabelecer projetos de vida sem desenvolver qualquer tipo de relação interpessoal. Portanto, a ocorrência do dano existencial, leva a vítima ao um abismo existencial que faz destruir seus planos de administrar sua própria vida e estabelecer relações com terceiros.

            Por fim, vale apontar que Hidemberg Alves de Frota, em seu artigo dano existencial: noções fundamentais apontou certas situações que possivelmente resultam na possibilidade de ocorrência do dano existencial, a saber: a) a perda de um familiar ou o abandono parental em momento crucial do desenvolvimento da personalidade; b) o assédio sexual; c) o terror psicológico no ambiente de trabalho, no contexto escolar ou na intimidade familiar; d) a violência urbana e rural; e) atentados promovidos por organizações extremistas e o terrorismo de Estado; f) prisões arbitrárias ou fruto de erro judiciário; g) guerras civis, revoluções, golpes de Estado e conflitos armados muliétnicos e internacionais; h) acidente de trânsito ou de trabalho, dentre outras situações[10].

            2.3. O dano existencial no Brasil.

A inovação do dano existencial tem sido uma tendência tímida nos tribunais brasileiros[11], atualmente sua aplicação se dá mais em questões trabalhistas, uma vez que, dentro de um ambiente de trabalho, muitas vezes a aça ilícita causada dentro deste meio – em especial tal ação feita pelo empregador ao empregado – facilita na visualização da perda do projeto de vida e interrupção nas relações interpessoais, por meio de jornadas excessivas, constante humilhações, assédio moral e sexual, e etc.

Insta apontar, a título de exemplificação, uma conhecida decisão proferida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, no ano de 2.012, a qual – reconhecendo a existência do dano existencial, condenou a rede de supermercados Walmart a pagar determinado valor a título de indenização a uma ex-funcionária, uma vez que submetia a mesma a uma jornada de trabalho excessiva – com duração de 12 a 13 horas diárias, com intervalos de 30 minutos – com apenas uma folga semanal, por quase oito anos. Tal ato resultou em prejuízos ao convívio da funcionária com a família, prejudicou sua saúde e seus projetos de vida.

DANO EXISTENCIAL. JORNADA EXTRA EXCEDENTE DO LIMITE LEGAL DE TOLERÂNCIA. DIREITOS FUNDAMENTAIS. O dano existencial é uma espécie de dano imaterial, mediante o qual, no caso das relações de trabalho, o trabalhador sofre danos/limitações em relação à sua vida fora do ambiente de trabalho em razão de condutas ilícitas praticadas pelo tomador do trabalho. Havendo a prestação habitual de trabalho em jornadas extras excedentes do limite legal relativo à quantidade de horas extras, resta configurado dano à existência, dada a violação de direitos fundamentais do trabalho que integram decisão jurídico-objetiva adotada pela Constituição. Do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana decorre o direito ao livre desenvolvimento da personalidade do trabalhador, nele integrado o direito ao desenvolvimento profissional, o que exige condições dignas de trabalho e observância dos direitos fundamentais também pelos empregadores (eficácia horizontal dos direitos fundamentais). Recurso provido. (TRT 4ª R.; RO 0000105-14.2011.5.04.0241; Primeira Turma; Rel. Des. José Felipe Ledur; Julg. 14/03/2012; DEJTRS 07/05/2012; Pág. 17)

            Recentemente, também, houve um conhecido julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça a qual reconheceu a existência do dano moral por abandono afetivo, nesta decisão, um pai foi condenado a pagar o valor de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) a sua filha por ter causado a ela danos morais em razão do abandono afetivo. Nos autos, a filha alegou que não recebeu um apoio afetivo do pai durante sua infância e adolescência, como também recebeu um tratamento diferenciado em relação aos outros filhos do genitor.

