Poluição sonora e inércia estatal
Francisco César Pinheiro Rodrigues*
Um bom sub-título: “Texto para ser lido por prefeitos, Secretários de Segurança Pública e juízes cautelosos em demasia”.
Só quem morou ao lado, abaixo ou acima de festeiros eufóricos, ou nas imediações de bares e clubes dançantes, pode avaliar o que é depender da boa-vontade de vizinhos ruidosos para poder dormir ou se concentrar em alguma leitura. Melómanos hipnotizados ou entorpecidos pelo fascínio musical em alto volume, não conseguem acreditar que aqueles divinos boleros, canções, música caipira ou sambas que tanto os deliciam possam incomodar os vizinhos. Quem reclama, claro, não pode estar em seu juízo perfeito! Ou então é um bárbaro musical, a merecer umas boas palmadas auriculares. Portanto, haja música! E o combate a tais abusos deixa muito a desejar.
Há, porém, solução para o problema, com aperfeiçoamentos das dignas autoridades às sugestões que se seguem.
Notando as olheiras profundas e o rosto cansado de uma senhora que trabalha em um restaurante onde costumo almoçar aos domingos, perguntei a ela porque estava tão abatida. Respondeu-me que três ou quatro vezes por mês, nos fins de semana, um vizinho promove festas de arromba, com possantes alto falantes que torturam os vizinhos até altas horas da madrugada. Como ela não pode, para compensar o desgaste, se dar ao luxo de dormir de dia, isso explica seu aspecto cansado.
Perguntei a ela por que não tomava uma providência junto à prefeitura ou chamava a polícia? Respondeu-me que o problema era insolúvel. Ambas as entidades tiram o corpo fora, com invejável astúcia administrativa. A prefeitura paulistana alegou que não podia agir, no caso, porque o emissor do dilúvio sonoro era um particular, uma residência. A responsabilidade seria da polícia. E a polícia militar, solicitada por telefone, só age se o reclamante do barulho estiver presente, acompanhando os policiais no momento da advertência aos barulhentos.
Ocorre que, com freqüência, vizinhos desse tipo são mal encarados, agressivos e vingativos. Se souberem que foi o vizinho “x” quem chamou a polícia, declararão uma verdadeira guerra suja psicológica para atormentar o denunciante. Além da tortura acústica haverá a inquietação do perigo iminente, a vingança em uma forma ou outra, geralmente em forma de picuinhas. Face à exigência policial, desistem da reclamação. Ninguém quer um clima de guerrilha com vizinhos. Se o reclamante for, por exemplo, uma mulher velha e sem ligações pessoais capazes de impor respeito — até mesmo físico —, o “criminoso sonoro” sentir-se-á à-vontade para continuar com suas festas estrondosas, confiante que a tímida vizinha não se atreverá, de novo, a chamar a polícia.
Por que a Polícia Militar agem assim, exigindo a presença do reclamante no ato da advertência para baixar o som? Porque dessa forma fica dispensada de ir até o local. Confia no temor do queixoso em se identificar perante o infrator. Assim a polícia “tira o corpo fora”, de uma maneira aparentemente correta ( “o queixoso deve ter a coragem física e moral de se identificar!”).
Essa tática de “evitar problema” — e serviço — é moralmente inaceitável e seria preciso que o Sr. Secretário da Segurança Pública baixasse instruções explícitas para que os policiais militares dispensassem a presença do reclamante no momento em que o infrator é advertido. O prejudicado comparecerá se quiser, se assim se oferecer, sem a mínima pressão.
Por que exigir a presença do reclamante? Policiais não são surdos. Se o fossem, não passariam no exame médico de admissão à profissão militar. Assim, por que exigir a presença do queixoso? A polícia não pode exigir que as vítimas de ruídos exagerados sejam heróicas. Quem tem a obrigação de ser herói é o policial, não o cidadão, ou cidadã comum.
