Conhecimento

Ética, ferramenta de alcance à dignidade da pessoa humana. Um improvável triálogo entre Mario Sergio Cortella, Clóvis de Barros Filho e a Sua Santidade Dalai Lama

RESUMO: Este ensaio é resultante da breve reflexão no tocante a questão ética e sua potencialidade como verdadeiro instrumento de efetivação, no que concerne à empatia e respeito ao próximo, da dignidade da pessoa humana. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica, numa busca por assuntos convergentes. E a inovação se dá pela apresentação em forma de debate, e no presente caso, um triálogo.

Palavras-chave: Ética. Dignidade da Pessoa Humana. Empatia.

INTRODUÇÃO

Seria impossível dizer que houve um encontro pessoal para um triálogo entre Mario Sergio Cortella, Clovis de Barros Filho e o Dalai Lama? Absolutamente que não. Seria improvável? No tocante à figura da Sua Santidade, é evidente que sim. Enquanto que os professores Cortella e Clóvis de Barros Filho detém livro e palestras publicadas em conjunto, o líder Budista encontra-se exilado na Índia, em Dharamsala, há mais de 50 anos.

Três personalidades impactantes, contemporâneas, vivas, ainda trabalhando e deixando suas respectivas mensagens. Duas delas, professores Cortella e Clóvis, propagando filosofia e a reflexão por todo o Brasil com grande sucesso. Gyatso Tenzin, o 14º Dalai Lama, ganhador do prêmio Nobel da paz em 1989, segue como líder espiritual do povo do Tibete e do Budismo Tibetano, escrevendo sua mensagem à todo mundo.

A despeito da dificuldade do encontro entre as figuras acima num plano físico, num plano intelectual é completamente possível.

Assim, com uma boa dose de imaginação e a utilização das obras “Ética e Vergonha na Cara”, de Mario Sergio Cortella e Clóvis de Barros Filho e “Por que Ética é mais importante do que Religião”, de Dalai Lama e Franz Alt, com intervenções ao longo dos textos por um mediador impessoal, está feito o triálogo entre os mestres.

Um triálogo real, num plano imaginário e atemporal, tanto necessário quanto altamente relevante aos nossos dias.

1. ÉTICA DA CONVENIÊNCIA, O AMÉRICA’S FIRST.

Mediador: Professor Cortella, poderia o senhor começar por esse assunto?

Mario Sergio Cortella: Gostaria de começar esse nosso bate-papo lembrando um fato que ocorreu no final de 2012, em Navarra, Espanha, e que tomou proporções consideráveis ao ser divulgado.

Em uma corrida de cross-country, o queniano Abel Mutai, medalha de ouro nos três mil metros com obstáculos em Londres, estava a pouca distância da linha de chegada e, confuso com a sinalização, parou para posar para fotos pensando que já havia cumprido a prova. Logo atrás vinha outro corredor, o espanhol Iván Fernández Anaya. E o que fez ele? Começou a gritar para que o queniano ficasse atento, mas este não entendia que não havia ainda cruzado a linha de chegada. O espanhol, então, o empurrou em direção à vitória.

Mediador: Grandeza na atitude. No esporte, esse é o verdadeiro fair play.

Mario Sergio Cortella: Bom, afora o ato incrível de fair play, há uma coisa que aconteceu depois. Com a imprensa inteira ali presente, um jornalista, aproximando o microfone do corredor espanhol, perguntou: “Por que o senhor fez isso?”. O espanhol replicou: “Isso o quê?”.

Mediador: Incrível. Para ele, fazer o que fez era a única coisa a ser feita.