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da Lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes – por demandarem revolvimento de matéria fática – não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do Recurso Especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em Recurso Especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso Especial parcialmente provido. (STJ; REsp 1.159.242; Proc. 2009/0193701-9; SP; Terceira Turma; Relª Minª Nancy Andrighi; Julg. 24/04/2012; DJE 10/05/2012)

           

No caso do dano afetivo, o ponto interessante a ser apontado é que, conforme exposto acima, um dos maiores defensores da possibilidade do dano existencial no direito brasileiro Hidemberg Alves da Frota, aponta que o abandono afetivo seria uma forma também de dano existencial, contudo, o Superior Tribunal de Justiça, resolveu julgar no sentido de inserir o abandono afetivo dentro do dano moral. Todavia, tal julgado é significativo, pois, no final, é uma amostra a mais da aceitação por nossos tribunais da figura do dano existencial.

3.    DA OCORRÊNCIA DE DANO EXISTENCIAL NOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL.

Com base nas lições apresentadas pelos poucos estudos ainda existentes sobre a figura do dano estudado nesse artigo, acredita esse autor na possibilidade de sua ocorrência em uma situação além das hipóteses levantadas – meramente exemplificativas como próprio apontou  Hidemberg Alves da Frota, a qual seria nas condutas tipificadas como crimes contra a liberdade sexual.

Como se sabe, os crimes contra liberdade sexual é um dos títulos apresentados dentro do capítulo dos crimes contra a dignidade sexual no Código Penal Brasileiro. São disciplinados em apenas três artigos, a saber: estupro (artigo 213), violência sexual mediante fraude (215), e, assédio sexual (216-A)[12].

            3.1. Generalidades acerca dos crimes contra a liberdade sexual.

Como o próprio nome aponta, o título I do capítulo IV do Código penal visa proteger a liberdade sexual da pessoal, para que, tendo liberdade de dispor de sua própria dimensão sexual sem a oposição de terceiros, garantindo assim, também, o exercício da liberdade em um sentido amplo.

A liberdade sexual se configura como uma parcela da liberdade pessoal sendo, porém, tutelada de modo autônomo. O fundamento de tal especificação se encontra em três planos diversos: a especial vinculação com a autorrealização pessoal; a diferenciação de suas formas comissivas, tanto no que se refere às diversas condutas sexuais realizadas como no tocante às diversas modalidades de atentado à liberdade; e, por fim, significativos condicionamentos normativos presentes nesses delitos[13].

            Representa, dentro do Código Penal, três tipos penais (Estupro, Violência Sexual Mediante Fraude e Assédio Sexual) que descrevem uma conduta que limita o exercício da liberdade sexual de uma pessoa.

            Por essa mesma razão, há a possibilidade de trazer nessas hipóteses, a figura do dano existencial.

            3.1. Os parâmetros do dano existencial dentro dos crimes contra a liberdade sexual.

            Conforme aponta anteriormente, os parâmetros que modulam a ocorrência do dano existencial são – além, claro, das regras gerais de responsabilidade civil – o dano ao projeto de vida e o dano a relação de vida.

            Nos crimes contra a liberdade sexual é facilmente visto a ocorrência desses parâmetros, sendo que, há inúmeros estudos sobre os traumas sofridos por vítimas de violência sexual.

            Em razão do dano ao projeto de vida, como se sabe, esse se trata da interferência sofrida pela pessoa aos seus projetos de vida, na forma como guiará seu próprio destino.

            Nos casos de abusos sexuais, é comum a vítima sofrer lesões físicas graves, como por exemplo – no caso da vítima ser do sexo feminino – lesões na região da vagina que encerraria com a possibilidade de gravidez, perdendo a vítima o projeto de vida de ser mãe; a própria gravidez indesejada, que, dentre das possíveis hipóteses de lesão ao projeto de vida, é a não aceitação em determinado grupo social. Já em ambos os sexos, ter sido transmitida a vítima alguma doença sexualmente transmissível (DST) ou AIDS, trazendo a degeneração do corpo da pessoa.