Dias atrás os jornais noticiaram que foi proibida, na cidade de São Paulo, a propaganda sonora das famosas “Pamonhas de Piracicaba”. Essa promoção, de poucos minutos, em áreas não extensas, era praticamente inofensiva se comparada com as caixas de sons dos festeiros de fins de semana, que atormentam horas e horas os mesmos vizinhos.
Outra razão que, presumo, leva a PM a exigir a presença física do queixoso — justamente para não atender a ocorrência — está no temor, pelos policiais, da “carteirada”, ou do potencialmente perigoso “você sabe com quem está falando”?
A viatura policial chega ao local barulhento e depara-se com um enorme e luxuoso palacete. Explica ao porteiro a razão da sua presença e pouco depois é atendido por um cidadão que, do alto de sua importância, alega ser um perigo iminente para a vida funcional do policial. Identifica-se como deputado, senador, vereador, alta patente militar, delegado, promotor, juiz ou poderoso empresário. Sua excelência argumenta que, a seu ver, o “suposto” barulho não é excessivo e que não vai baixar o volume coisa nenhuma. Além disso, é amigo pessoal do chefe dos policiais. O praça, temendo problemas e represálias “vindas de cima” acaba deixando o local com uma vaga e tímida recomendação para “maneirar no volume”. E o “figurão”, para se exibir aos convidados, mostra seu poder não reduzindo o volume do som.
Provavelmente está aí, e não apenas no desejo de evitar serviço, a má-vontade dos policiais militares no reprimir abusos do tipo referido.
Cabe, portanto, ao Prefeito Municipal e à Polícia Militar determinar que, em caso de reclamação contra volume excessivo de música do vizinho, em zona residencial, não seja exigida a presença física do reclamante. Não é necessária uma lei para dar essa orientação.
Ocorrendo, eventualmente, a mencionada “carteirada” — ou o “Você sabe com quem está falando”? — o procedimento padrão recomendável aos policiais seria o seguinte, sem prejuízo de outros melhor redigidos: se o volume excessivo não for reduzido de imediato — ou simplesmente desligado o som, devido ao horário —, e o dono da casa se mostrou arrogante, caberia aos policiais solicitar sua identificação, exigindo carteira de identidade e demais informes pessoais. Se houver uma máquina fotográfica na viatura, fotografando o infrator importante, melhor. Se o figurão se recusar a identificar-se, isso impressionará mal a audiência, demonstrando covardia. Em seguido, no local ou na delegacia, no dia seguinte, o policial redigirá um pequeno relatório, ou termo semelhante, que será encaminhado dentro de dois dias ao órgão próprio para as providenciais penais.
Se providências semelhantes ocorressem rotineiramente, o medo do processo, gastos e complicações legais provocaria uma grande mudança de comportamento. A “valentia” sairia muito cara ou trabalhosa.
Somente assim, ou com providências assemelhadas, é que, no nosso país, os cidadãos terão direito ao merecido silêncio noturno.
Mesmo quando o problema está na justiça, em ação cível movida por vizinhos prejudicados por clubes barulhentos, não é raro o juiz agir com demora e timidez excessivas. Parece achar que só depois do trânsito em julgado da decisão — esse sonho quase impossível no processo brasileiro — é que pode determinar o fechamento do clube que abusa. É claro que o infrator instrui seu patrono para “esticar” ao máximo o processo, impugnando mínimos aspectos periciais e recorrendo de tudo, postergando o trânsito
Cerca de dezoito anos atrás, em Londres, hospedado em um hotel de não muitas estrelas, estava sendo incomodado por um grupo de pessoas que, no quarto vizinho, ria, cantava e falava espanhol. Tudo ao som de músicas sul ou centro americanas tocadas em alto volume. Até mesmo a antológica “
Sem uma certa energia a civilização não avança. E civilização também é silêncio.
Espero que estas mudas linhas cheguem aos ouvidos não surdos mas desatentos das autoridades competentes.
* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo.
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