Mario Sergio Cortella: Ele não havia entendido a pergunta – e o meu sonhor é que um dia possamos ter um tipo de vida comunitária em que a pergunta feita pelo jornalista não seja mesmo entendida -, pois não pensou que houvesse outra coisa a ser feita que não aquilo que fez. O jornalista insistiu: “Mas por que o senhor fez issso? Por que o senhor deixou o queniano ganhar?”. “Eu não o deixei ganhar. Ele ia ganhar”. O jornalista continuou: “Mas o senhor podia ter ganho! Estava na regra, ele não notou…”. “Mas qual seria o mérito da minha vitória, qual seria a honra do meu título se eu deixasse que ele perdesse?”. E continuou, então, dizendo a coisa mais bonita que eu li envolvendo a questão da ética do cotidiano: “Se eu ganhasse desse jeito, o que eu ia falar para minha mãe?”.

Mediador: Pico della Mirandola afirmou: “nada haver de mais admirável que o próprio homem”. Certamente, sabedor de uma atitude como essa, reafirmaria sua asserção.

Mario Sergio Cortella: Como mãe é matriz de vida, fonte de vida, ela é a última pessoa que se quer envergonhar. Porque ética tem a ver com vergonha na cara, com decência, e, repito, a última pessoa que se quer envergonhar é a mãe. É curioso, mas até bandido pode ser prova disso. Por exemplo, já houve situações de assalto a banco com reféns em que o sujeito, mesmo com a polícia toda em volta fazendo o cerco, não se rende. Aí a polícia chama a mãe dele. Ela chega, com a bolsinha no braço, e diz: “Saí daí, menino!” E ele sai.

Mediador: Ética, mais uma vez, tem de ver com vergonha na cara. E ética de conveniência, lógicas de resultado, portanto, são altamente perigosas.

Professor Clovis de Barros Filho, agora a palavra é do senhor.

Clóvis de Barros Filho: A lógica do resultado, da meta e do sucesso acaba se impondo de tal forma que os procedimentos e a maneira de atingir um objetivo acabam sendo sucateados e colocados como uma questão menor.

Mediador: Recordo-me, neste momento, em O banquete, de Platão, quando Fedro fala da cidade dos amantes.

Clóvis de Barros Filho: No primeiro discurso, Fedro diz que, se existisse uma cidade de amantes, ela seria perfeita e indestrutível, porque não há nada mais vergonhoso do que uma pessoa fugir ou praticar uma atitude indigna diante de alguém que ela ama. Então, se houvesse mais afetos e mais preocupação, digamos, em não desonrar pessoas que nos querem bem, provavelmente teríamos relações melhores e uma sociedade melhor.

A ética tem de ser tratada por um prisma de paixões, de emoções e de sensações. Tenho a nítida impressão de que, toda vez que estamos diante de dilemas existenciais, é muito importante observarmos o duelo entre esperança e temor. Quer dizer, muitas vezes, temos a esperança de auferir bons resultados e até de minimizar custos e esforços com isso. Então, de um lado, a esperança é um ganho de potência a partir de uma situação imaginada que é vantajosa, prazerosa, que é boa, enfim. De outro lado, temos o temor, que é justamente o contrário, ou seja, o indivíduo se apequena diante de uma situação imaginada, diante de uma consequência nefasta que possa lhe acontecer. Muitas das atitudes indignas e desonrosas que observamos acabam sendo a vitória da esperança sobre o temor.

Mediador: Vem-me a mente o problema da corrupção. Dê-nos um exemplo nesse sentido professor.

Clóvis de Barros Filho: Tratando diretamente da temática da corrupção, temos o indivíduo que se vê diante da possibilidade de um fantástico enriquecimento mediante um esforço mínimo. É claro que existe ali a possibilidade de ganho; ele imagina, num primeiro momento, todos os efeitos encantadores desse ganho, o que é uma esperança – esperança, repito, é um ganho de potência de vida determinado por uma situação imaginada, um conteúdo de consciência. Mas, em seguida, ele vislumbra também a possibilidade de ser pego, de cair em desgraça, de se ver em situação muito ruim. E aí se estabelece um duelo de afetos, como se fosse uma soma de vetores: de um lado a esperança de se dar bem e de outro o medo de se dar mal.