            Tais situações hipotéticas levantadas, que alteram o corpo da vítima representam a interrupção do projeto de vida da pessoa, não havendo dúvida do preenchimento satisfatório desta condição.

            Adiante, há o dano em razão da relação de vida. Tal espécie de dano pode ser visualizado em duas situações, a primeira exterior (o mundo em relação a vítima), como interior (a vítima em relação ao mundo).

            Em razão da situação de âmbito exterior, como se sabe, a vítima muitas vezes acaba sendo exposta sobre o crime que tenha sofrido e por consequência, ainda sofre preconceito pela sociedade em geral, o que abala significativamente o desenvolvimento de suas relações interpessoais.

            Em um sentido íntimo, a vítima de crimes contra a liberdade sexual, em razão do absurdo trauma sofrido, desenvolve consequências psíquicas inúmeras, como: culpa, depressão, desenvolvimento de condutas antissociais, transtornos sexuais (vaginismo, exibicionismo, voyeurismo, transtorno do desejo sexual, dentre outros), transtorno pós-traumático (TEPT) e etc[14].

            Tais consequências, tanto externas como internas, resultam na dificuldades (em muitos casos, fala-se até em impossibilidade) do sadio desenvolvimento das relações interpessoais da vítima.

            Sendo assim, não há dúvidas que, nessas hipóteses – crimes contra a liberdade sexual – há a ocorrência do dano existencial, devendo todos aqueles que contribuíram para o surgimento da lesão, responder civilmente ao dano sofrido pela vítima.

            Numa visão prática, é comum no próprio juízo penal – ao proferir sentença condenatória – arbitrar um valor indenizatório a título de reparação nesses crimes, desde, claro, requerido pelo Ministério Público ou pelo assistente de acusação, em respeito aos princípios da ampla defesa e do contraditório. Todavia, a prática forense ainda trata como espécie de dano moral, além de dano existencial[15]. E, conforme exposto anteriormente, essa errônea classificação em aceitar a existência de apenas o dano moral como dano extrapatrimonial demonstra a equivocada avaliação nos casos em concreto, havendo a necessidade da aceitação mais ampla da figura do dano existencial no ordenamento jurídico pátrio.

4.    CONCLUSÃO.

            Conforme se demonstrou no presente artigo, atualmente vem crescendo a aceitação – tanto em um campo doutrinário como jurisprudência – da figura jurídica “dano existencial”, instituto de origem italiana, a qual possui como parâmetros o dano ao projeto de vida e a relação de vida da própria vítima. Tem-se aqui uma espécie de dano que realmente corresponde a lesão sofrida na existência e no exercício do desenvolvimento dessa existência por uma pessoa.

            Com recente aceitação nos Tribunais Trabalhistas, o dano existencial não se limita a apenas essa seara, podendo ter sua aplicação em outras situações, a qual, dedicou esse trabalho a apresentar uma de suas hipóteses, a saber: nos crimes contra a liberdade sexual. As vítimas dessas espécies de delitos sofrem um abalo significativo em seu campo existencial que não há dúvidas sobre a ocorrência da própria figura do dano existencial.  Por ser ainda uma figura recentemente introduzida na cultura jurídica brasileira, ainda muito se trabalhará em cima dela, porém, não há dúvidas, que, com o passar dos tempos, será visto sua aceitação no ordenamento jurídico pátrio.

5.    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

5.1. Artigos e doutrinas utilizados.

ALMEIDA NETO, Amaro Alves de. Dano existencial – a tutela da dignidade da pessoa humana. Revista de Direito Privado n. 24. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2.006.

CAVALIEREI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 8. ed. 3. reimpr. São Paulo: Atlas. 2.009.

FROTA, Hidemberg Alves da. Noções fundamentais sobre o dano existencial. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3046, 3nov.2011. Disponível em: < http://jus.com.br/revista/texto/20349>. Acesso em: 20 ago. 2012.