Mediador: Temos acompanhado o “placar” desses duelos de afetos… O medo de se dar mal vem perdendo de goleada. O professor visualiza ferramentas para o desincentivo da escolha mais fácil? Ou melhor, ferramentas de incentivo para a decisão ética?

Clóvis de Barros Filho: Acredito que é aqui que a questão das instituições e da sociedade se impõe.

Mediador: Com o exercício de sua autoridade?

Clóvis de Barros Filho: Porque, se temos uma sociedade esgarçada, incapaz de produzir temor sobre aqueles que pretendem auferir vantagens de situações ilegais, indecorosas ou eticamente condenáveis, acabamos, de certa maneira, estimulando um comportamento que não queremos.

Mediador: Esperança que conduz, curiosa e diretamente, para o equívoco. Quando fazemos acima a menção Etica da conveniência e América’s First, queremos chamar a atenção para os perigos de uma busca desenfreada e não ética de interesses pessoais, da ação que varia conforme um determinado interesse, conforme uma determinada inclinação.

Estamos acompanhando, por exemplo, o presidente dos Estados Unidos Donald Trump reiterar menções como o América’s First e Make america great again. Expressões que podem angariar muitos eleitores, mas que demonstram uma carga altamente individualista. Expressões, talvez, não pertinentes para nosso tempo, um tempo de globalização e de procura por efetivação da Dignidade da pessoa humana, independentemente de qual seja sua terra natal.

Sua Santidade Dalai Lama, discorra conosco um pouco sobre essa questão.

Dalai Lama: Quando o presidente diz: “América primeiro”, ele está deixando seus eleitores felizes.

Mediador: Sem sombra de dúvidas.

Dalai Lama: Consigo entender isso. Mas, do ponto de vista global, a frase dele não é relevante. No mundo globalizado de hoje, tudo está interconectado. O futuro da América depende da Europa, o futuro da Europa depende dos países asiáticos. A nova realidade é que todo mundo é dependente de todo mundo. Os Estados Unidos são uma nação importante do mundo livre. É por isso que o presidente deveria pensar mais nos assuntos em nível mundial.

Mediador: Os Estados Unidos é uma força que só vem aumentando.

Dalai Lama: O lema dos antepassados dos americanos modernos era democracia e liberdade. Os regimes totalitários não têm futuro. Como uma potência, o país deveria se aproximar mais da Europa.

Mediador: Por que o senhor diz isso?

Dalai Lama: Sou um admirador da União Européia. É um ótimo e gigantesco exemplo de projeto de paz.

Mediador: A entrada de Trump, essa questão do America’s First é uma mensagem de proposta ao nacionalismo, ou o ultranacionalismo.

Dalai Lama: O nacionalismo é uma preocupação séria a respeito da própria comunidade. É lógico que as diferentes nações do mundo estão preocupadas com seus próprios interesses. Mas a União Européia é um bom exemplo de cooperação internacional bem-sucedida. Depois de séculos de guerras e matança mútua, nos últimos 60 anos, nenhum país na União Européia travou guerra contra o outro. A história nos diz que, quando as pessoas buscam apenas os próprios interesses, existe rixa e guerra.

Mediador: Esse, indubitavelmente, é um dos pontos fulcrais deste assunto. Talvez Kant, detentor da glória de Platão, Aristóteles e Hegel, em seu tempo tenha visualizado esse comportamento individualista, bem como suas potenciais consequências. Pois sua Crítica da Razão Prática trata de leis impostas à vontade com validade universal, os seus famosos “imperativos”. Ali, Kant coloca a razão como função primacial de direcionamento da conduta humana. Supressão das paixões, princípios que norteiam a conduta humana, em favor da própria humanidade. Visão que faz contraste com aquela individualista.

Dalai Lama: Essa visão é limitada e estreita. É irreal e ultrapassada. O futuro das nações individuais sempre depende do bem-estar de seus vizinhos. Os Estados Unidos dependem da Europa, a Europa é dependente da mesma forma da Ásia e da África, e assim por diante. As nações individuais também devem cuidar de seus vizinhos. Essa é a realidade de nossa era.

Mediador: Assim, e por dedução, resta-nos compreender que o comportamento ético, não individualista, não por conveniência, tanto em escala pessoal, quanto numa escala global, pode produzir as mais positivas alterações possíveis, na sociedade comum e entre as Nações.

Comportamento ético, com verdadeiro e fraterno interesse, bem comum e o alcance da Dignidade da pessoa humana.

2. ÉTICA, QUESTÃO DE DECISÃO.

Mediador: Por favor Professor Cortella, inicie essa outro tópico.

Mario Sergio Cortella: A legislação usa o termo incapaz para quem não pode escolher, decidir e julgar por si mesmo. Qualquer outro animal é incapaz de escolher, decidir e julgar. Uma criança, até certa idade, também não tem capacidade de escolha autônoma. O mesmo ocorre com um adulto que sofra algum desvio, como a síndrome de Alzheimer ou um tipo de esquizofrenia. Essas são situações em que há um atenuante, porque a escolha não é realmente conduzida pelo indivíduo. E a ética implica necessariamente conduzir a si mesmo.

Mediador: Questão de decisão pessoal. Interessante que, em se tratando de ética, necessariamente deverá haver comunicação entre o que determinada pessoa diz, com suas ações.

Clóvis de Barros Filho: Recorro a um pensador que sempre me acompanhou na minha trajetória, desde a faculdade de Direito, que é Rousseau. (Aliás, Rousseau não merece a fama de hermético que costuma ter. Ele escreve de maneira fácil. Convido o leitor a se debruçar no Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens. É um discurso curto, de notável clareza e grande estilo.) Ele explica: o gato nasce gato e, ao nascer, nasce sabendo viver como gato. Ele já tem no seu instinto todas as respostas para uma vida de gato. Assim, um gato com fome não come alpiste, não está programado para isso, tanto quanto um pombo não come filé. Gatos e pombos são regidos pelo próprio instinto.

Mediador: Em suas ações, tanto gatos quanto pombos, não há sopesamento, há, tão somente, instinto. Muitas vezes nos comportamos da mesma maneira.

Clóvis de Barros Filho: O que aprendemos com Rousseau? Que não somos nem gatos nem pombos. E por quê? Curiosamente, observa ele, o homem não nasce sabendo. Resta aprender a viver. A natureza não esgota a vida do homem. O instinto é pobre, a vida é complexa; o homem precisa ir além de sua natureza. E esse ir além, transcender, é o único jargão que Rousseau usa.

O homem transcende a sua natureza. Ele inventa, cria, improvisa, inova, empreende, pensa em soluções nunca antes pensadas para situações nunca antes vividas. E tenho a impressão de que, se não se entende isso, a idéia de ética fica “capenga”. Porque a ética surge por isso. Ela é a transcendência em relação a natureza; a necessidade de encontrar caminhos quando o instinto não responde mais; a necessidade de perceber que vontade não é desejo, porque vontade, muito mais do que uma inclinação do corpo, é uma decisão racional, elaborada e criativa sobre para onde queremos ir.

Mediador: Professor Clóvis, não há melhor momento para a nossa sociedade, do que esse mesmo, para pensar o encontrar novos caminhos.

Clóvis de Barros Filho: E, por isso, claro está que cabe ao homem fazer o que nenhuma outra criatura mais precisa fazer, como já mencionei: inventar, criar, improvisar, inovar, empreender e, sobretudo, refletir sobre a melhor maneira de conviver.

Mediador: Essa idéia trazida por Rousseau, o aprender a melhor viver, a transcender, é da mais alta relevância.