FROTA, Hidemberg Alves da; BIÃO, Fernanda Leite. O fundamento filosófico do dano existencial. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2653, 6out.2010. Disponível em: < http://jus.com.br/revista/texto/17564>. Acesso em: 20 ago. 2012.

______________. A dimensão existencial da pessoa humana, o dano existencial e o dano ao Projeto de vida: reflexões a luz do direito comparado. Caderno da escola de direito e relações internacionais. Curitiba. vol. 13. Ano. 2.010. Disponível em:  http://apps.unibrasil.com.br/revista/index.php/direito/index. Acesso em: 29. ago. 2.012.

GESSE, Cláudia Maria Camargo; AQUOTTI FELTRIM, Marcus Vinicius. As consequências físicas e psíquicas da violência no crime de estupro e no atentado violento ao pudor. ETIC – Encontro de iniciação científica. Vol 6. N. 6. 2.010.  http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/issue/view/34. Acesso em: 29 ago. 2.012.

GREY, Natália de Campos. Os novos danos.Jus Navigandi, Teresina,ano 14,n. 2109,10abr.2009. Disponível em:< http://jus.com.br/revista/texto/12600>. Acesso em:12 set. 2012.

MORAIS, Ezequiel. Brevíssimas considerações sobre o dano existencial. Família e Sucessões – Euclides da Cunha:  http://www.familiaesucessoes.com.br/?p=1789. Acesso em: 29 ago. 2012.

PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. vol. 2: parte especial – arts. 121 a 249. 8. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2.010.

STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2.004.

5.2 Jurisprudências utilizadas.

STJ; REsp 1.159.242; Proc. 2009/0193701-9; SP; Terceira Turma; Relª Minª Nancy Andrighi; Julg. 24/04/2012; DJE 10/05/2012;

TJPA; AP 20103022210-7; Ac. 109524; Tucuruí; Terceira Câmara Criminal Isolada; Rel. Des. João José da Silva Maroja; Julg. 28/06/2012; DJPA 02/07/2012;

TJPE; APL 0147563-35.2009.8.17.0001; Terceira Câmara Criminal; Rel. Des. Cláudio Jean Nogueira Virgínio; Julg. 07/08/2012; DJEPE 21/08/2012;

TJRS; AC 611650-39.2010.8.21.7000; Santa Maria; Nona Câmara Cível; Rel. Des. Leonel Pires Ohlweiler; Julg. 27/06/2012; DJERS 11/07/2012;

TRF 2ª R.; AC 0013574-48.2005.4.02.5101; Oitava Turma Especializada; Rel. Des. Fed. Poul Erik Dyrlund; Julg. 26/10/2011; DEJF 09/11/2011;

TRT 4ª R.; RO 0000105-14.2011.5.04.0241; Primeira Turma; Rel. Des. José Felipe Ledur; Julg. 14/03/2012; DEJTRS 07/05/2012;

TRT 4ª R.; RO 0000840-47.2011.5.04.0241; Nona Turma; Relª Desª Maria Madalena Telesca; Julg. 19/07/2012; DEJTRS 27/07/2012.

 

 

Autor: Vinicius de Almeida Gonçalves

Advogado. Bacharel em Ciências Jurídicas pela UNIGRAN e Especialista em Direitos Humanos e Cidadania pela UFGD



[1] CAVALIEREI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 8. ed. 3. reimpr. São Paulo: Atlas. 2.009. p. 70-71.

[2] STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2.004. p. 1.668.

[3] ALMEIDA NETO, Amaro Alves de. Dano existencial – a tutela da dignidade da pessoa humana. Revista de Direito Privado n. 24. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2.006. p. 21-53.

[4] GREY, Natália de Campos. Os novos danos.Jus Navigandi, Teresina,ano 14,n. 2109,10abr.2009. Disponível em:< http://jus.com.br/revista/texto/12600>. Acesso em:12 set. 2012.