No entanto, e como um dia cantou Cazuza “Tuas idéias não correspondem aos fatos (…)”, o que é dito a respeito da vida que Rousseau viveu não trata-se de bom exemplo ético e dignificante.

Mario Sergio Cortella: Há uma grande discussão na filosofia sobre ele, se aquilo que escrevia era coerente ou não com a vida que levava. Conta a lenda urbana que Rousseau teve tantos filhos e não criou nenhum. Então, aquele que escreve sobre algo precisa ser autêntico em relação ao que diz? Rousseau fala sobre a desigualdade e discute a idéia do contrato social, mas ele, um bom genebrino, teria abandonado os filhos, deixando-os para serem criados por outras pessoas.

Mediador: No final das contas, o que importa é, para alem das palavras buscar a escolha ética, a escolha dignificante.

Clóvis de Barros Filho: Essa soberania deliberativa, porém, está longe de ser um privilégio. Se é superioridade ou não, não vou entrar no mérito, mas está longe de ser um privilégio. Porque escolher é um imenso “abacaxi”. E o que é mais interessante, não há como viver sem escolher. A escolha se impõe. Como dirá Sartre, “somos condenados a ser livres”. Não é algo que usamos quando queremos, não é um penduricalho do qual lançamos mão de acordo com nossa vontade. Não. A vida se apresenta de tal maneira que, a cada segundo, temos que deliberar para onde vamos e, o que é mais incrível, temos que jogar no lixo soluções existenciais… São muitas, trezentos e sessenta graus de soluções existenciais das quais temos que nos desfazer em nome de uma só.

Mediador: Quando se há real discernimento sobre as reais situações da vida, percebe-se a tamanha responsabilidade que temos.

Clóvis de Barros Filho: Quer dizer, a chance de nos arrependermos é imensa, porque temos infinitas alternativas e, ao escolhermos uma, jogamos fora sempre um número maior. E veja ainda o que é pior: não vivemos as tristezas das hipóteses de vida que não vivemos, dando a impressão permanente de que teríamos evitado as tristezas que sentimos se tivéssemos optado por outros caminhos, porque, claro, aqueles percalços, não os conhecemos propriamente. Quando escolhemos, temos a impressão de que os problemas acabaram. De jeito nenhum! Uma vez feita a escolha, fica sempre uma impressão de equívoco, fazendo com que nossa vida seja permanentemente acompanhada por um sentimento de angústia que é próprio de quem é livre, sabe que é livre e sabe que tem que exercer essa perspectiva de escolha.

Mediador: Continue a discorrer sobre escolha professor Clóvis.

Clóvis de Barros Filho: Mas o que é escolher? Se abrirmos qualquer dicionário, verificaremos que escolher é identificar uma alternativa de maior valor – no caso da vida, A vida que vale a pena ser vivida (para fazer propaganda de outro livro meu). Então não é possível escolher sem concluir: “Isto é melhor que aquilo”. Dentre as hipóteses que passam por nossa cabeça, atribuir valor a elas e identificar a de maior valor é uma tarefa que nos acompanhará sempre. Não há vida sem escolha, e não há escolha sem valor. Como fazer isso, então?

Mediador: Escolher como Iván Fernández Anaya, referido no começo deste texto, escolheu, em nossos dias, causa espanto em razão de sua magnanimidade.

Clóvis de Barros Filho: Eu me lembro da época em que dava aula na Escola Paulista de Magistratura e uma juíza disse: “Professor, quanto mais eu ouço o senhor, mais difícil fica dar a sentença”. Não sei se eu devia me orgulhar porque a meta era dar tantas sentenças por semana ou se eu devia me vangloriar porque lhe dei condições de ponderar e problematizar aquilo que ela antes considerava óbvio.

Mediador: Professor, penso que, se a ética, se o convite à reflexão sobre a realidade de nossos dias nos levasse a busca da melhor decisão possível, decisão onde o “eu” é retirado do protagonismo, onde a percepção do outro é real, penso que o senhor devia se vangloriar.

Mario Sergio Cortella: A contemporaneidade gerou mais angústia no que concerne à questão ética, especialmente nas famílias, deixando os pais perplexos em relação ao modo de orientar escolhas.

Quando nos nossos dias se fala em educação na família e na escola, é muito comum o conjunto de pessoas perguntar: “Mas qual é a referência?” Não há mais padrão de disciplina, não há mais padrão de conduta. No campo da vida pública, quem está correto: aquele do “rouba, mas faz” ou aquele que, sendo decente, nada realiza porque se constrange e aí não tem eficácia nessa organização? Acho que essa complexidade precisa nos trazer, de fato, a percepção de que ser complexo não é ser impossível. Significa que se torna mais difícil que tenhamos que fazer as escolhas, mas essas escolhas continuam existindo.

Mediador: Ou seja, as escolhas estão aí e a despeito de sua complexidade, nós temos de nos posicionar diante delas. A não escolha é, por si só, uma escolha. Omissão que pode ser extremamente perigosa.

Clóvis de Barros Filho: A capacidade de problematizar significa a condição que se tem de perguntar por que certo princípio deve triunfar sobre outro. Essa é a condição do funcionário de um banco que deveria poder questionar por que o foco é no resultado e não na honestidade no trato com o cliente. E a palavra foco, para mim, é muito boa. É ela que indica a necessidade de, diante da complexidade dos princípios, ter que escolher. Se os meus princípios apontam para soluções de vida contraditórias, tenho que “dar a cara a tapa”. Tenho que dizer: “Isto aqui deve preponderar sobre isso”. E, é claro, o foco é absolutamente necessário para que haja vida, mas é necessário também que se possa problematizar onde ele vai ser colocado.

Mediador: Sua Santidade, dê-nos elementos possibilitadores e potencializadores para, diante da decisão a ser tomada, diante das surpresas da vida, a decisão ética seja aquela que tenha mais força.

Dalai Lama: Resumindo: amor, compaixão, justiça, perdão, cuidado, tolerância e paz. Essa educação é necessária do jardim de infância ao ensino médio e universidades. Eu me refiro ao aprendizado social, emocional e ético.

Mediador: Uma nova abordagem na educação? Uma abordagem ética?

Dalai Lama: Precisamos de uma iniciativa mundial para educar coração e mente nessa era moderna.

No momento, nossos sistemas educacionais são orientados principalmente para os valores materiais e para treinar a compreensão das pessoas. Mas a realidade nos ensina que não chegamos a razão apenas por meio da compreensão. Devemos dar mais ênfase aos nossos valores internos.

Mediador: Valores esses que todos temos. E sabedores disso, passaremos a olhar de maneira diferente para o outro, com um olhar ético. E assim, quem sabe, uma revolução não poderá acontecer.

Dalai Lama: Agora, a ética global secular é mais importante do que as religiões clássicas. Precisamos de uma ética global que possa aceitar tanto os crentes quanto os não crentes, incluindo os ateus.

As gerações jovens têm a grande responsabilidade de garantir que o mundo se torne um lugar mais pacífico para todos. Mas isso só pode se tornar realidade se nossos sistemas educacionais educarem não apenas o cérebro, mas também o coração. Os sistemas educacionais do futuro devem dar mais ênfase ao fortalecimento das habilidades humanas, como o coração bom, o senso de união com a humanidade e com o amor.

Mediador: Sua Santidade, fale-nos mais sobre essa ética secular.