[5] ALMEIDA NETO, Amaro Alves de. Dano existencial – a tutela da dignidade da pessoa humana. Revista de Direito Privado n. 24. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2.006. p. 23-51.

[6] BIA LEITE, Fernanda; DA FROTA, Hidemberg Alves.          A dimensão existencial da pessoa humana, o dano existencial e o dano ao projeto de vida: reflexões a luz do direito comparado. Caderno da escola de direito e relações internacionais. Curitiba. vol. 13. Ano. 2.010. Disponível em:  http://apps.unibrasil.com.br/revista/index.php/direito/index. Acesso em: 29. ago. 2.012.

[7]FROTA, Hidemberg Alves da; BIÃO, Fernanda Leite. O fundamento filosófico do dano existencial. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2653, 6out.2010. Disponível em: < http://jus.com.br/revista/texto/17564>. Acesso em: 20 ago. 2012.

[8]FROTA, Hidemberg Alves da. Noções fundamentais sobre o dano existencial. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3046, 3nov.2011. Disponível em: < http://jus.com.br/revista/texto/20349>. Acesso em: 20 ago. 2012.

[9] MORAIS, Ezequiel. Brevíssimas considerações sobre o dano existencial. Família e Sucessões – Euclides da Cunha:  http://www.familiaesucessoes.com.br/?p=1789. Acesso em: 29 ago. 2012.

[10] FROTA, Hidemberg Alves da. Op. Cit.

[11] Indica-se ao leitor, para se observar a ocorrência do dano existencial em diferentes tribunais, os seguintes julgados: TRT 4ª R.; RO 0000840-47.2011.5.04.0241; Nona Turma; Relª Desª Maria Madalena Telesca; Julg. 19/07/2012; DEJTRS 27/07/2012; TJRS; AC 611650-39.2010.8.21.7000; Santa Maria; Nona Câmara Cível; Rel. Des. Leonel Pires Ohlweiler; Julg. 27/06/2012; DJERS 11/07/2012

[12] Vale apontar que o próprio autor levanta a hipótese de ocorrência do dano existencial nos casos de assédio sexual, todavia, com a recente alteração no Código Penal, seria mais interessante abranger a hipótese do assédio sexual em seu próprio gênero penal, qual sejam os crimes contra a liberdade sexual, sem desconsiderar sua possibilidade de ocorrência em casos que envolva o direito do trabalho.

[13] PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. vol. 2: parte especial – arts. 121 a 249. 8. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2.010 . p. 599.

[14] GESSE, Cláudia Maria Camargo; AQUOTTI FELTRIM, Marcus Vinicius. As consequências físicas e psíquicas da violência no crime de estupro e no atentado violento ao pudor. ETIC – Encontro de iniciação científica. Vol 6. N. 6. 2.010.  http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/issue/view/34. Acesso em: 29 agost. 2.012.

[15] Neste sentido os julgados: TJPE; APL 0147563-35.2009.8.17.0001; Terceira Câmara Criminal; Rel. Des. Cláudio Jean Nogueira Virgínio; Julg. 07/08/2012; DJEPE 21/08/2012; TJPA; AP 20103022210-7; Ac. 109524; Tucuruí; Terceira Câmara Criminal Isolada; Rel. Des. João José da Silva Maroja; Julg. 28/06/2012; DJPA 02/07/2012; TRF 2ª R.; AC 0013574-48.2005.4.02.5101; Oitava Turma Especializada; Rel. Des. Fed. Poul Erik Dyrlund; Julg. 26/10/2011; DEJF 09/11/2011.

Como citar e referenciar este artigo:
GONÇALVES, Vinicius de Almeida. A figura do dano existencial e sua ocorrência nos crimes contra a liberdade sexual. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2014. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/responsabilidade-civil/a-figura-do-dano-existencial-e-sua-ocorrencia-nos-crimes-contra-a-liberdade-sexual/ Acesso em: 28 mar. 2024