Dalai Lama: Tenho vivido em exílio na Índia há mais de 50 anos. Lá, experimentei a ética secular. Mahatma Gandhi foi um homem profundamente religioso, mas também uma mente secular. Em suas orações diárias, textos eram lidos e cantados de todas as grandes religiões e sabedorias. Gandhi era um grande entusiasta de Jesus e de seu pacifismo no Sermão da montanha. Ele é meu exemplo porque incorporava essencialmente a tolerância religiosa, que tem raízes indianas antigas. A Índia é lar de hindus, muçulmanos, cristãos, sikhs, jainas, budistas, zoroastras, judeus, agnósticos e ateus que vivem juntos em paz – com poucas exceções. É um país com muitas minorias étnicas e religiosas e milhares de idiomas. O Tibete é minha terra, mas de certo modo também sou um filho da Índia secular.

Mediador: Em tempos de rejeição à tudo aquilo que é diferente, tempos de revelação brutal da intolerância, a Índia consegue conviver harmonicamente com todo esse universo dentro de seus portões.

Dalai Lama: Você encontra templos hindus, mesquitas muçulmanas, igrejas católicas e locais sagrados budistas próximos um dos outros. Sei que de vez em quando ocorrem casos sérios de violência em alguns pontos. Mas seria um erro generalizá-los. De modo geral, a sociedade indiana é pacífica e harmoniosa. Todas as fés compartilham do antigo princípio indiano de não violência, o Ahimsa, que também deu a Gandhi grande sucesso político. Foi a base da coexistência pacífica. É a prática da ética secular além de todas as religiões. O mundo moderno deveria seguir seu exemplo.

Mediador: Com toda certeza Sua Santidade. A dignidade da pessoa humana, em muitos de seus aspectos, seria um sonho possível.

CONSIDERAÇÕES FINAIS.

O tema dignidade da pessoa humana é, indubitavelmente, o tema fulcral e mais necessário dos nossos tempos.

É mais do que fundamental, numa era tecnológica, com velocidade de informação e altamente conectada, com significativos avanços científicos nas mais variadas vertentes, que haja um real desenvolvimento no que concerne a idéia de dignidade da pessoa humana, em toda sua complexidade e profundidade, assim como real desenvolvimento dos meios de seu alcance.

A proposta neste breve triálogo foi demonstrar que a ética pode ser uma ferramenta possibilitadora neste sentido, tendo em vista que o comportamento legitimamente ético tem como características ações em função de um bem maior com fundamento na razão e de maneira não egoísta.

Desta forma, contra todas as formas de “éticas de conveniência”, contra todo comportamento egoístico, o qual é tão marcante em nossos dias, propomos a ética, e não somente ela, mas também a empatia, o comportamento não violento, a magnanimidade que há em cada pessoa, a fim de que possamos restabelecer a confiabilidade no próximo, a idéia de sociedade e alcançar o sonho de um mundo onde há mais justiça, paz e solidariedade.

REFERÊNCIAS

CORTELLA, Mario Sergio; FILHO, Clóvis de Barros. Ética e vergonha na cara. Campinas, SP, Papirus 7 Mares, 2014.

Sua Santidade Dalai Lama; Alt, Franz. Por que ética é mais importante que religião. Rio de Janeiro, RJ, Harper Collins, 2018.

 

Autoria de:

Nicollas Madeira de Oliveira.

Mestrando em Direito no Núcleo de Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-SP (PUC);

Graduado em Direito e Pós Graduado em Filosofia pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS);

Escrevente no 2º Oficial de Registro de Imóveis de Santo André-SP.

Como citar e referenciar este artigo:
OLIVEIRA, Nicollas Madeira de. Ética, ferramenta de alcance à dignidade da pessoa humana. Um improvável triálogo entre Mario Sergio Cortella, Clóvis de Barros Filho e a Sua Santidade Dalai Lama. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2020. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/conhecimento-artigos/etica-ferramenta-de-alcance-a-dignidade-da-pessoa-humana-um-improvavel-trialogo-entre-mario-sergio-cortella-clovis-de-barros-filho-e-a-sua-santidade-dalai-lama/ Acesso em: 28 mar. 2024